Um Olhar Quotes

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Mas e o amor? O que é senão um monte de gostar? Gostar de falar, gostar de tocar, gostar de cheirar, gostar de ouvir, gostar de olhar. Gostar de se abandonar no outro. O amor não passa de um gostar de muitos verbos ao mesmo tempo.
Carla Madeira (Tudo é rio)
Quem não compreende um olhar, tampouco compreenderá uma longa explicação
Mario Quintana
Os pássaros ficavam encolhidos a um canto, tentando evitar olhar para aquela porta aberta, desviavam os olhos da liberdade, que é uma das portas mais assustadoras. Só se sentiam livres dentro de uma prisão.
Afonso Cruz (A Boneca de Kokoschka)
A vida foge-nos, escapasse-nos como água entre os dedos. Morremos a cada respiração, a cada palavra, a cada olhar, momento a momento encurta-se a distância que nos separa do nosso fim, nascemos e já estamos condenados à morte. A vida é breve, não passa de um instante fugaz de um brilho efémero nas trevas da eternidade
José Rodrigues dos Santos (A Filha do Capitão)
Há muitas formas de estar morto. Perder o cheiro, perder o nome, perder a própria vida, mesmo que ainda ocupando um corpo ou uma sombra. Perder o cheiro, perder o nome, perder a própria vida, mesmo que ainda suportando o tempo e o peso do olhar.
José Luís Peixoto (Galveias)
«Penso: talvez o céu seja um mar grande de água doce e talvez a gente não ande debaixo do céu mas em cima dele; talvez a gente veja as coisas ao contrário e a terra seja como um céu e quando a gente morre, quando a gente morre, talvez a gente caia e se afunde no céu.»
José Luís Peixoto (Nenhum Olhar)
Enquanto falava, lançou em direção à menina um olhar estranho, de ódio – a não ser que tivesse um conjunto muito singular de músculos faciais que, diferente do que sucede às outras pessoas, não sabia interpretar a linguagem da alma.
Emily Brontë (Wuthering Heights)
colava o seu belo seio contra o peito dele; as suas mãos corriam-lhe os braços numa carícia lenta e quente, dos pulsos aos ombros; depois, com um lindo olhar, estendia-lhe os lábios. Pedro colhia neles um longo beijo, e ficava consolado de tudo
Eça de Queirós (Os Maias)
Uma relação de duas pessoas converteu-se numa de três, numa coisa mais triangular. Só uma relação que consegue formar um polígono consegue sobreviver, pensava Borja. Quando assenta em dois pontos, não resiste ao tempo, é um segmento de recta muito frágil. É um pontinho a olhar para outro pontinho, não tem a solidez do triângulo e, muito menos, da circunferência. Parte-se como um palito.
Afonso Cruz (Jesus Cristo Bebia Cerveja)
Meus dias são sempre como uma véspera de partida. Movimento-me entre as pontas como quem sabe que daqui a pouco já não vai estar presente. As malas estão prontas, as despedidas foram feitas. Caminhando de um lado para outro na plataforma da estação, só me resta olhar as coisas lerdo e torvo, sem nenhuma emoção, nenhuma vontade de ficar.
Caio Fernando Abreu (Morangos Mofados)
Qualquer um pode olhar para você, mas é muito raro encontrar quem veja o mesmo mundo que o seu.
John Green (Turtles All the Way Down)
Não tem um olhar para mim: coisa cruel; um olhar terno ter-me-ia tornado feliz até amanhã de manhã. Esse olhar, não quis ele conceder-mo; foi-se embora. É estranho que a dor quase me sufoque por o olhar de um ser humano não ter encontrado o meu.
Charlotte Brontë
Ele virou-se para a olhar de frente e os seus olhos encontraram-se de um modo que tinha tudo que ver com amor, do tipo suficientemente forte para arrancar alguém da sepultura, do tipo de nunca esmorecer e nunca falhar
Eloisa James (When Beauty Tamed the Beast (Fairy Tales, #2))
Isabella Swan?- e olhou-me através das pestanas extremamente longas, com um olhar doirado suave, mas de algum modo ainda incandescente.-Prometo amar-te para sempre, todos os dias da eternidade. Aceitas casar comigo? Havia muitas coisas que gostava de lhe dizer, muitas delas pouco simpáticas e outras tão lamechas e românticas que ele provavelmente nem sequer sonhara que eu seria capaz de as dizer. Em vez de me envergonhar com qualquer uma, murmurei: - Sim
Stephenie Meyer (Eclipse (The Twilight Saga, #3))
Há um estranho aforismo de Kafka que diz: «Os leopardos invadem o templo e bebem o conteúdo dos vasos sacrificiais, esvaziando-os; isto repete-se incessantemente; por fim, esta situação pode calcular-se de antemão e torna-se uma parte da cerimónia». O que é descrito ali acontece a todos os que, por descuido ou insensatez, se deixam transformar em adultos: a força do hábito endurece o olhar, e a rotina torna normal o que em tempos era horrível. Só as crianças (e os loucos, e os humoristas) conservam a capacidade de dizer que o que é selvagem continua a ser selvagem, mesmo que tenha passado a integrar o ritual sagrado”.
Ricardo Araújo Pereira (A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram Num Bar)
(...) e nunca me disseram o nome daquele oceano esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas punha-me a olhar a risca do mar ao fundo da rua assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar se espantasse com a minha solidão. (anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.) um dia houve que nunca mais avistei cidades crepusculares e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta inclino-me de novo para o pano deste século recomeço a bordar ou a dormir tanto faz sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade
Al Berto (O Último Coração do Sonho)
Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir ao céu. Quando voltou contou que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas. - O mundo é isso - revelou - Um montão de gente, um mar de fogueirinhas. Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo.
Eduardo Galeano (The Book of Embraces)
Aconteceu outra vez. Um daqueles momentos em que o pulso se lhe acelerou e em que ela parecia esquecer o resto do mundo só porque ele estava a olhar para si.
Emma Wildes (Our Wicked Mistake (Notorious Bachelors, #2))
Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.
Caio Fernando Abreu (Morangos Mofados)
Sigo com um olhar e concordo com um menear, apoio com um dispor e celebro com um sorriso.
Filipe Russo (Caro Jovem Adulto)
Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! Que desabafo! Que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser!
Machado de Assis (Memórias Póstumas de Brás Cubas)
...e por um instante pensei que não havia ali mais fantasmas que os da ausência e da perda,e que aquela luz que me sorria era de empréstimo e só valia enquanto a pudesse segurar com o olhar,segundo a segundo.
Carlos Ruiz Zafón (The Shadow of the Wind (The Cemetery of Forgotten Books, #1))
Já não há histórias de amor. No entanto, as mulheres desejam-nas e os homens também, quando não se envergonham de ser ternos e tristes como as mulheres. Uns e outros têm pressa de ganhar e de morrer. Apanham aviões, comboios suburbanos, rápidos de alta velocidade, ligações. Não têm tempo para olhar para aquela acácia cor-de-rosa que estende os ramos para as nuvens intervaladas de seda azul ensolarada (…) Bem se vê que não há tempo sem amor. O tempo é amor pelas pequenas coisas, pelos sonhos, pelos desejos. Não temos tempo porque não temos amor suficiente. Perdemos o nosso tempo quando não amamos. Esquecemos o tempo passado quando nada temos a dizer a ninguém. Ou então estamos prisioneiros de um tempo falso que não passa.
Julia Kristeva (Os samurais)
O olhar de Cal corre de um lado para o outro em busca de uma solução que ele jamais vai encontrar. Por fim, seus olhos pousam em mim. Estão vazios. E sozinhos. É então que uma mão se fecha delicadamente ao redor do meu punho.
Victoria Aveyard (Glass Sword (Red Queen, #2))
Mas a lista das perdas era também uma lista de compras. Não eram as histórias e as palavras e as músicas o que eu havia perdido. Eu havia perdido essa minha identidade que formulava, sem cessar, histórias, palavras e músicas a seu próprio respeito. Eu tinha ficado menor, menos interessante. E precisava comprar um olhar com que eu pudesse olhar o mundo, uma voz com que eu pudesse, frágil e firme, falar de mim. Não contar histórias, menos do que isso. Só falar.
Elvira Vigna
Quando montava o Salomão, a subhro sempre lhe havia parecido que o mundo era pequeno, mas hoje, no cais do porto de génova, alvo dos olhares de centenas de pessoas literalmente embevecidas pelo espectáculo que lhes estava sendo oferecido, quer com a sua própria pessoa quer com um animal em todos os aspectos tão desmedido que obedecia ás suas ordens, fritz contemplava com uma espécie de desdém a multidão, e, num insólito instante de lucidez e relativização, pensou que, bem vistas as coisas, um arquiduque, um rei, um imperador não são mais do que cornacas montados num elefante.
José Saramago (A Viagem do Elefante)
Perseguida pelo medo da velhice, deixei envelhecer a nossa relação. Ocupada em me fazer bela, deixei escapar a verdadeira beleza, que apenas mora no desnudar do olhar. O lençol esfriou, a cama se desaventurou. Esta é a diferença: a mulher que tu encontraste aí, em África, fica bela apenas para ti. Eu ficava bela para mim, que é um outro modo de dizer: para ninguém.
Mia Couto (Jesusalém)
No tempo em que éramos felizes não chovia. Levantávamo-nos¬ juntos, abraçados ao sol. As manhãs eram um céu infinito. O nosso amor era as manhãs. No tempo em que éramos felizes o horizonte tocava-se com a ponta dos dedos. As marés traziam o fim da tarde e não víamos mais do que o olhar um do outro. Brincávamos e éramos crianças felizes. Às vezes ainda te espero como te esperava quando chegavas com o uniforme lindo da tua inocência. Há muito tempo que te espero. Há muito tempo que não vens.
José Luís Peixoto
Se as pessoas começarem a parar por um momento para olhar paras os casos como o meu, ou, simplesmente para a sua própria vida com olhos de ver, talvez comecem a relativizar os seus próprios problemas e possam perceber o que de facto vale a pena na vida.
António Feio (Aproveitem a Vida)
Vê um jovem que se afasta da vida dela e se vai, parra sempre inacessível. Hipnotizada, nada pode fazer senão olhar esse pedaço da sua vida que se afasta, não pode senão olhá-lo e sofrer. Experimenta uma sensação inteiramente nova que se chama nostalgia.
Milan Kundera (Ignorance)
O que constitui um enigma é a sua ligação, é o que está entre elas – é o facto de eu ver as coisas no seu devido lugar, precisamente porque elas se eclipsam umas às outras –, é o serem rivais perante o meu olhar, precisamente porque cada uma está no seu lugar.
Maurice Merleau-Ponty (O olho e o espírito)
podes estar apaixonada e ao mesmo tempo incrivelmente só. Podes ter tudo o que sempre quiseste só para te dares conta que tudo o que querias estava errado. Podes ter um marido inteligente atraente e cheio de compaixão como o meu e mesmo assim não o ter na realidade. E algumas vezes podes olhar para a tua filha linda e preciosa e ficar genuinamente ciumenta de quanto ele a ama em vez de ti.
Lisa Gardner (The Neighbor (Detective D.D. Warren, #3))
Se permanecesse imóvel por um tempo, aconteceria o inverso daquilo que ela esperava: as letras é que começariam a olhar para ela. E iriam segredar-lhe histórias. Tudo aquilo parecem desenhos, mas dentro das letras estão vozes. Ao lermos não somos o olho; somos o ouvido.
Mia Couto (Mulheres de Cinzas (As Areias do Imperador, #1))
Mas como era extraordinária aquela sala cheia de gente — ou melhor, de animais -, a olhar na mesma direcção, para outros animais mascarados e treinados para representar num palco, para animais cobertos de tecido e bocados de peles, ornamentados com pedras e de rostos e garras pintados. Toda a gente acabara de comer um animal de qualquer espécie; as peles que se viam por toda a parte, apesar de a noite estar quente, provinham de animas que tinham vivido, brincado e fornicado em florestas e campos, e os pés de toda a gente estavam cobertos de pele de animais.
Doris Lessing (The Summer Before the Dark)
(...)sentou-se para descansar e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações. faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente de Deus, não Lóri mas o seu nome secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir, faz de conta que vivia e não que estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta, faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranqüilas mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro.
Clarice Lispector
Sabia que não ia voltar mas continuava pensando com tanta força. Como quando se tira um vestido velho do baú, um vestido que não é para usar, só para olhar. Só para ver como ele era. Depois a gente dobra de novo e guarda mas não se cogita em jogar fora ou dar. Acho que saudade é isso.
Lygia Fagundes Telles (As Meninas)
Vocês se negaram, desde o começo, a me aceitar do jeito que eu era. Nasci sob o signo da desaprovação, sabe-se lá por quê. Desde pequena, recordo bem disso, nada que partisse de mim agradava vocês. Nunca um elogio foi feito, a coisa alguma; jamais um carinho. Sequer um olhar afetuoso eu lembro de ter recebido.
Fernanda Young (Tudo que Você Não Soube)
— E acabei por ir a casa dela para lhe configurar o sistema todo. — Harry, «configuraste-lhe o sistema todo»? — perguntei, arregalando os olhos e fingindo-me pasmado. Baixou o olhar, mas não conseguiu esconder um sorriso. — Tu percebeste. — Não vais... penetrar as seguranças dela, pois não? — perguntei, incapaz de resistir.
Barry Eisler (A Lonely Resurrection (John Rain, #2))
Raimundo Silva pensou, pessoanamente, Se eu fumasse, acenderia agora um cigarro, a olhar o rio, pensando como tudo é vago e vário, assim, não fumando, apenas pensarei que tudo é vário e vago, realmente, mas sem cigarro, ainda que o cigarro, se o fumasse, por si mesmo exprimisse a variedade e a vaguidade das coisas, como o fumo, se fumasse.
José Saramago (The History of the Siege of Lisbon)
Em algum momento você precisa parar de olhar para o céu, ou um belo dia, quando olhar para baixo novamente, vai se dar conta de que também saiu flutuando por aí.
John Green (Paper Towns)
A mente se autoedita. A mente se dá retoques. Habitar um corpo é diferente de estar fora dele. De fora, a gente pode olhar, inspecionar, comparar.
Jeffrey Eugenides (Middlesex)
As palavras dançam nos olhos das pessôas conforme o palco dos olhos de cada um.
José de Almada Negreiros
Saio pela porta da frente deixando pra trás um rastro de olhares reprovadores, trago minha bagagem cultural bem alojada na corcunda.
Filipe Russo (Caro Jovem Adulto)
Os que dormem, e os que já estão mortos, não passam de pinturas. É tão-somente o olhar de uma criança que se amedronta diante de um diabo desenhado.
William Shakespeare (Macbeth)
Ao amar se abandona todas as outras ilusões ao interpenetrá-las umas as outras em um só único olhar atencioso.
Filipe Russo (Caro Jovem Adulto)
Mas era primavera. Até o leão lambeu a testa glabra da leoa. (…) ‘Mas isso é amor, é amor de novo’, revoltou-se a mulher tentando encontrar-se com o próprio ódio mas era primavera e os dois leões se tinham amado. (…) Mas era primavera, e, apertando o punho no bolso do casaco, ela mataria aqueles macacos em levitação pela jaula, macacos felizes como ervas, macacos se entrepulando suaves, a macaca com olhar resignado de amor, e a outra macaca dando de mamar. (…) Ela mataria a nudez dos macacos. Um macaco também a olhou, o peito pelado exposto sem orgulho. Mas não era no peito que ela mataria, era entre aqueles olhos. De repente a mulher desviou o rosto, trancando entre os dentes um sentimento que ela não viera buscar, apressou os passos, ainda voltou a cabeça espantada para o macaco de braços abertos: ele continuava a olhar para a frente. ‘Oh não, não isso’, pensou. E enquanto fugia, disse: ‘Deus, me ensine somente a odiar’. ‘Eu te odeio’, disse ela para um homem cujo crime único era o de não amá-la. ‘Eu te odeio’, disse muito apressada. (…) ‘Eu te amo’, disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la. ‘Eu te odeio’, disse, implorando amor.
Clarice Lispector
Eu tenho o direito de partilhar a dor, e aquele que é capaz de olhar para os encantos do mundo, e partilhar a sua dor, e compreender um pouco a maravilha de ambos, está em contacto direto com as coisas divinas (...)
Oscar Wilde (De Profundis)
Num trabalho honesto", costumava dizer [Bartholomew Roberts], "o que se vê é gente magra, salários baixos e muito trabalho. Neste daqui, o que temos é fartura e saciedade, prazer e alegria, liberdade e poder. E quem não iria fazer o prato da balança pesar para este lado, quando tudo o que se arrisca daqui, na pior das hipóteses, é apenas um olhar ou dois de tristeza, no instante em que se sufoca? Não, meu lema será sempre por uma vida feliz e curta.
Daniel Defoe (A General History of the Pyrates)
Eu vivia à base de fotossíntese: arrancava o néctar dos teus lábios aos beijos e captava o brilho atencioso do teu olhar para em meu coração adivinhar um morno amor de um empuxo que me mantinha suspenso sobre o próprio cataclisma.
Filipe Russo (Caro Jovem Adulto)
PANORAMA ALÉM Não sei que tempo faz, nem se é noite ou se é dia. Não sinto onde é que estou, nem se estou. Não sei de nada. Nem de ódio, nem amor. Tédio? Melancolia. -Existência parada. Existência acabada. Nem se pode saber do que outrora existia. A cegueira no olhar. Toda a noite calada no ouvido. Presa a voz. Gesto vão. Boca fria. A alma, um deserto branco: -o luar triste na geada... Silêncio. Eternidade. Infinito. Segredo. Onde, as almas irmãs? Onde, Deus? Que degredo! Ninguém.... O ermo atrás do ermo: - é a paisagem daqui. Tudo opaco... E sem luz... E sem treva... O ar absorto... Tudo em paz... Tudo só... Tudo irreal... Tudo morto... Por que foi que eu morri? Quando foi que eu morri?
Cecília Meireles
Ela afastou ligeiramente o cobertor; um assomo de raiva perpassou-lhe o olhar, endurecendo o rosto, que, a cada dia que passava, ia assumindo os seus contornos adultos. Era a dor; a dor arranca-nos à infância como se arranca uma flor do caule.
João Tordo (O Luto de Elias Gro)
Talvez seja possível amar uma mulher por causa de um livro, de um poema sublinhado, de um filme a preto e branco, de uma casa, do olhar de um homem quando fala dela, da forma como o seu cão a espera. Da reprodução de um Mondrian na parede da sala.
Ana Teresa Pereira
- As wiccanfae não merecem estar entre nós...e Tir Alainn não é o lugar delas. - Nesse caso, sugiro que se vá embora. Lucian fixara-a com o olhar até Selena começar a perder mão sobre si mesma, em vias de se descontrolar. - Eu sou Fae - afirmara - e sou Filha da Casa de Gaian, o que implica que também sou wiccanfae. No entanto, se eu sou wiccanfae,o que julga o Senhor do Fogo que é? - Como?! - O fogo é um dos elementos da Mãe Universal. Não é uma dádiva dos Fae. O único motivo pelo qual o senhor o domina é por ser descendente de pelos menos uma pessoa que pertencia à Casa de Gaian. - Mentira - brandira Lucian - Eu sou Fae. - Wiccanfae! - atirara Selena, no mesmo tom. - Quem tem o seu poder não pode ter sangue puro. Quem julgava o senhor que era?...
Anne Bishop (The House of Gaian (Tir Alainn, #3))
[...] o Major Saulo, de botas e esporas, corpulento, quase um obeso, de olhos verdes, misterioso, que só com o olhar mandava um boi bravo se ir de castigo, e que ria, sempre ria — riso grosso, quando irado; riso fino, quando alegre; e riso mudo, de normal.
João Guimarães Rosa (O Burrinho Pedrês)
A noite cai. Ou caiu a noite. Por que a noite cai, em vez de subir como o raiar do dia? Contudo, se você olhar para o leste, ao pôr-do-sol, pode ver a noite subindo, não caindo; a escuridão se eleva em direção ao céu, subindo do horizonte, como um sol negro atrás de uma coberta de nuvem. Como fumaça de chamas que não se vê, uma linha de fogo pouco abaixo do horizonte, um fogo em meio à mata ou uma cidade em chamas. Talvez a noite caia porque é pesada, uma cortina espessa puxada sobre os olhos. Cobertor de lã. Eu gostaria de poder ver no escuro, melhor do que vejo.
Margaret Atwood (The Handmaid’s Tale (The Handmaid's Tale, #1))
Religiões são, por definição, metáforas, apesar de tudo: Deus é um sonho, uma esperança, uma mulher, um escritor irônico, um pai, uma cidade, uma casa com muitos quartos, um relojoeiro que deixou seu cronômetro premiado no deserto, alguém que ama você – talvez até, contra todas as evidências, um ente celestial cujo único interesse é assegurar-se que o seu time de futebol, o seu exército, o seu negócio ou o seu casamento floresça, prospere e triunfe sobre qualquer oposição. Religiões são lugares para ficar, olhar e agir, pontos vantajosos a partir dos quais se observa o mundo.
Neil Gaiman (American Gods)
Eu o observava enquanto ele se movia. Então observei os rostos que o observavam. E tive medo. Eu sabia que as pessoas estavam olhando, que fazia algum tempo que estavam olhando para nós dois. Elas sabiam que haviam testemunhado um começo, e agora não iam parar de olhar enquanto não assistissem ao fim.
James Baldwin (O quarto de Giovanni)
Mas, assim, pensas que isto tudo é uma confusão, circo meu das palhaçadas, cabeçadas na lógica? Ainda vais rir, mas prepara também o teu coração pra chorar, a vida é mesmo esse laço apertado, tem dias que lhe conhecemos os segredos – lhe desapertamos, outros dias lutamos só, nossas derrotas e lágrimas, e ficamos a olhar: o pescador se irrita com os nós da rede? Isto tudo que eu te falo, não é efeito do álcool, não é com três nem sete que me vais derrubar; isto tudo que eu falo é assim mesmo, a mancha da confusão, labirinto, e há que descobrir as coisas no devagar das coisas: o amor não acende um fósforo sozinho.
Ondjaki (Quantas Madrugadas Tem a Noite)
Todos nós temos necessidade de ser olhados. Podemos ser classificados em quatro categorias, segundo o tipo de olhar sob o qual queremos viver. A primeira procura um olhar de um número infinito de olhos anônimos, em outras palavras, o olhar do público.(...) Na segunda categoria, estão aqueles que não podem viver sem o olhar de numerosos olhos famliares. São os organizadores incansáveis de coquetéis e jantares. São mais felizes que os da primeira categoria, que, quando perdem o seu público, imaginam que a luz se apagou na sala de suas vidas. É o que acontece a todos, mais dia, menos dia. As pessoas da segunda categoria, pelo contrário, sempre conseguem arrumar quem as olhe. (...) Em seguida, vem a terceira categoria, as dos que têm necessidade de viver sob o olhar do ser amado. A situação deles é tão perigosa quanto a daqueles do primeiro grupo. Basta que os olhos do ser amado se fechem para que a sala fique mergulhada na escuridão.(...) Por fim, existe a quarta categoria, a mais rara, a dos que vivem sob os olhares imaginários dos ausentes. São os sonhadores. Por exemplo, Franz. Se ele chegou até a fronteira do Camboja, foi unicamente por causa de Sabina. O ônibus chacoalha na estrada da Tailândia e ele sente que os olhos de Sabina estão pousados sob ele.
Milan Kundera
É muito fácil julgar os outros quando você está olhando de longe. É fácil olhar para alguém fora do seu mundo e fazer uma porção de afirmações e julgamentos sobre quem aquelas pessoas são. Porque quando você vê os defeitos dos outros, você meio que justifica que seus defeitos são melhores que os deles. Porém, quando olha com atenção, quando realmente enxerga a pessoa ao seu lado, vê muitas coisas iguais. Esperança. Amor. Medo. Raiva. Quando olha com atenção, percebe que vocês são parecidos de muitas maneiras. O sangue de todos nós é vermelho, e até mesmo o coração de um monstro pode se partir. Você só precisa se lembrar de sempre olhar com atenção.
Brittainy C. Cherry (Disgrace)
A quarta-feira amanhecia quando olhei pela janela. Nas pontes, as luzes cintilantes já haviam empalidecido. O sol nascente parecia um pântano de fogo no horizonte. O rio, ainda escuro e misterioso, cortado pelas pontes que tomavam uma coloração cinza e gélida, com um toque cálido do sol que ardia no céu. Ao percorrer com o olhar a multidão de telhados, com as torres e os campanários das igrejas que se elevavam sobre Londres em um céu invulgarmente claro, o sol nasceu e foi como se tivessem retirado um véu do rio, e milhões de fagulhas explodiram na superfície das águas. Também foi como se tivessem tirado o véu que me encobria, e me senti forte e bem-disposto.
Charles Dickens (Great Expectations)
Por um instante a morte soltou-se a si mesma, expandindo-se até às paredes, encheu o quarto todo e alongou-se como um fluido até à sala contígua, aí uma parte de si deteve-se a olhar o caderno que estava aberto sobre uma cadeira, era a suite número seis opus mil e doze em ré maior de Johann Sebastian Bach composta em cöthen e não precisou de ter aprendido música para saber que ela havia sido escrita, como a Nona Sinfonia de Beethoven, na tonalidade da alegria, da unidade entre os homens, da amizade e do amor. Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte deixou-se cair de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito, e por isso é que tinha joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos escondia, e uns ombros que tremiam não se sabe porquê, chorar não será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua. Assim como estava, nem visível nem invisível, em esqueleto nem mulher, levantou-se do chão como um sopro e entrou no quarto.
José Saramago (Death with Interruptions)
Ficámos de novo sem assunto. Olhei à minha volta. O branco é triste como o negro, nunca antes o tinha sentido. (...) Não lhe acariciei a mão, nem lhe pus a minha sobre a testa, num gesto de consolação. Não fiz nada disso. E devia-o ter feito. Mas que a tristeza me dominou, que apeteceu chorar, por ver o meu pai tão doente, isso era verdade. Ele tê-lo-ia compreendido? Decerto é ilusão julgarmos que outras pessoas podem compartilhar dos nossos sentimentos através de simples palavras. Se eu dissesse que vejo na memória um homem encolhido na cadeira, metido num fato largo demais como se não pertencesse, com as mãos amarelo torcidas sobre o ventre e o olhar fixo no chão, alguém o verá como eu o vi?
Ilse Losa (O Mundo Em Que Vivi)
Comportamo-nos como se as pessoas de quem gostamos fossem durar para sempre. Em vida não fazemos nunca o esforço consciente de olhar para elas como quem se prepara para lembrá-las. Quando elas desaparecem, não temos delas a memória que nos chegue. Para as lembrar, que é como quem diz, prolongá-las. A memória é o sopro com que os mortos vivem através de nós. Devemos cuidar dela como da vida. Devemos tentar aprender de cor quem amamos. Tentar fixar. Armazená-las para o dia em que nos fizerem falta. São pobres as maneiras que temos para o fazer, é tão fraca a memória, que todo o esforço é pouco. Guardá-las é tão difícil. Eu tenho um pequeno truque. Quando estou com quem amo, quando tenho a sorte de estar à frente de quem adivinho a saudade de nunca mais a ver, faço de conta que ela morreu, mas voltou mais um único dia, para me dar uma última oportunidade de a rever, olhar de cima a baixo, fazer as perguntas que faltou fazer, reparar em tudo o que não vi; uma última oportunidade de a resguardar e de a reter. Funciona. Miguel Esteves Cardoso, in 'As Minhas Aventuras na República Portuguesa
Miguel Esteves Cardoso (As Minhas Aventuras na República Portuguesa)
(...) Não há um caseiro, não há um pescador que não saiba ler e que não leia. Pensamos que os livros, em vez de criarem bolor atrás de uma grade de ferro, longe dos olhares curiosos, se destinam a ficar gastos sob os olhos dos leitores. Assim, estes volumes passam de mão em mão, folheados, lidos e relidos, e muitas vezes só regressam à sua secção após um ou dois anos de ausência.
Julio Verne (Journey to the Center of the Earth)
quando os nossos corpos se separaram olhámo-nos quase a desejar [ser felizes. vesti-me devagar, o corpo a ser ridículo. disse espero que encontres [um homem que te ame, e ambos baixámos o olhar por sabermos que esse [homem não existe. despedimo-nos. tu ficaste para sempre deitada na cama e nua, eu saí [para sempre na noite. olhámo-nos pela última vez e despedimo-nos sem sequer [nos conhecermos.
José Luís Peixoto (A Criança em Ruínas)
Brianna olhou para seu relógio, ainda surpresa em vê-lo ali. Ainda faltava meia hora. Se pudessem evitar derramamento de sangue até... Um grito lancinante vindo de cima e ela fez uma careta. A ajudante, menos preparada, deixou cair sua prancheta de anotações com um gritinho. - MAMÃE! - Jem, em tom de queixa. - O QUE FOI? - ela rugiu em resposta. - Estou OCUPADA! -Mas mamãe! Mandy me BATEU! -veio o relato indignado do alto da escada. Erguendo os olhos, ela podia ver a parte de cima de sua cabeça, a luz da janela brilhando em seus cabelos. - É mesmo? Bem... - Com uma VARINHA! - Que tipo de... - De PROPÓSITO! - Bem, não acho... - E... - uma pausa antes do desfecho incriminador - ELA NÃO PEDIU DESCULPAS! O construtor e sua ajudante desistiram de procurar larvas de caruncho para acompanhar a emocionante narrativa, e agora ambos olhavam para Brianna, sem dúvida esperando algum decreto salomônico. Brianna fechou os olhos por um instante. - MANDY - ela berrou. - Peça desculpas! - Não! - veio uma recusa estridente de cima. - Sim, tem que pedir! - veio a voz de Jem, seguida de ruídos de luta. Brianna dirigiu-se às escadas, com um olhar assassino. Assim que botou o pé no degrau, Jem emitiu um grito agudo. - Ela me MORDEU! - Jeremiah Mackenzie, nem PENSE em devolver a mordida! - gritou. - Vocês dois, parem com isso agora mesmo! Jem enfiou uma cabeça desgrenhada pelo corrimão, os cabelos arrepiados. Usava uma brilhante sombra azul nos olhos e alguém aplicara batom cor-de-rosa em uma forma tosca de boca de uma orelha à outra. - Ela é uma pestinha - ele informou furiosamente aos fascinados espectadores embaixo. - Meu avô disse.
Diana Gabaldon (A Breath of Snow and Ashes (Outlander, #6))
Eu espero alguém que não desista de mim mesmo quando já não tem interesse. Espero alguém que não me torture com promessas de envelhecer comigo, mas sim que realmente envelheça comigo. Espero alguém que se orgulhe do que escrevo, que me faça ser mais amigo dos meus amigos e mais irmão do meu irmão. Espero alguém que não tenha medo do escândalo, mas tenha medo da indiferença. Espero alguém que ponha bilhetinhos dentro daqueles livros que vou ler até o fim. Espero alguém que se arrependa rápido de suas grosserias e me perdoe sem querer. Espero alguém que me avise que estou repetindo a roupa na semana. Espero alguém que nunca abandone a conversa quando não sei mais o que falar. Espero alguém que, nos jantares entre os amigos, dispute comigo para contar primeiro como nos conhecemos. Espero alguém que goste de dirigir para nos revezarmos em longas viagens. Espero alguém disposto a conferir se a porta está fechada e o fogão desligado, se meu rosto está aborrecido ou esperançoso. Espero alguém que prove que amar não é contrato, que o amor não termina com nossos erros. Espero alguém que não se irrite com a minha ansiedade. Espero alguém que possa criar toda uma linguagem cifrada para que ninguém nos recrimine. Espero alguém que arrume ingressos de teatro de repente, que me sequestre ao cinema, que cheire meu corpo suado depois de uma corrida como se ainda fosse perfume. Espero alguém que não largue as mãos dadas nem para coçar o rosto. Espero alguém que me olhe demoradamente quando estou distraído, que me telefone para narrar como foi seu dia. Espero alguém que procure um espaço acolchoado em meu peito. Espero alguém que minta que cozinha e só diga a verdade depois que comi. Espero alguém que leia uma notícia, veja que haverá um show de minha banda predileta, e corra para me adiantar por e-mail. Espero alguém que ame meus filhos como se estivesse reencontrando minha infância e adolescência fora de mim. Espero alguém que fique me chamando para dormir, que fique me chamando para despertar, que não precise me chamar para amar. Espero alguém com uma vocação pela metade, uma frustração antiga, um desejo de ser algo que não se cumpriu, uma melancolia discreta, para nunca ser prepotente. Espero alguém que tenha uma risada tão bonita que terei sempre vontade de ser engraçado. Espero alguém que comente sua dor com respeito e ouça minha dor com interesse. Espero alguém que prepare minha festa de aniversário em segredo e crie conspiração dos amigos para me ajudar. Espero alguém que pinte o muro onde passo, que não se perturbe com o que as pessoas pensam a nosso respeito. Espero alguém que vire cínico no desespero e doce na tristeza. Espero alguém que curta o domingo em casa, acordar tarde e andar de chinelos, e que me pergunte o tempo antes de olhar para as janelas. Espero alguém que me ensine a me amar porque a separação apenas vem me ensinando a me destruir. Espero alguém que tenha pressa de mim, eternidade de mim, que chegue logo, que apareça hoje, que largue o casaco no sofá e não seja educada a ponto de estendê-lo no cabide. Espero encontrar uma mulher que me torne novamente necessário.
Fabrício Carpinejar
É triste pensar que a mocidade É um prêmio que nos foi dado em vão, Que ela nos iludiu, na verdade, E nós lhe pagamos com traição; Que os nossos melhores desejos, Que os nossos sonhos, num lampejo, Viraram cinzas, murchas e tortas, Como folhas pelo outono mortas. É insuportável olhar para a frente E só ver um banquete infinito, Ver na vida um árido rito, Seguir com ar solene essa gente, Sem compartilhar opiniões Nem ódios nem dores nem paixões.
Alexander Pushkin (Eugene Onegin)
Ia em direção ao ferry e quando cheguei à esquina parei a ver o que ele fazia. Foi a última vez que o vi e lembro-me muito claramente. Caminhou pelo molhe e parou junto ao poste de um candeeiro, a olhar para o mar. O único ser vivo numa cidade morta das Caraíbas: uma figura alta num fato gasto de Palm Beach, o seu único fato, agora cheio de pó e manchado de relva, com os bolsos largos, sozinho num molhe no fim do mundo imerso nos seus pensamentos
Hunter S. Thompson
- Que ondas enormes... - exclamou Thomas Buddenbrook.- Repara como se aproximam e rebentam, se aproximam e rebentam, uma atrás da outra, sem fim, sem propósito, mecânica e desordenadamente. E, no entanto, o seu marulhar é tão tranquilizador e reconfortante, como todas as coisas simples e necessárias da vida. Aprendi a gostar cada vez mais do mar... dantes, talvez preferisse as montanhas, porque ficavam mais longe daqui. Agora já não me atraem nada. Creio que apenas sentiria medo e vergonha. É que elas são muito caprichosas, tão irregulares, tão diversas... de certeza que me iria sentir muito pequeno ao pé delas. Que espécie de pessoas serão essas que preferem a monotonia do mar? Tenho a impressão de que são as que observaram por demasiado tempo- e com demasiada profundidade- as teias do seu mundo interior e que a única coisa que exigem agora, pelo menos do mundo exterior, é simplicidade... Não se trata de comparar as escaladas audazes pela montanha com o descanso sereno na areia da praia. Adiferença reside no olhar que se dirige numa e noutra direcção. Olhos seguros, obstinados e felizes, transbordantes de iniciativa, determinação e vitalidade, erram de cume em cume, ao passo que sobre a imensidão do mar- e das ondas que, conduzidas por um fatalismo místico e hipnótico, dançam e volteiam- repousa um olhar sonhador e velado, sábio e desalentado, o olhar de quem já alguma vez espreitou as profundezas e vislumbrou o triste caos da existência... Saúde e doença, é essa a grande diferença. Intrépidos, escalamos a extraordinária diversidade das montanhas denteadas e acidentadas, das alturas que rasgam os céus, a fim de pormos à prova a nossa vitalidade, intacta ainda. Repousamos, contudo, na ampla simplicidadedo mundo exterior, quando estamos cansados do caos que reina no interior.
Thomas Mann (Buddenbrooks: The Decline of a Family)
Acabei aprendendo que a gente sempre verá alguém reagindo de um jeito diferente, conforme o sentido que uma palavra ganhe na cabeça dessa pessoa. Para você, A pode significar apenas A; já um outro pode entender que A é o que vem antes de B, C e D. Você pode olhar para o copo com água até a metade e achar que está meio cheio, outro pode ver o mesmo copo e pensar que ele está meio vazio. E cada um vai reagir de acordo com o sentido que dá para cada coisa na vida.
Camilo Gomes Jr. (Em memória)
O prazer é uma experiência dos sentidos, não difere do puro olhar ou do puro sabor com que um belo fruto nos enche a língua; é uma experiência grande e infindável que nos é dada, um saber do mundo, a plenitude e o esplendor de todo o saber. E que a tenhamos não é mau; o que é mau é quase todos usarem mal e desperdiçarem essa experiência e tomarem-na como excitante nos momentos fatigados da sua vida e como distracção, em vez de concentração, para os pontos altos.
Rainer Maria Rilke (Letters to a Young Poet)
Enquanto o olhava, saboreando assim, em sua irritação, uma espécie de volúpia depravada, Léon avançou um passo. O frio a empalidecê-lo parecia derramar em sua face um langor mais suave; entre a sua gravata e o seu pescoço, a gola da camisa, um tanto frouxa, deixava ver a pele; uma ponta de orelha ultrapassava uma mecha de cabelo, e seu grande olhar azul, alçando-se às nuvens, pareceu a Emma mais límpido e mais belo do que os largos das montanhas onde o céu se espelha.
Gustave Flaubert (Madame Bovary)
Ian permaneceria na aldeia por alguns dias, para se certificar de que Hiram e o povo de Pássaro estavam de comum acordo. No entanto, Jamie não estava absolutamente certo de que o senso de responsabilidade de Ian fosse sobrepujar seu senso de humor - de certa forma, o senso de humor de Ian tendia para o lado dos índios. Uma palavra da parte de Jamie poderia, portanto, vir a calhar, só por precaução. - Ele tem mulher - Jamie disse a Pássaro, indicando Hiram com um movimento da cabeça, o qual agora estava empenhado em uma conversa séria com dois dos índios mais velhos. - Acho que ele não gostaria de uma mulher em sua cama. Ele pode ser indelicado com ela, não compreendendo o gesto de cortesia. - Não se preocupe - Penstemon disse, ouvindo a conversa. Olhou para Hiram e seu lábio curvou-se com desdém. - Ninguém iria querer um filho DELE. Agora, um filho SEU, Matador-de-Urso... - Ela lhe lançou um longo olhar por baixo das pestanas e ele riu, saudando-a com um gesto de respeito. Era uma noite perfeita, fria e revigorante, e a porta foi deixada aberta para que o ar pudesse entrar. A fumaça da fogueira erguia-se reta e branca, fluindo na direção do buraco no teto, seus fantasmas móveis parecendo espíritos ascendendo de alegria. Todos haviam comido e bebido ao ponto de um agradável estupor, e houve um silêncio momentâneo e uma difusa sensação de paz e felicidade. - É bom para os homens comerem como irmãos - Hiram observou para Urso-em-Pé, em seu titubeante tsalagi. Ou melhor, tentou. E afinal, Jamie refletiu, sentindo suas costelas rangerem sob a tensão, era realmente uma diferença muito pequena entre "como irmãos" e "seus irmãos". Urso-em-Pé deu um olhar pensativo a Hiram e afastou-se disfarçadamente para longe dele. Pássaro observou isso e, após um momento de silêncio, virou-se para Jamie. - Você é um homem muito engraçado, Matador-de-Urso - ele repetiu, sacudindo a cabeça. - Você venceu.
Diana Gabaldon (A Breath of Snow and Ashes (Outlander, #6))
É um pouco assim: há linhas de ar em volta da sua cabeça, do seu olhar, zonas de detenção dos seus olhos, do seu olfato, do seu paladar, ou seja, você anda com seu limite por fora e você não poderá ultrapassar esse limite quando pensar que já apreendeu plenamente qualquer coisa, a coisa que é igual a um iceberg, tem um pedacinho por fora e o mostra, com todo o resto do seu volume bem para lá do seu limite e foi assim que o Titanic afundou. Heste Holiveira sempre com os seus hexemplos. (SIC)
Julio Cortázar (Hopscotch)
Vão dar-te nome, vestir-te com o calor e o frio das estações, erguer-te das pedras, das estacas de madeira, das latas ferrugentas, das embalagens vazias de leite e detergente, dos pneus perdidos, com rosto de pessoa que respira. Despida de letras e de números ganharás o sangue do nome que tomares, de herói, árvore, estrela, oceano ou concha. E as janelas vão abrir-se todas as manhãs sobre o teu corpo, e dentro delas as pessoas estarão a olhar-te com a mansa inquietação de quem vê crescer um filho.
Alice Vieira (Lote 12 - 2º Frente)
Olhamos novamente para o homem e a natureza — com olhar mais desejoso: lembramo-nos, com sorriso melancólico, que agora sabemos coisas novas e diferentes em relação a eles, que um véu foi retirado — mas nos reanima ver novamente as luzes amortecidas da vida, e sair da claridade sóbria e terrível em que, como sofredores, víamos as coisas e através das coisas. Não nos aborrecemos quando os encantos da saúde recomeçam seu jogo — olhamos como que transformados, abrandados e ainda exaustos. Nesse estado não se pode ouvir música sem chorar.
Friedrich Nietzsche (Daybreak: Thoughts on the Prejudices of Morality)
Sabe o que me apetece fazer? Ficar nesta cama e vegetar. Podia vegetar muito confortavelmente aqui e deixar os outros tomar as decisões. – Deve ser você a tomá-las. Uma pessoa não pode viver como um vegetal. – Porquê? Deve ser maravilhoso viver como um vegetal – murmurou, com uma expressão distante de ternura no olhar. – É horrível. – Não, deve ser muito agradável estar livre de todas estas dúvidas e pressões. Creio que gostava de viver como um vegetal e não ter de tomar decisões importantes. – Que espécie de vegetal? – Um pepino ou uma cenoura.
Joseph Heller (Catch-22 (Artigo 22))
O amor era cheio de janelas abertas, correntes de ar, milhões de bactérias , fontes de medos, milhões de deimos, o amor podia destruir as paredes que erigíamos com tanto esmero, o amor podia até abraçar o estrangeiro, a distância, podia destruir toda a ética, deixar-nos à mercê do insólito, do inesperado, do horror da surpresa. A minha noção de amor, na juventude, era uma noção de propriedade. Se era algo que podia fazer parte da casa e da sua perpetuação, muito bem, poderia ser considerado. De outro modo, era uma fera, uma ferida, uma doença, tal como o meu pai me ensinara: o amor constrói-se, por isso a escolha deve ser racional e não passional, escolhemos uma pessoa adequada e depois vamos criando um edifício amoroso. O amor que nasce do ímpeto sentimental ou carnal é perigoso. É um ladrão de sobriedade e de objectividade. Barbarifica-nos. Temos de olhar para ele como quem olha para a porta e vê o que está do lado de fora. A passos, devagar e ponderadamente, vai arriscando, conquistando território selvagem e domesticando-o. A exaltação é para as galinhas. Os seres humanos decidem com ponderação, é tão simples quanto isso, não cacarejam nervosos.
Afonso Cruz (Princípio de Karenina (Geografias, #1))
Ela nem sequer está autorizada a comer pudim de chocolate. Azar o teu, Hannah, quem mandou não fui eu, foi o médico. Não tenho culpa de seres gorda e lenta e de eu ser magro e brilhante. Não tenho culpa de ser tão lindo que obrigam a mãe a parar na rua quando ela me vai passear no carrinho para poderem ver melhor o meu belo «punim» - tu bem a ouves a contar esta história, é uma coisa em que eu não tive a menor responsabilidade, um simples facto da natureza, eu ter nascido lindo e tu teres nascido, se não feia, pelo menos uma criança para quem ninguém tem especial vontade de olhar.
Philip Roth (Portnoy’s Complaint)
Nada.., que a tuga até num vale a pena…! Mambo que às vezes penso – epá, vais rir, eu sei, mas é o rabo das tugas… Meu, tábua d’engomar, a xoetice toda? Rabo foi aonde então, Nzambi lhes castigou assim porquê?, nossa observação que nós fazíamos, antigas missões na tuga e noutras europas mais, comissão disto e daquilo que dava é pra tirarmos comissões no nosso bolso, e nós ali no bar, fim de tarde, sem as palavras – os olhares só: uma tuga, duas tugas, muitas tugas, mas agora pra encontrar inda um rabo de acender mesmo as vistas? Passas mal. Uí, falo isso por causa da maka das culturas, diferenças só, que eu fico mesmo a pensar que a cultura está mesmo até nos nossos olhos de pessoas, tás a rir?, gala só então: um gajo é daqui, fica a pôr riso na dança dos tugas e outros europeus, ancas desarranjadas e não dão semba, tão a falar é malcriado, mambos dos brasileiros, carnaval só. Afinal? Mas depois, considera só: eles também a nos verem dançar e vestir e pôr cu duro, num vão falar dança dos bêbados?, a dar bungula puramente e pôr açúcar e as kabetulas todas, num vão dizer estamos a ficar parecidos com os macacos?, xinguilamentos musicais? Olhos deles, muadiê, tou ta pôr, e os nossos olhos todos de cada um: culturas!, num enormes plural e final das contas.
Ondjaki (Quantas Madrugadas Tem a Noite)
Era uma vez um pássaro. Adornado com um par de asas perfeitas e plumas reluzentes, coloridas e maravilhosas. Enfim, um animal feito para voar livre e solto no céu, e alegrar quem o observasse. Um dia, uma mulher viu o pássaro e apaixonou-se por ele. Ficou a olhar o seu voo com a boca aberta de espanto, o coração batendo mais rapidamente, os olhos brilhando de emoção. Convidou-o para voar com ela, e os dois viajaram pelo céu em completa harmonia. Ela admirava, venerava, celebrava o pássaro. Mas então pensou: talvez ele queira conhecer algumas montanhas distantes! E a mulher sentiu medo. Medo de nunca mais sentir aquilo com outro pássaro. E sentiu inveja, inveja da capacidade de voar do pássaro. E sentiu-se sozinha. E pensou: “vou montar uma armadilha. Da próxima vez que o pássaro surgir, ele não partirá mais.” O pássaro, que também estava apaixonado, voltou no dia seguinte, caiu na armadilha, e foi preso na gaiola. Todos os dias ela olhava o pássaro. Ali estava o objecto da sua paixão, e ela mostrava-o ás suas amigas, que comentavam: “Mas tu és uma pessoa que tem tudo.” Entretanto, uma estranha transformação começou a processar-se: como tinha o pássaro, e já não precisava de o conquistar, foi perdendo o interesse. O pássaro sem puder voar e exprimir o sentido da sua vida, foi definhando, perdendo o brilho, ficou feio – e a mulher já não lhe prestava atenção, apenas prestava atenção á maneira como o alimentava e como cuidava da sua gaiola. Um belo dia o pássaro morreu. Ela ficou profundamente triste, e passava a vida a pensar nele. Mas não se lembrava da gaiola, recordava apenas o dia em que o vira pela primeira vez, voando contente entre as nuvens. Se ela se observasse a si mesma, descobriria que aquilo que a emocionava tanto no pássaro era a sua liberdade, a energia das asas em movimento, não o seu corpo físico. Sem o pássaro a sua vida também perdeu o sentido, e a morte veio bater á sua porta. “Por que vieste?” perguntou á morte. “Para que possas voar de novo com ele nos céus”, respondeu a morte. “Se o tivesses deixado partir e voltar sempre, amá-lo-ias e admirá-lo-ias ainda mais; porém, agora precisas de mim para puderes encontrá-lo de novo.
Paulo Coelho (Eleven Minutes)
O mesmo acontece quando alguma cruel cilada do acaso impede o nosso inteligente e piedoso afeto de acorrer a tempo para ocultar a nossos olhares o que jamais devem contemplar, quando aquele é ultrapassado por estes, que, chegando primeiro e entregues a si mesmos, funcionam mecanicamente, à maneira de uma película, e nos mostram, em vez da criatura amada que já não existe desde muito, mas cuja morte o nosso afeto jamais quisera que nos fosse revelada, a nova criatura que cem vezes por dia ele revestia de uma querida e enganosa aparência. E como um enfermo que a si mesmo não via desde muito tempo, e que, compondo, a cada instante, o rosto, que ele não vê, segundo a imagem ideal que forma de si mesmo em pensamento, recua ao avistar no espelho, em meio de um rosto árido e deserto, a proeminência oblíqua e rósea de um nariz gigantesco como uma pirâmide do Egito, eu, para quem minha avó era ainda eu próprio, eu que jamais a vira a não ser em minh’alma, sempre no mesmo ponto do passado, através da transparência de recordações contíguas e superpostas, de súbito, em nosso salão que fazia parte de um mundo novo, o do tempo, o mundo em que vivem os estranhos de quem se diz “como envelheceu!”, eis que pela primeira vez e tão só por um instante, pois ela desapareceu logo, avistei no canapé, congestionada, pesada e vulgar, doente, cismando, a passear acima de um livro uns olhos, um olhar um pouco extraviado, a uma velha consumida que eu não conhecia.
Marcel Proust (The Guermantes Way)
Um imenso animal leiteiro aproximou-se da mesa de Zaphod Beeblebrox. Era um enorme e gordo quadrúpede do tipo bovino, com olhos grandes e protuberantes, chifres pequenos e um sorriso nos lábios que era quase simpático. – Boa noite – abaixou-se e sentou-se pesadamente sobre suas ancas –, sou o Prato do Dia. Posso sugerir-lhes algumas partes do meu corpo? – Grunhiu um pouco, remexeu seus quartos traseiros buscando uma posição mais confortável e olhou pacificamente para eles. Seu olhar se deparou com olhares de total perplexidade de Arthur e Trillian, uma certa indiferença de Ford Prefect e a fome desesperada de Zaphod Beeblebrox. – Alguma parte do meu ombro, talvez? – sugeriu o animal. – Um guisado com molho de vinho branco? – Ahn, do seu ombro? – disse Arthur, sussurrando horrorizado. – Naturalmente que é do meu ombro, senhor – mugiu o animal, satisfeito –, só tenho o meu para oferecer. Zaphod levantou-se de um salto e pôs-se a apalpar e sentir os ombros do animal, apreciando. – Ou a alcatra, que também é muito boa – murmurou o animal. – Tenho feito exercícios e comido cereais, de forma que há bastante carne boa ali. – Deu um grunhido brando e começou a ruminar. Engoliu mais uma vez o bolo alimentar. – Ou um ensopado de mim, quem sabe? – acrescentou. – Você quer dizer que este animal realmente quer que a gente o coma? – cochichou Trillian para Ford. – Eu? – disse Ford com um olhar vidrado. – Eu não quero dizer nada. – Isso é absolutamente horrível – exclamou Arthur -, a coisa mais repugnante que já ouvi. – Qual é o problema, terráqueo? – disse Zaphod, que agora observava atentamente o enorme traseiro do animal. – Eu simplesmente não quero comer um animal que está na minha frente se oferecendo para ser morto – disse Arthur. – É cruel! – Melhor do que comer um animal que não deseja ser comido – disse Zaphod. – Não é essa a questão – protestou Arthur. Depois pensou um pouco mais a respeito. – Está bem – disse –, talvez essa seja a questão. Não me importa, não vou pensar nisso agora. Eu só... ahn... O Universo enfurecia-se em espasmos mortais. – Acho que vou pedir uma salada – murmurou. – Posso sugerir que o senhor pense na hipótese de comer meu fígado? Deve estar saboroso e macio agora, eu mesmo tenho me mantido em alimentação forçada há meses. – Uma salada verde – disse Arthur, decididamente. – Uma salada? – disse o animal, lançando um olhar de recriminação para ele. – Você vai me dizer – disse Arthur – que eu não deveria comer uma salada? – Bem – disse o animal –, conheço muitos legumes que têm um ponto de vista muito forte a esse respeito. E é por isso, aliás, que por fim decidiram resolver de uma vez por todas essa questão complexa e criaram um animal que realmente quisesse ser comido e que fosse capaz de dizê-lo em alto e bom tom. Aqui estou eu! Conseguiu inclinar-se ligeiramente, fazendo uma leve saudação. – Um copo d’água, por favor – disse Arthur. – Olha – disse Zaphod –, nós queremos comer, não queremos uma discussão. Quatro filés malpassados, e depressa. Faz 576 bilhões de anos que não comemos. O animal levantou-se. Deu um grunhido brando. – Uma escolha muito acertada, senhor, se me permite. Muito bem – disse –, agora é só eu sair e me matar. Voltou-se para Arthur e deu uma piscadela amigável. – Não se preocupe, senhor, farei isso com bastante humanidade.
Douglas Adams (The Restaurant at the End of the Universe (The Hitchhiker's Guide to the Galaxy, #2))
Não havia ali ninguém. As suas palavras desvaneceram-se. Como um foguete se desvanece. As suas fagulhas, tendo traçado uma trajetória luminosa na noite, entregam-se a ela, a escuridão desce, derrama-se sobre os contornos das casas e torres; colinas sombrias a ruírem e a esfumarem-se. Mas apesar de ocultas, a noite continua cheia delas; privadas de cor, destituídas de janelas, existem mais intensamente, exprimem aquilo que a luz do dia não consegue transmitir - a inquietação a expectativa das coisas amontoadas na escuridão: aconchegadas nas trevas; despojadas do alívio que o amanhecer lhes traz quando, ao lavar as paredes de branco e cinza, ao salientar cada janela, ao erguer a neblina dos campos, mostrando as vacas vermelho-acastanhadas pacificamente a pastar, tudo volta a ser desvendado perante o olhar; tudo volta à vida.
Virginia Woolf (Mrs Dalloway)
Não havia ali ninguém. As suas palavras desvaneceram-se. Como um foguete se desvanece. As suas fagulhas, tendo traçado uma trajetória luminosa na noite, entregam-se a ela, a escuridão desce, derrama-se sobre os contornos das casas e torres; colinas sombrias a ruírem e a esfumarem-se. Mas apesar de ocultas, a noite continua cheia delas; privadas de cor, destituídas de janelas, existem mais intensamente, exprimem aquilo que a luz do dia não consegue transmitir - a inquietação a expectativa das coisas amontoadas na escuridão, aconchegadas nas trevas; despojadas do alívio que o amanhecer lhes traz quando, ao lavar as paredes de branco e cinza, ao salientar cada janela, ao erguer a neblina dos campos, mostrando as vacas vermelho-acastanhadas pacificamente a pastar, tudo volta a ser desvendado perante o olhar; tudo volta à vida.
Virginia Woolf (Mrs Dalloway)
Hoje sabemos que nem os átomos nem os prótons e nêutrons dentro deles são indivisíveis. Assim, a questão é: quais são as partículas de fato elementares, os blocos constituintes básicos a partir dos quais tudo é feito? Como o comprimento de onda da luz é muito maior do que o tamanho de um átomo, não podemos esperar “olhar” para as partes de um átomo do modo normal. Precisamos usar algo com um comprimento de onda muito menor. Como vimos no capítulo anterior, a mecânica quântica nos diz que, na verdade, todas as partículas são ondas e que, quanto mais elevada a energia de uma partícula, menor o comprimento de sua onda. Assim, a melhor resposta que podemos dar para a nossa pergunta depende de quão elevada é a energia da partícula à nossa disposição, pois isso determina quão pequena é a escala de comprimento que podemos observar.
Stephen Hawking (Uma breve história do tempo)
Quando brilhou a aurora, dissolveram-se Entre a luz as florestas encantadas Arvoredos azuis e sombras verdes, Como os astros da noite embranqueceram Através da verdade da manhã. E encontrei um país de areia e sol, Plano, deserto, nu e sem caminhos. Aí, ante a manhã, quebrado o encanto, Não fui sol nem céu nem areal, Fui só o meu olhar e o meu desejo. Tinha a alma a cantar e os membros leves E ouvia no silêncio os meus passos. Caminhei na manhã eternamente. O sol encheu o céu, foi meio-dia, Branco a pique, sobre as coisas mortas. Mais adiante encontrei a tarde líquida, A tarde leve, cheia de distâncias, Escorrendo de céus azuis e fundos Onde as nuvens se vão pra outros mundos. Um ponto apareceu no horizonte, Verde nos areais como um sinal. Era um lago entre calmos arvoredos Não bebi a sua água nem beijei O homem que dormia junto às margens. E ao encontro da noite caminhei.
Sophia de Mello Breyner Andresen (Poesia)
Chegando são e salvo à margem, virei-me e olhei para trás, para ver se ele ia me seguir pelo meio do mato e acabar comigo antes que eu tivesse a oportunidade de entrar na casa em que Coleman Silk passara a infância e, tal como Steena Palsson tantos anos antes, almoçar com a família dele em East Orange, o convidado branco daquele domingo. Só de olhar para ele senti o terror do trado — mesmo vendo que ele voltara a se sentar no balde: o branco gelado da lagoa, circundando uma manchinha minúscula que era um homem, o único sinal humano em toda a natureza, como o X de um analfabeto numa folha de papel. Ali estava, se não a história completa, a imagem completa. É muito raro, neste nosso final de século, a vida nos oferecer uma visão pura e tranquila como esta: um homem solitário sentado num balde, pescando através de um buraco aberto numa camada de gelo com meio metro de espessura, numa lagoa cuja água está constantemente se renovando, no alto de uma montanha bucólica na América.
Philip Roth (The Human Stain (The American Trilogy, #3))
Algumas coisas são inexplicáveis pra quem está de fora. Existem códigos secretos que só pertencem aos que partilharam a mesma mesa, o mesmo quarto, as mesmas brincadeiras, os mesmos pais. Talvez cumplicidade e camaradagem sejam as palavras certas pra definir esse tipo de amor, que começa com um "não me entrega que eu também não te entrego", e segue vida afora compreendendo os traumas ocultos, as dores disfarçadas, a raiva acumulada, a alegria infantil, a inércia justificada. Mesmo longe, as mãos se reconhecem e se apoiam. Mesmo sem palavras, o entendimento é real. E no fim das contas, é aquele olhar cúmplice ("não me dedura por favor...") que nos levanta e aquece. É aquele olhar que justifica e valida a beleza da vida, do mundo, das pessoas. E, de alguma forma que não sei dizer, traz alívio e paz. Não posso imaginar que aquilo que dividimos há tanto tempo me apazigue como fazem essas lembranças. Nada de mim está mais lá, apenas a memória de velhos pijamas de dormir e a voz suave de mamãe contando histórias pra explicar a vida e justificar o amor.
Fabíola Simões
Uma noite fiquei a dormir na tua cama, disse. Entendamo-nos, este homem é oleiro, trabalhador manual portanto, sem finezas de formação intelectual e artística tirando as necessárias ao exercício da sua profissão, de uma idade já mais do que madura, criou-se num tempo em que o mais corrente era terem as pessoas de sofrer, cada uma em si mesma e todas em toda a gente, as expressões do sentimento e as ansiedades do corpo, e se é certo que não seriam muitos os que no seu meio social e cultural poderiam pôr-lhe um pé adiante em matéria de sensibilidade e de inteligência, ouvir dizer assim de supetão, da boca de uma mulher com quem nunca jazera em intimidade, que dormiu, ela, na sua cama dele, por muito energicamente que estivesse a andar em direcção à casa onde o equívoco caso se produziu, por força haveria de suspender o passo, olhar com pasmo a ousada criatura, os homens, confessemo-lo de uma vez, nunca acabarão de entender as mulheres, felizmente que este conseguiu, sem saber bem como, descobrir no meio da sua confusão as palavras exactas que a ocasião pedia, Nunca mais dormirás noutra.
José Saramago (The Cave)
As mãos de Zahara apertaram fortemente a saia. - Vais infligir-me a humilhação de ser eu a dizê-lo? Lochan levantou-se. - Jamais desejaria que te humilhasses. Eu sei, sei-o há já demasiado tempo. Zahara sentiu o coração pular. - Se o sabes, porque nunca… - Esquece-me, Zahara, pois não sinto o mesmo – interrompeu ele. Ela recuou. - Mentes… Porquê? Eu sei… O modo como me tratas, como me olhas. Eu sei que gostas de mim, vejo-o no teu olhar, vejo-o neste instante! Lochan sentiu os olhos dela mergulharem nos seus. - Durante anos foram-me apresentados pretendentes das mais nobres famílias – ouviu – Todos me dariam o conforto a que estava habituada, todos me cobririam de jóias, de vestidos luxuosos... no entanto, eu recusava-os. Recusava-os porque não via nada no seu olhar. Para eles, eu seria como um troféu, serviria apenas para provocar inveja. Uma nuvem cobriu o sol, deixando-os na sombra. - Inconscientemente tornei-me arrogante, altiva, somente para os afastar de mim, para que não desejassem casar-se com alguém como eu… Mas tu, tu viste para além da máscara que construí. Naquele dia, na capital, tu viste o que ninguém foi capaz de ver: o meu coração. - Zahara… - Não acredito que não sintas qualquer amor por mim. Lochan voltou-lhe as costas. - Não quero saber se és pobre, não me importo com o teu passado. O que sinto por ti é o que sempre desejei sentir – ouviu. O silêncio envolveu-os por momentos. - Lamento… Zahara correu para a frente dele. No seu olhar era visível desespero. - Não te agrado, é isso? Ele limitou-se a desviar o rosto. - Responde-me! - Como poderia ficar indiferente a alguém como tu – disse voltando a olhar nos olhos dela. - Então porquê, porquê? Lochan agarrou-lhe nos ombros, assustando-a. - Esquece-me por favor. Odeia-me. Odeia-me por isto com todas as tuas forças, mas não me ames, nunca me ames, Zahara. Lochan largou-lhe os ombros. Ela ficou sem reacção, e as lágrimas voltaram a molhar o seu rosto. - Não me faças isto… - implorou. O olhar dele tornou-se gélido. O seu rosto mostrava-se agora tão indecifrável, como o de uma estátua. - Odeia-me pelo sofrimento que te acabo de causar e depois esquece-me – disse deixando-a só. Zahara viu-o desaparecer por entre as colunas do palácio.
Susana M. Almeida (O Renascer (Estrela de Nariën, #2))
De início, e apesar da impressão causada pelo tiroteio, senti-me desiludido por tudo. Outrora, questionara-me repetidamente sobre o motivo de serem tão extremamente raras as pessoas que alcançavam viver por um ideal; mas agora, via que muitas, se não todas, eram capazes de morrer por um nobre fito, desde não fosse específico de si próprias e livremente eleito por cada qual. Ele deveria ser comum a todos e ter-lhes sido transmitido. Com o passar do tempo, porém, compreendi que avaliara os homens demasiado negativamente. Apesar da uniformização que o serviço militar e o perigo exerciam sobre eles, observei muitos, tanto entre os vivos como entre os moribundos, que, de facto, se abeiravam da vontade do destino de forma magnânime. Muitos, mesmo muitos, tinham não somente durante o ataque, mas permanentemente, o olhar fixo e longínquo, quase como se estivessem possessos, um olhar que nada sabe acerca das finalidades e representa uma total entrega ao monstro. Quaisquer que fossem as suas convicções e opiniões, eles estavam preparados, eram prestáveis e, a partir deles, seria possível configurar-se o futuro. Ainda que o mundo parecesse empedernidamente norteado para a guerra e o heroísmo, para a honra e outros altos ideais, muito embora a tonalidade de cada voz parecesse inumana e inverosímil, tudo isto não passava de uma fachada, tal como a questão acerca da finalidade aparente e dos intuitos políticos da guerra, eram pura exterioridade. Por debaixo, havia alguma coisa a gerar-se: algo como uma nova humanidade pois, em muitos, dos quais alguns morreram à minha beira, pressenti ter-se-lhes tornado sensível que o ódio e a fúria, o morticínio e a destruição, não tinham qualquer relação com os alvos para os quais eram dirigidos. Não, tanto as coisas sobre as quais se fazia pontaria como os fins a atingir eram absolutamente fortuitos. Os sentimentos, por mais recônditos e brutais que fossem, não se orientavam contra o inimigo: a sua máquina sanguinária era, somente, uma cintilação do âmago, da alma cindida, a qual ansiava por correr desvairadamente e matar, aniquilar e morrer, para lhe ser possível nascer de novo. Era um pássaro gigantesco que se esforçava por libertar-se do ovo, e o ovo era o mundo, e o mundo teria de ficar em destroços.
Hermann Hesse (Demian)
Repensei no corpo em desordem da professora, no corpo desgovernado de Melina. Sem uma razão evidente, comecei a olhar com atenção para as mulheres ao longo da estrada. De repente me veio a impressão de ter vivido com uma espécie de limitação do olhar: como se só fosse capaz de focalizar nosso grupo de meninas, Ada, Gigliola, Carmela, Marisa, Pinuccia, Lila, a mim mesma, minhas colegas de escola, e jamais tivesse realmente notado o corpo de Melina, o de Giuseppina Peluso, o de Nunzia Cerullo, o de Maria Carracci. O único corpo de mulher que eu tinha examinado com crescente preocupação era a figura claudicante de minha mãe, e apenas por aquela imagem me sentira perseguida, ameaçada, temendo até agora que ela se impusesse de chofre à minha própria imagem. Naquela ocasião, ao contrário, vi nitidamente as mães da família do bairro velho. Eram nervosas, eram aquiescentes. Silenciavam de lábios cerrados e ombros curvos ou gritavam insultos terríveis aos filhos que as atormentavam. Arrastavam-se magérrimas, com as faces e os olhos encavados, ou com traseiros largos, tornozelos inchados, as sacolas de compra, os meninos pequenos que se agarravam às suas saias ou queriam ser levados no colo. E, meu Deus, tinham dez, no máximo vinte anos a mais do que eu. No entanto pareciam ter perdido os atributos femininos aos quais nós, jovens, dávamos tanta importância e que púnhamos em evidência com as roupas, com a maquiagem. Tinham sido consumidas pelo corpo dos maridos, dos pais, dos irmãos, aos quais acabavam sempre se assemelhando, ou pelo cansaço ou pela chegada da velhice, pela doença. Quando essa transformação começava? Com o trabalho doméstico? Com as gestações? Com os espancamentos? Lila se deformaria como Nunzia? De seu rosto delicado despontaria Fernando, seu andar elegante se transmutaria nas passadas abertas e braços afastados do tronco, de Rino? E também meu corpo, um dia, cairia em escombros, deixando emergir não só o de minha mãe, mas ainda o do pai? E tudo o que eu estava aprendendo na escola se dissolveria, o bairro tornaria a prevalecer, as cadências, os modos, tudo se confundiria numa lama escura, Anaximandro e meu pai, Fólgore e dom Achille, as valências e os pântanos, os aoristos, Hesíodo e a vulgariadade arrogante dos Solara, como de resto há milênios acontecia na cidade, sempre mais decomposta, sempre mais degradada?
Elena Ferrante (The Story of a New Name (Neapolitan Novels, #2))
O outro não é apenas um duplo especular, ao modo de um espelho do Eu. Para começar, o outro tem dois olhos, não apenas um. Então em qual ponto de vista devemos nos colocar? Se os olhos piscam ao mesmo tempo, a imagem permanece ainda que não esteja em presença. Mas, se alternamos o piscar entre um olho e outro, o objeto começa a se movimentar, em função de um efeito de ilusão chamado paralaxe. Ou seja, o fato de nós termos uma visão binocular e supormos no outro um único ponto de vista corresponde a uma diferença estrutural entre o eu e o outro. Isso ocorre também porque há um ponto de ausência na visão, bem no centro do cone ótico, chamado mácula. Além disso, a visão, tomada nesse sentido geométrico, equivale à audição, não à escuta. Para escutar e não só ouvir, assim como olhar e não só ver, é preciso subtrair a representação antecipada que fazemos do outro, da imagem, e que não é uma ilusão ótica, mas uma ilusão cognitiva. Quando alguém começa a aprender a arte do desenho, uma das primeiras lições, e talvez a mais importante, no sentido inaugural, é que você deve se ater ao que objetivamente está vendo, não ao que se “sabe” sobre o formato de uma maçã ou das arestas de um cubo. Isso significa que, para que os dois olhos colaborem na apreensão de uma única imagem, é preciso pensar a partir do quadro, colocar-se no lugar do outro, mas também supor o que o quadro “ignora” sobre sua própria composição. Por exemplo, o tamanho, a disposição e a distribuição dos volumes impõem involuntariamente ao observador que se coloque no ponto exato em que o quadro forma uma boa imagem. Se nos colocamos a menos de um palmo ou a mais de cem metros da Mona Lisa, sua experiência estética simplesmente será outra. Ocorre que, nesse ponto, ao qual nos ajustamos automaticamente – como ajustamos a distância exata à qual um bebê é capaz de formar seu foco visual, sem que ninguém tenha nos ensinado isso –, emerge outro fenômeno: nos vemos sendo vistos. Nossa percepção é a de que fazemos parte da tela e estamos imersos no espaço do museu. Ou seja, recebemos nossa própria imagem, que nos enxerga ali onde não nos vemos. É assim também com a escuta. Reconhecemos o que o outro não escuta, o que ele mesmo diz, e não adianta simplesmente dizer isso, gritar ou se exasperar, porque ele não escuta. E isso acontece porque, no fundo, “não pode escutar”, pois aquilo foi feito para ficar nessa zona cinzenta do não escutado. Não obstante, há restos – penumbras, zonas de transição, rastros daquilo que não se escuta perfeitamente –, mas que se denunciam como ruídos, particularmente em distorções, exageros, inibições e excepcionalidades da sua expressividade. O senso comum tenta eliminar tais ruídos entendendo que atrapalham a funcionalidade das relações. A psicanálise dá atenção a essas bobagens e imperfeições comunicativas, pois presume que nelas falta o que não pode ser realmente escutado e que de fato está determinando impasses relacionais.
Christian Dunker (A arte de amar (Portuguese Edition))
Como se me afiguravam felizes e satisfeitos todos aqueles homens que eu encontrava no meu caminho! A vida, na verdade, era para eles como uma imensa sala de baile. Nem a sombra de uma preocupação nos seus olhares nem a mais leve aparência de cansaço nos seus gestos! Nunca, talvez, um pensamento inquietante, uma angústia misteriosa lhes teria perturbado as almas! E ao lado desta humanidade que se cruzava comigo, eu, jovem, quase virgem de experiência, já esquecera o que era felicidade! Lutei com este pensamento até me persuadir de que se cometia comigo uma cruel injustiça. Por que tinham sido os últimos meses tão terrivelmente duros para mim? Nem já me reconhecia tão pertinaz caíra sobre mim todo o gênero de inesperadas preocupações! Não me era possível sentar-me num banco, ir a qualquer parte, fosse onde fosse, sem ser vítima de imprevistas casualidades, de angustiosas humilhações que me obcecavam a imaginação e dispersavam aos quatro ventos as minhas resoluções. (...) Continuando a analisar a minha vida, acabei por me convencer de que o fato de ter sido eu o eleito para expiar as faltas comuns da Humanidade constituía um ato arbitrário de Deus Nosso Senhor. Mesmo depois de ter encontrado um banco e de me sentar, ainda me obcecavam as sugestões desse pensamento, a ponto de me impedirem qualquer outra reflexão. Desde aquele dia de maio, em que haviam começado as minhas adversidades, era-me impossível seguir facilmente o rasto das minhas progressivas fraquezas. Empalideci subitamente e as minhas forças dificilmente continuaram concordando com os meus desejos, era como se um enxame de insetos mordedores e teimosos tivessem feito ninho no meu espírito.
Knut Hamsun (Hunger)
O tempo que nos resta "De súbito sabemos que é já tarde. Quando a luz se faz outra, quando os ramos da árvore que somos soltam folhas e o sangue que tínhamos não arde como ardia, sabemos que viemos e que vamos. Que não será aqui a nossa festa. De súbito chegamos a saber que andávamos sozinhos. De súbito vemos sem sombra alguma que não existe aquilo em que nos apoiávamos. A solidão deixou de ser um nome apenas. Tocamo-la, empurra-nos e agride-nos. Dói. Dói tanto! E parece-nos que há um mundo inteiro a gritar de dor, e que à nossa volta quase todos sofrem e são sós. Temos de ter, necessariamente, uma alma. Se não, onde se alojaria este frio que não está no corpo? Rimos e sabemos que não é verdade. Falamos e sabemos que não somos nós quem fala. Já não acreditamos naquilo que todos dizem. Os jornais caem-nos das mãos. Sabemos que aquilo que todos fazem conduz ao vazio que todos têm. Poderíamos continuar adormecidos, distraídos, entretidos. Como os outros. Mas naquele momento vemos com clareza que tudo terá de ser diferente. Que teremos de fazer qualquer coisa semelhante a levantarmo-nos de um charco. Qualquer coisa como empreender uma viagem até ao castelo distante onde temos uma herança de nobreza a receber. O tempo que nos resta é de aventura. E temos de andar depressa. Não sabemos se esse tempo que ainda temos é bastante. E de súbito descobrimos que temos de escolher aquilo que antes havíamos desprezado. Há uma imensa fome de verdade a gritar sem ruído, uma vontade grande de não mais ter medo, o reconhecimento de que é preciso baixar a fronte e pedir ajuda. E perguntar o caminho. Ficamos a saber que pouco se aproveita de tudo o que fizemos, de tudo o que nos deram, de tudo o que conseguimos. E há um poema, que devíamos ter dito e não dissemos, a morder a recordação dos nossos gestos. As mãos, vazias, tristemente caídas ao longo do corpo. Mãos talvez sujas. Sujas talvez de dores alheias. E o fundo de nós vomita para diante do nosso olhar aquelas coisas que fizemos e tínhamos tentado esquecer. São, algumas delas, figuras monstruosas, muito negras, que se agitam numa dança animalesca. Não as queremos, mas estão cá dentro. São obra nossa. Detestarmo-nos a nós mesmos é bastante mais fácil do que parece, mas sabemos que também isso é um ponto da viagem e que não nos podemos deter aí. Agora o tempo que nos resta deve ser povoado de espingardas. Lutar contra nós mesmos era o que devíamos ter aprendido desde o início. Todo o tempo deve ser agora de coragem. De combate. Os nossos direitos, o conforto e a segurança? Deixem-nos rir... Já não caímos nisso! Doravante o tempo é de buscar deveres dos bons. De complicar a vida. De dar até que comece a doer-nos. E, depois, continuar até que doa mais. Até que doa tudo. Não queremos perder nem mais uma gota de alegria, nem mais um fio de sol na alma, nem mais um instante do tempo que nos resta." Miguel Gonçalves
eu
«Sabe, meu amor, que te amo. E que te amarei até morrer. É por isso que todo o resto me parece tão pouco, um nada imenso de nenhum valor. Sabe que te choro e te venero, e sobretudo que te espero. E sabe que te vejo, com olhos de quem vê, e que te conheço, como só conhece um livro quem o lê. Sabe que à amargura dos dias subtraí a doçura de te ter. Sim, o cintilar da vida, ao meu redor, por te ter. Por saber-te nunca muito longe, embora raramente aqui. por saber que, nos teus olhos - laivos de mel e coisas mais profundas, lucidez e racionalidade - leio que também me lês. Deslizemos agora para o silêncio, perfeição. Não vejo já necessidade de prender a tua mão, pois que sinto que te prendi. Ao teu olhar, que se enreda no meu. que estranhas asas povoam as minhas entranhas, murmuram a meus ouvidos. que grande és, que tola sou. Sabe, meu amor, que tenho plena consciência das nossas dimensões. Basta-me ter-te assim, como te tenho, para seguir pela vida a sorrir. Em mim não se apagarão mais luzes, em mim, à noite, acendem-se as estrelas. Fosse eu firmamento, e tu o cimento com que se constrói o mundo. Sem nós, nada. Reservatório de tudo. Conheço-te, milagre maior, e tenho-te, não podia ter-te melhor. Porque caminhas a meu lado, não acorrentado a mim. Porque me beijas a testa e porque te louvo as mãos. Homem honesto. Amor maior. Porque me guias na escuridão das ingenuidades - resquícios da infância - e porque não me apontas caminhos, descreves-me paisagens. Sim e não, talvez e também. Veremos o que dali vem. E eu, a teu lado, que tola sou, pequena e feliz, que feliz é quem amou assim um grande amor. Ecos de palavras, distantes. Que importa se não somos amantes? Se nunca o seremos? Sei que te amo e, nalguma linguagem, sei que me amas também. Se é na matemática dos racionais, se na pureza dos amigos, se no secretismo dos poetas, isso não sei. Sei que te carrego em mim e que, se fechar os olhos, me sorris. Estás comigo a todo o instante. Não te guardo em caixas, fotografias ou objectos. Caberias lá tu em caixas, mundo, permanecerias lá tu imóvel, como os objectos, vida. Quanto muito, vejo-te às vezes num livro cá por casa. Mas sei-te, e sei-te quase de cor. Não quero saber-te, na totalidade ou de cor. Não o poderia, é inalcançável. Tão grande és tu, que não acabas. Em mim nunca acabarás. A felicidade que a tua volta me trouxe. E sabe que vou chorar, «a cada ausência tua eu vou chorar». Mas não lágrimas; é paixão, fogo, urgência. Coisa física, átomos de energia em colisão. Ainda assim, ter-te-ei aqui, para seguir pela vida a sorrir. A cada vez que afastar os lençóis, pedir-te-ei que te chegues para lá. E ainda que a tua boca nunca sobre a minha pouse, e ainda que nunca venhas a sorrir enquanto te beijo, sabe, meu amor, que te amo, e que te amarei até morrer. Com a certeza de quem quer viver, de quem quer seguir, a vida inteira, com a alma enredada na tua. Que o teu chá seja fervido da minha chaleira, e que os teus livros disputem com os meus o espaço da prateleira. Meu amor, sabe que te amarei a vida inteira.»
Célia Correia Loureiro (Os Pássaros)
(Página 45) "A enfermaria zumbe da maneira como ouvi uma fábrica de tecido zumbir uma vez, quando o time de futebol jogou com a escola secundária na Califórnia. Depois de uma boa temporada, s promotores da cidade estavam tão orgulhosos e exaltados que pagavam para que fôssemos de avião até a Califórnia para disputar um campeonato de escolas secundárias com o time de lá. Quando chegamos à cidade tivemos de visitar um indústria local qualquer. Nosso treinador era um daqueles dados a convencer as pessoas de que o atletismo era educativo por causa do aprendizado proporcionado pelas viagens, e em todas as viagens que fazíamos ele carregava com o time para visitar fábricas de laticínios, fazendas de plantação de beterraba e fábricas de conservas, antes do jogo . Na Califórnia foi uma fábrica de tecido. Quando entramos na fábrica, a maior parte do time deu uma olhada rápida e saiu para ir sentar-se no ônibus e jogar pôquer em cima das malas, mas eu fiquei lá dentro numa canto, fora do caminho das moças negras que corriam de um lado para o outro entre as fileiras de máquinas. A fábrica me colocou numa espécie de sonho, todos aqueles zumbidos e estalos a chocalhar de gente e de máquinas sacudindo-se em espasmos regulares. Foi por isso que eu fiquei quando todos os outros se foram, por isso e porque aquilo me lembrou de alguma forma os homens da tribo que haviam deixado a aldeia nos últimos dias para ir trabalhar na trituradora de pedras para a represa. O padrão frenético, os rostos hipnotizados pela rotina... eu queria ir com o time, mas não pude. Era de manhã, no princípio do inverno, e eu ainda usava a jaqueta que nos deram quando ganhamos o campeonato - uma jaqueta vermelha e verde com mangas de couro e um emblema com o formato de uma bola de futebol bordado nas costas, dizendo o que havíamos vencido - e ela estava fazendo com que uma porção de moças negras olhassem. Eu a tirei , mas elas continuaram olhando. Eu era muito maior naquela época. " (Página 46) "Uma das moças afastou-se de sua máquina e olhou para um lado e para o outro das passagens entre as máquinas, para ver se o capataz estava por perto, depois veio até onde eu estava. Perguntou se íamos jogar na escola secundária naquela noite e me disse que tinha um irmão que jogava como zagueiro para eles. Falamos um pouco a respeito do futebol e coisas assim, e reparei como o rosto dela parecia indistinto, como se houvesse uma névoa entre nós dois. Era a lanugem de algodão pairando no ar. Falei-lhe a respeito da lanugem. Ela revirou os olhos e cobriu a boca com a mão, para rir, quando eu lhe disse como era parecido com o olhar o seu rosto numa manhã enevoada de caça ao pato. E ela disse : " Agora me diga para que é que você quereria nesse bendito mundo estar sozinho comigo lá fora, numa tocaia de pato ?" Disse-lhe que ela poderia tomar de conta da minha arma, e as moças começaram a rir com a boca escondida atrás das mãos na fábrica inteira. Eu também ri um pouco, vendo como havia parecido inteligente. Anda estávamos conversando e rindo quando ela agarrou meus pulsos e os apertou com as mãos. Os traços do seu rosto de repente se acentuaram num foco radioso; vi que ela estava aterrorizada por alguma coisa. - Leve-me - disse ela num murmúrio - Leve-me mesmo garotão. Para fora desta fábrica aqui, para fora desta cidade, para fora desta vida. Me leva para uma tocaia de pato qualquer, num lugar qualquer . Num outro lugar qualquer. Hem garotão, hem ?
Ken Kesey (One Flew Over the Cuckoo’s Nest)