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-- Crónica do Expresso: Nunca e Já --
Já tive muitos tios e tias. Já fiz de confidente, intermediário, amigo secreto, saco de pancada. Já mantive amizades atrozes, hoje estou protegido pela desconfiança. Já dormi ao relento porque estava apaixonado, ou porque tinha 20 anos. Já andei em baixo presumindo sem motivo a condenação ou a salvação. Já tentei ser jovem em jovem, e falhei, maduro em jovem, mas não funcionou, e jovem na maturidade, mas deixei-me disso. Já fui escuteiro, imaginem-me a atar nós e a montar tendas. Já fui advogado estagiário. Já jantei todas as noites com jornalistas. Já fui boicotado e vetado. Já andei três vezes à pancada. Já fui a algumas cidades estrangeiras a que não tenciono regressar, como Macau, fantasmagoria colonial onde nem se consegue dar com a campa de Camilo Pessanha. Já estive na Tomatina, uma experiência realmente divertida que não repetirei. Já me envolvi em polémicas, mas esgotou-se-me a paciência. Já encenei uma peça e já quase integrei uma banda. Já tomei decisões definitivas, mas nem todas se concretizaram. Já acreditei na “verdade”, depois tornei-me um relativista prático, embora não teórico. Já me senti um oitocentista e um romântico alemão, até descobrir Larkin. Já fui ao cinema cinco vezes por semana. Já me sentei tardes inteiras em esplanadas. Já escrevi poemas torrencialmente, ainda que não fossem poemas bons ou sequer poemas. Já escrevi textos à máquina e já enviei cartas e postais, uma época que terminou. Já me dediquei em vão à honra sem glória e à glória sem honra. Já acreditei. Já confiei. Já me importei, mas as coisas mudam.
Mas também há o que nunca fiz ou farei, porque passou o tempo, a oportunidade, a vontade. Nunca vivi no estrangeiro, faltou-me arrojo para isso. Nunca tive sorte quando a sorte favoreceu os audazes. Nunca falei bem em público, ainda que hoje, comparativamente, seja um Cícero. Nunca perdi uma segunda oportunidade de causar uma primeira impressão negativa. Nunca fui avaliado pelas minhas intenções, como abusivamente pretendia. Nunca confirmei aquilo que alguns amigos esperavam de mim. Nunca me dei bem com os correligionários políticos, sou como o aviador irlandês que não gosta de quem defende nem detesta quem ataca. Nunca consegui ser um bom católico, se bem que admitir isto já seja um começo. Nunca vi as pirâmides, nem Petra, nem a muralha de China, nem a cidade dos incas. Nunca voltei a Itália com o meu pai. Nunca cheguei a entrevistar Heaney, Marías ou Kundera. Nunca conheci a Nastassja Kinski. Nunca aprendi alemão para ler Hōlderlin. Nunca estudei dinamarquês por causa de Kierkegaard, como Unamuno. Leio bem três ou quatro línguas, mas nunca falei bem nenhuma. Nunca me especializei em nada, nem quero. Nunca escrevi para cinema. Nunca escrevi um romance. Há um ou outro verso meu que algumas pessoas sabem de cor, mas são versos de que não gosto. Nunca dei a outra face voluntariamente, mas involuntariamente dei muitas vezes. Nunca me arrependi de me ter arrependido. Nunca aproveitei o dia, e quero que Horácio vá dar banho ao cão. Nunca hesitei em hesitar. Nunca ou raramente me lembro de imediato de uma resposta excelente, porque sofro de “espírito da escada”: quando me ocorre a frase definitiva, já é tarde. Nunca confundi o belo e o bom, quer dizer, confundi sempre, mas nunca mais. Lembro-me de há 30 anos estudar Latim, e que “nunc” quer dizer “agora”.
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