“
Pergunto-vos agora: o que se pode esperar do
homem, como criatura provida de tão estranhas qualidades? Podeis cobri-lo de
todos os bens terrestres, afogá-lo em felicidade, de tal modo que apenas umas
bolhazinhas apareçam na superfície desta, como se fosse a superfície da água;
dar-lhe tal fartura, do ponto de vista econômico, que ele não tenha mais nada a
fazer a não ser dormir, comer pão de ló e cuidar da continuação da história
universal — pois mesmo neste caso o homem, unicamente por ingratidão e
pasquinada, há de cometer alguma ignomínia. Vai arriscar até o pão de ló e
desejar, intencionalmente, o absurdo mais destrutivo, o mais antieconômico,
apenas para acrescentar a toda esta sensatez positiva o seu elemento fantástico e
destrutivo. Desejará conservar justamente os seus sonhos fantásticos, a sua mais
vulgar estupidez, só para confirmar a si mesmo (como se isto fosse
absolutamente indispensável) que os homens são sempre homens e não teclas de
piano, que as próprias leis da natureza tocam e ameaçam tocar de tal modo que
atinjam um ponto em que não se possa desejar nada fora do calendário. Mais
ainda: mesmo que ele realmente mostrasse ser uma tecla de piano, mesmo que
isto lhe fosse demonstrado, por meio das ciências naturais e da matemática,
ainda assim ele não se tornaria razoável e cometeria intencionalmente alguma
inconveniência, apenas por ingratidão e justamente para insistir na sua posição.
E, no caso de não ter meios para tanto, inventaria a destruição e o caos,
inventaria diferentes sofrimentos e, apesar de tudo, insistiria no que é seu!
Lançaria a maldição pelo mundo e, visto que somente o homem pode
amaldiçoar (é um privilégio seu, a principal das qualidades que o distinguem dos
outros animais), provavelmente com a mera maldição alcançaria o que lhe cabe:
continuaria convicto de ser um homem e não uma tecla de piano! Se me
disserdes que tudo isso também se pode calcular numa tabela, o caos, a treva, a
maldição — de modo que a simples possibilidade de um cálculo prévio vai tudo
deter, prevalecendo a razão —, vou responder-vos que o homem se tornará louco
intencionalmente, para não ter razão e insistir no que é seu! Creio nisto, respondo
por isto, pois, segundo parece, toda a obra humana realmente consiste apenas em
que o homem, a cada momento, demonstre a si mesmo que é um homem e não
uma tecla! Ainda que seja com os próprios costados, mas que o demonstre; ainda
que seja como um troglodita, mas que demonstre. E, depois disso, como não
pecar, como não louvar o fato de que isto ainda não exista e que a vontade ainda
dependa o diabo sabe de quê...
”
”