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Escurecia rápido, o navio afastava-se do poente. A lembrança da sombra no rosto de Marina tornava mais fácil aceitar a morte. Uma fita triangular de navegação tremulava no meio de uma corda tesa, gorda do vento, como uma língua de réptil. O corpo estava frio, sem pulso nem sinal algum, completamente largado sobre o seu. Já não havia quem observasse o pôr do sol, não havia o que olhar, apenas uma faixa de luz parda que se diluía sobre o horizonte, cada vez mais turva, indistinta do oceano. Completava-se o abandono lento em seus braços, sob o sorriso da portuguesa enternecida pelo aconchego da moça no ombro do marido. Era a suavidade da morte pública e despercebida.
Ele tentava olhar adiante. Teria sido outra história se Marina tivesse se jogado ao mar. Cinquenta, sessenta, setenta metros de altura. Ele teria que se jogar também, arriscar a vida para ter o que enterrar, e iria junto, ninguém mergulha de um navio supondo que sobrevive, muito menos que salvará alguém. Se tivesse que se matar, haveria de ser como um prazer, o prazer que em vida lhe era torto. Deixaria o corpo boiar sobre o oceano, sem peso, ao sabor das correntes, o sono mais pesado e completo que alguém já teve. Talvez o prazer de jogar o corpo no vazio fosse ainda maior. Deixaria o ar limpar os pulmões e os pensamentos, purificar a vida que ficava para trás, no alto da amurada. Seria outro por um lapso, não haveria tempo para pensar no impacto. Talvez o mar restaurasse o sono, a onda fria embalasse as costas, o oceano como o único lugar em que os insones não são insones, embora lhes falte imaginação para sabê-lo. Tinha a impressão de que nunca mais adormeceria, enquanto ela dormiria para sempre, egoísta no sono final, a soberba daquele que reaprende a dormir e deixa o outro na vigília. Teria sido pior se ela tivesse esperado a volta para se matar. Ele aguentaria a náusea de cada milha. Agora podia abandonar o barco. Nada de Ilhas Canárias, Cádiz, Sevilha, nada do balanço que o torturava no convés ou na cabine. Olhava a distância em direção à noite e via o corpo desembarcar em Cabo Verde, sobrevoar o mar até Lisboa, voltar ao Brasil sobre o mesmo mar, as mesmas ilhas escassas do Atlântico. Dois, três dias com o corpo frio e rígido, rigor mortis, velava-o pelos ares, um fardo em plena leveza de nuvens, a dor que alçava ao sol dentro de um saco impermeável, um caixote de metal. Estariam no céu, um corpo que apodrece, um homem que chora, um amor que já não é mais.
Alguém se aproximou, parou ao lado da amurada. O uniforme branco e impecável usado pelos tripulantes, certa familiaridade de hospital.
— Preciso da sua ajuda.
— What can I do for you, sir?
— Minha mulher está morta.
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