Todo Esse Tempo Quotes

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A saudade não é tristeza, é comoção. A saudade é o que fica do amor quando perdemos todo o seu lado físico, deixámos de estar, deixámos de tocar, há uma barreira inultrapassável de espaço ou de tempo, mas o amor continua, permanece. A saudade é esse tipo de amor. A saudade é o amor.
José Luís Peixoto
Na vida, concluiria um dia, todos têm direito a um grande amor. Uns achá-lo-iam num cruzamento perdido e com ele seguiriam até ao fim do caminho, teimosos e abnegados, até que a morte desfizesse o que a vida fizera. Outros estavam destinados a desconhecê-lo, a procurarem sem o descobrirem, a cruzarem-se numa esquina sem jamais se olharem, a ignorarem a sua perda até desaparecerem na neblina que pairava sobre o soliário trilho para onde a vida os conduzira. E havia aqueles fadados para a tragédia, os amores que se encontravam e cedo percebiam que o encontro era afinal efémero, furtivo, um mero sopro na corrente do tempo, um cruel interlúdio antes da dolorosa separação, um beijo de despedida no caminho da solidão, a alma abalada pela sombria angústia de saberem que havia um outro percurso, uma outra existência, uma passagem alternativa que lhes fora para sempre vedada. Esses eram os infelizes, os dilacerados pela revolta até serem abatidos pela resignação, os que percorrem a estrada da vida vergados pela saudade do que podia ter sido, do futuro que não existiu, do trilho que nunca percorreriam a dois. Eram esses os que estavam indelevelmente marcados pela amarga e profunda nostalgia de um amor por viver.
José Rodrigues dos Santos (A Filha do Capitão)
esse querido plano interior; o segredo da felicidade é não termos escrúpulos para connosco e termos o máximo de atenções para com todos os outros; de resto, o próprio tempo disse já adeus a todos os piratas da alma
Stig Dagerman (Island of the Doomed)
Pois era extraordinário pensar que tinham sido capazes de continuar a viver todos esses anos enquanto ela não pensara neles senão uma vez durante todo aquele tempo.
Virginia Woolf (To the Lighthouse)
Afinal, estamos todos de passagem pela vida uns dos outros de forma mais ou menos breve, e no processo, vivemos nós próprios também múltiplas vidas. Se tivermos feitos alguma diferença na vida de alguém e se esse alguem tiver feito diferença na nossa, o tempo da nossa presença acaba por ser o que menos importa.
Ricardo Santo (Boarding Pass)
As lágrimas começaram a correr-lhe pelas faces e soluços sacudiram-no. Pela primeira vez, desde que chegara à ilha, entregou-se ao choro; grandes e convulsivos espasmos de tristeza pareciam torcer todo o seu corpo. Sua voz elevou-se sob a fumaça negra diante dos restos incendiados da ilha; contagiados por aquela emoção, os outros meninos começaram a tremer e a soluçar. No meio deles, com o corpo sujo, cabelo emaranhado e nariz escorrendo, Ralph chorou pelo fim da inocência, pela escuridão do coração humano e pela queda no ar do verdadeiro e sábio amigo chamado Porquinho. O oficial, cercado por todo esse ruído, ficou emocionado e um pouco embaraçado. Virou-se para dar tempo a que se recuperassem. Esperou, deixando os olhos fixos no garboso cruzador a distância.
William Golding (Lord of the Flies)
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitou, mas então com as mãos, e disse-lhe, – para dizer alguma cousa, – que era capaz de os pentear, se quisesse. – Você? – Eu mesmo. – Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim. – Se embaraçar, você desembaraça depois. – Vamos ver.
Machado de Assis (Dom Casmurro)
Podias ter-me dito que ias sair da minha vida. A paixão é mesmo isto, nunca sabemos quando acaba ou se transforma em amor, e eu sabia que a tua paixão não iria resistir à erosão do tempo, ao frio dos dias, ao vazio da cama, ao silêncio da distância. Há um tempo para acreditar, um tempo para viver e um tempo para desistir, e nós tivemos muita sorte porque vivemos todos esses tempos no modo certo. Podias ter-me dito que querias conjugar o verbo desistir. Demorei muito tempo a aceitar que, às vezes, desistir é o mesmo que vencer, sem travar batalhas. Antigamente pensava que não, que quem desiste perde sempre, que a subtracção é a arma mais cobarde dos amantes, e o silêncio a forma mais injusta de deixar fenecer os sonhos. Mas a vida ensinou-me o contrário. Hoje sei que desistir é apenas um caminho possível, às vezes o único que os homens conhecem. Contigo aprendi que o amor é uma força misteriosa e divina. Sei que também aprendeste muito comigo, mais do que imaginas e do que agora consegues alcançar. Só o tempo te vai dar tudo o que de mim guardaste, esse tempo que é uma caixa que se abre ao contrário: de um lado estás tu, e do outro estou eu, a ver-te sem te poder tocar, a abraçar-te todas as noites antes de adormeceres e a cada manhã ao acordares. Não sei quando te voltarei a ver ou a ter notícias tuas, mas sabes uma coisa? Já não me importo, porque guardei-te no meu coração antes de partires. Numa noite perfeita entre tantas outras, liguei o meu coração ao teu com um fio invisível e troquei uma parte da tua alma com a minha, enquanto dormias.
Margarida Rebelo Pinto
Timidez Basta-me um pequeno gesto, feito de longe e de leve, para que venhas comigo e eu para sempre te leve... - mas só esse eu não farei. Uma palavra caída das montanhas dos instantes desmancha todos os mares e une as terras distantes... - palavras que não direi. Para que tu me adivinhes, entre os ventos taciturnos, apago meus pensamentos, ponhos vestidos noturnos, - que amargamente inventei. E, enquanto não me descobres, os mundos vão nevegando nos ares certos do tempo até não se sabe quando... - e um dia me acabarei.
Cecília Meireles
Você pode lutar, por amor, com esse diabo o tempo que quiser; quando a hora chegar, nem todos os santos do céu terão poder para salvá-lo!
Emily Brontë (Wuthering Heights)
O tempo, esse grande ladrão, rouba continuamente; mas uma coisa é ser despojado com magnificência e envelhecer com a consciência de uma existência plena e rica, outra é ser roído miseravelmente hora após hora por coisas que de todo não conhecemos. O inferno dos contemporâneos chama-se monotonia. O paraíso que procuram a plenitude. Existem aqueles que viveram e aqueles que duraram.
Pascal Bruckner (Perpetual Euphoria: On the Duty to Be Happy)
Gostaria que alguém tentasse escrever um dia uma história trágica da literatura, na qual expusesse como as diferentes nações, cada uma das quais deposita seu maior orgulho nos grandes escritores e artistas que tem a exibir, trataram esses homens durante suas vidas. Assim, o autor poria diante dos nossos olhos aquela interminável batalha travada pelo que é bom e autentico, em todos os tempos e países, contra o domínio do que é deturpado e ruim; descreveria o martírio de quase todos os verdadeiros iluminados da humanidade, de quase todos os grandes mestres em cada disciplina e em cada arte; mostraria como eles, com poucas exceções, sofreram na pobreza e na miséria, sem reconhecimento, sem apreço, sem alunos, enquanto a fama, a honra e a riqueza eram reservadas aos indignos em cada área.
Arthur Schopenhauer (A Arte de Escrever)
Pessoas assim, como este Sr. José, em toda a parte as encontramos, ocupam o seu tempo ou o tempo que crêem sobejar-lhes da vida a juntar selos, moedas, medalhas, jarrões, bilhetes-postais, caixas de fósforos, livros, relógios, camisolas desportivas, autógrafos, pedras, bonecos de barro, latas vazias de refrescos, anjinhos, cactos, programas de óperas, isqueiros, canetas, mochos, caixinhas-de-música, garrafas, bonsais, pinturas, canecas, cachimbos, obeliscos de cristal, patos de porcelana, brinquedos antigos, máscaras de carnaval, provavelmente fazem-no por algo a que poderíamos chamar angústia metafísica, talvez por não conseguirem suportar a ideia do caos como regedor único do universo, por isso, com as suas fracas forças e sem ajuda divina, vão tentando pôr alguma ordem no mundo, por um pouco de tempo ainda o conseguem, mas só enquanto puderem defender a sua colecção, porque quando chega o dia de ela se dispersar, e sempre chega esse dia, ou seja por morte ou seja por fadiga do coleccionador, tudo volta ao princípio, tudo torna a confundir-se.
José Saramago (Todos los nombres)
O Universo é algo que gera reverência, respeito. Em termos de tempo e espaço, sua escala torna a existência humana microscópica. É fascinante que as leis da natureza sejam as mesmas em todo o cosmos. A lei da gravidade, por exemplo, funciona aqui como a 1 bilhão de anos-luz de distância. Olhemos para cada detalhe, mínimo que seja, como para uma folha, e veremos que sua perfeição e harmonia são deslumbrantes. Creio que a folha resulta do processo de seleção natural, indicado por Darwin, ao longo de quase bilhões de anos de evolução da vida na Terra. Se olhamos essa mesma folha através de um microscópio, ficamos ainda mais maravilhados. Se alguém quer chamar esse sentimento de religioso, isso não me incomoda.
Carl Sagan
Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais regressos se chama, às vezes, poesia. Essa espécie de terra mítica é habitada por seres de uma tão grande formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi às crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o Paraíso. A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais — a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer. Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas, as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis — elas têm o peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue. O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que, frequentemente, é usado como argumento para a negação da bondade divina. Não, não há salvação para quem faça sofrer uma criança, que isto se grave indelevelmente nos vossos espíritos. O simples facto de consentirmos que milhões e milhões de crianças padeçam fome, e reguem com as suas lágrimas a terra onde terão ainda de lutar um dia pela justiça e pela liberdade, prova bem que não somos filhos de Deus.
Eugénio de Andrade (Rosto Precário)
E então, numa quinta-feira, quase dois mil anos depois que um homem foi pregado num pedaço de madeira por ter dito que seria ótimo se as pessoas fossem legais umas com as outras pra variar, uma garota, sozinha numa pequena lanchonete em Rickmansworth, de repente compreendeu o que tinha dado errado esse tempo todo e finalmente descobriu como o mundo poderia se tornar um lugar bom e feliz.
Douglas Adams (Douglas Adams' The Hitchhiker's Guide to the Galaxy, Book 1 of 3 (The Hitchhiker's Guide to the Galaxy #1))
Um mundo irá invadi-lo, a felicidade, a riqueza, a inconcebível grandeza de um mundo. Viva um tempo nesses livros, aprenda com eles aquilo que lhe pareça digno de ser aprendido, mas, sobretudo, ame-os. Esse amor se pagará milhares e milhares de vezes, e seja qual for o andamento da sua vida, tenho certeza de que ele atravessará a tessitura do seu devir como um dos fios mais importantes, dentre todos os fios de suas experiências, decepções e alegrias.
Rainer Maria Rilke (Cartas a un joven poeta/Obra poética)
Nos dias de hoje, ainda me acontece encontrar Musyne, casualmente, a cada dois anos ou quase, tal como a maioria das criaturas que no passado conhecemos muito bem. É o prazo de que precisamos, dois anos, para nos darmos conta, com uma só olhada, mas essa aí inenganável, como o instinto, das feiuras que um rosto, ainda que delicioso em seu tempo, acumulou. Ficamos como que hesitantes um instante à sua frente, e depois findamos por aceitá-lo tal como ele ficou, o rosto, com essa desarmonia crescente, abjeta, de todo o conjunto. Temos de dizer sim a essa cuidadosa e lenta caricatura burilada por dois anos. Aceitar o tempo, esse quadro de nós. Podemos então dizer que nos reconhecemos inteiramente (como uma nota de dinheiro estrangeira que hesitamos em pegar à primeira vista), que não nos enganamos de caminho, que de fato seguimos a verdadeira estrada, sem nos termos consertado, a infalível estrada durante mais dois anos, a estrada da podridão. E é só isso.
Louis-Ferdinand Céline (Journey to the End of the Night)
é preciso um grande homem, alguém que se elevou muito acima das fraquezas humanas para não permitir que nada de seu tempo lhe seja roubado, e segue-se que a vida de tal homem é muito longa porque ele dedicou inteiramente a si mesmo todo o tempo que teve. Não negligenciou seu tempo, tampouco ficou ocioso. Em nenhum momento esteve sob o controle de outro, pois, guardião cioso, não encontrou nada que valesse a pena ser trocado por seu tempo. Assim, esse homem teve tempo suficiente, mas aqueles cujas vidas foram roubadas pelos negócios com o público, necessariamente tiveram muito pouco.
Seneca (Sobre a Brevidade da Vida: Edição especial com prefácio de Lúcia Helena Galvão Maya (Portuguese Edition))
Nenhum de nós é filho de chocadeira Todos nós tivemos como primeira morada, o ventre materno E de lá quando saimos para esse mundo E cortam o nosso cordão umbilical Separam os nossos corpos, mas as nossas almas não Essas continuam unidas e ligadas para todo o sempre Vocês vão se encontrar de alguma forma, em algum pedaço Em algum verso deste poema Não foi o tempo, que tornou cinzentos os teus cabelos Muito, muito além do tempo Ainda posso vê-los como sempre foram Não foi o tempo que te fez madura Ainda te vejo na infantil procura a esperar por mim, tu Muito jovem, a imitar senhoras Cada segundo parecendo horas Não, não foi o tempo que te fez assim, foi o vento O sopro de Deus, o eterno momento Sim, foi ele que te fez assim
Desconhecido
O processo de identificação é infantil, mas não é inteiramente ingênuo, porque não pode ocupar toda a minha mente. Enquanto parte de minha mente está criando gente de ficção, falando e agindo como meus heróis e em geral tentando se colocar na pele de outra pessoa, outra parte está cuidadosamente avaliando o romance como um todo - supervisionando a composição, imaginando como o leitor vai ler, interpretando a narrativa e os atores e tentando prever o efeito de minhas frases. Todos esses cálculos sutis, envolvendo o aspecto planejado do romance e o lado sentimental-reflexivo do romancista, revelam uma auto consciênciaque está em direto contraste com a ingenuidade da infância. Quanto mais o romancista consegue ser, ao mesmo tempo, ingênuo e sentimental, melhor ele escreve.
Orhan Pamuk (The Naive and the Sentimental Novelist (The Charles Eliot Norton Lectures))
E no entanto, mesmo aqui, escrevendo para você, o fato físico do teu corpo resiste a meus movimentos. Mesmo nessas frases, coloco minhas mãos em tuas costas e vejo como elas são escuras na comparação com o pano de fundo de brancura imutável da tua pele. Mesmo agora, vejo as dobras da tua cintura e dos teus quadris enquanto massageio os pontos de tensão, os pequenos ossos ao longo da tua coluna, uma série de elipses que nenhum silêncio traduz. Mesmo depois de todos esses anos, o contraste entre nossas peles me surpreende – do modo como uma página em branco me surpreende quando, ao pegar uma caneta, ela começa a se mover por um campo espacial, tentando agir sobre aquela vida sem desfigurá-la. Mas ao escrever, eu desfiguro. Mudo, embelezo e preservo você, tudo ao mesmo tempo.
Ocean Vuong (On Earth We're Briefly Gorgeous)
Vai chegar um dia em que todos vamos estar mortos. Todos nós. Vai chegar um dia em que não vai sobrar nenhum ser humano sequer para lembrar que alguém já existiu ou que nossa espécie fez qualquer coisa nessa mundo. Não vai sobrar ninguém para se lembrar de Aristóteles ou de Cleópatra, quanto mais de você. Tudo o que fizemos, construímos, escrevemos, pensamos e descobrimos vai ser esquecido e tudo isso aqui vai ter sido inútil. Pode ser que esse dia chegue logo e pode ser que demore milhões de anos, mas, mesmo que o mundo sobreviva a uma explosão do Sol, não vamos viver para sempre. Houve um tempo antes do surgimento da consciência nos organismos vivos, e vai haver outro depois. E se a inevitabilidade do esquecimento humano preocupa você, sugiro que deixe esse assunto para lá. Deus sabe que é isso o que todo mundo faz - Hazel Grace Lancaster
John Green
Eis o que acontece: alguém, normalmente rapariga, tem um espírito livre, não se dá lá muito bem com os pais. Esses miúdos são como balões de hélio amarrados ao chão. Vão puxando pelo fio, e puxando, e puxando, até que alguma coisa acontece, o fio parte-se e eles flutuam para longe. (...) Esse fio está sempre a partir se. (...) O problema desses balões é que há muitos. O céu está carregado deles, a roçarem uns nos outros enquanto flutuam para aqui e para ali (...) balões por todo o lado (...) Ao fim de algum tempo, já não se consegue vê-los individualmente. Olha-se para cima, para todos os balões que estão no céu, e vê-se todos os balões, mas não se consegue ver nenhum deles. (...) Mas depois falamos com um miúdo (...) e sentimo-nos mal por esse miúdo porque a única coisa pior que o céu cheio que vê-mos é o que ele vê: um dia de céu azul, limpo, interrompido por aquele único balão.
John Green (Paper Towns)
Sem dúvida, nessas coincidências tão perfeitas, quando a realidade se aplica sobre o que nós tanto tempo sonhamos, ela oculta inteiramente o nosso sonho, confunde-se com ele, como duas figuras iguais e superpostas que não formam mais do que uma, quando, pelo contrário, para dar à nossa alegria toda a sua significação, desejaríamos manter em todos esses nossos desejos - e para estar mais certos de que são eles mesmos - o prestígio da sua intangibilidade. E o pensamento nem ao menos pode reconstituir o estado antigo para confrontá-lo com o novo, pois já não tem o campo livre: a amizade que travamos, a recordação dos primeiros minutos inesperados, as frases que ouvimos, ali estão a obstruir a entrada de nossa consciência, e dominam muito mais as embocaduras de nossa memória que as de nossa imaginação, retroagindo sobre o nosso passado, que já não somos senhores de ver sem os levar em conta, mais do que sobre a forma, ainda livre, do nosso futuro.
Marcel Proust (In the Shadow of Young Girls in Flower)
As qualidades que um determinado período considera belas nas mulheres são apenas símbolos do comportamento feminino que aquele período julga ser desejável. O mito da beleza de fato sempre determina o comportamento, não a aparência. A competição entre as mulheres foi incorporada ao mito para promover a divisão entre elas. A juventude e (até recentemente) a virgindade são "belas" nas mulheres por representarem a ignorância sexual e a falta de experiência. O envelhecimento na mulher é "feio" porque as mulheres, com o passar do tempo, adquirem poder e porque os elos entre as gerações de mulheres devem sempre ser rompidos. As mulheres mais velhas temem as jovens, as jovens temem as velhas, e o mito da beleza mutila o curso da vida de todas. E o que é mais instigante, nossa identidade deve ter como base nossa "beleza", de tal forma que permaneçamos vulneráveis à aprovação externa, trazendo nossa autoestima, esse órgão sensível e vital, exposto a todos.
Naomi Wolf (The Beauty Myth)
Da economia do tempo - Sêneca saúda o amigo Lucílio Comporta-te assim, meu Lucílio, reivindica o teu direito sobre ti mesmo e o tempo que até hoje foi levado embora, foi roubado ou fugiu, recolhe e aproveita esse tempo. Convence-te de que é assim como te escrevo: certos momentos nos são tomados, outros nos são furtados e outros ainda se perdem no vento. Mas a coisa mais lamentável é perder tempo por negligência. Se pensares bem, passamos grande parte da vida agindo mal, a maior parte sem fazer nada, ou fazendo algo diferente do que se deveria fazer. Podes me indicar alguém que dê valor ao seu tempo, valorize o seu dia, entenda que se morre diariamente? Nisso, pois, falhamos: pensamos que a morte é coisa do futuro, mas parte dela já é coisa do passado. Qualquer tempo que já passou pertence à morte. Então, caro Lucílio, procura fazer aquilo que me escreves: aproveita todas as horas; serás menos dependente do amanhã se te lançares ao presente. Enquanto adiamos, a vida se vai. Todas as coisas, Lucílio, nos são alheias; só o tempo é nosso. A natureza deu-nos posse de uma única coisa fugaz e escorregadia, da qual qualquer um que queira pode nos privar. E é tanta a estupidez dos mortais que, por coisas insignificantes e desprezíveis, as quais certamente se podem recuperar, concordam em contrair dívidas de bom grado, mas ninguém pensa que alguém lhe deva algo ao tomar o seu tempo, quando, na verdade, ele é único, e mesmo aquele que reconhece que o recebeu não pode devolver esse tempo de quem tirou. Talvez me perguntes o que faço para te dar esses conselhos. Eu te direi francamente: tenho consciência de que vivo de modo requintado, porém cuidadoso. Não posso dizer que não perco nada, mas posso dizer o que perco, o porquê e como; e te darei as razões pelas quais me considero miserável. No entanto, a mim acontece o que ocorre com a maioria que está na miséria não por culpa própria: todos estão prontos a desculpar, ninguém a dar a mão. E agora? A uma pessoa para a qual basta o pouco que lhe resta, não a considero pobre. Mas é melhor que tu conserves todos os teus pertences, e começarás em tempo hábil. Porque, como diz um sábio ditado, é tarde para poupar quando só resta o fundo da garrafa. E o que sobra é muito pouco, é o pior. Passa bem! (Sêneca, em "Aprendendo a Viver - Cartas a Lucílio")
Seneca (Letters from a Stoic)
não existe, talvez, nada mais assustador e mais sinistro em toda a pré-história do homem que a sua técnica para se lembrar das coisas.” Alguma coisa é impressa, para que permaneça na memória: apenas o que dói incessantemente é recordado” – este é uma proposição central da mais antiga (e, infelizmente, também a mais duradoura) filosofia na Terra. Uma pessoa pode até sentir-se tentada a dizer que algo deste horror – através da qual em tempos se fizeram promessas por toda a Terra e foram dadas garantias e empenhamentos -, algo disto ainda sobrevive sempre que a solenidade, seriedade, secretismo e cores sombrias se encontram na vida dos homens e das nações: o passado, o passado mais longo, mais profundo e mais desagradável, respira sobre nós e brota em nós sempre que nos tornamos “sérios”. As coisas nunca avançaram sem sangue, tortura e vítimas, quando o homem achou necessário forjar uma memória de si próprio. Os sacrifícios e as oferendas mais horrendos (…), as mutilações mais repulsivas (…), os rituais mais cruéis de todos os cultos religiosos ( e todas as religiões são, nas suas fundações mais profundas, sistemas de crueldade) - todas estas coisas tem origem naquele instinto que adivinhou que a mais poderosa ajuda da memória era a dor. Num certo sentido, todo o ascetismo faz parte disto: algumas ideias tem de tornar-se inextinguíveis, omnipresentes, inesquecíveis, “fixas” – com o objectivo de hipnotizar todo o sistema nervoso e intelecto através destas “ideias fixas” – e os procedimentos e formas de vida ascéticos são o meio de libertar essas ideias da competição com todas as outras ideias, para torna-las “inesquecíveis”. Quanto maior era a memoria da humanidade, mais assustadores parecem ser os seus costumes; a dureza dos códigos de punição, em particular, dá uma medida da quantidade de esforço que é necessária para triunfar sobre o esquecimento e tornar estes escravos efémeros da emoção e do desejo atentos a alguns requisitos primitivos de coabitação social. (…) Para dominar (…) recorreram a meios assustadores (…) de apedrejamento, (…), a empalação na estaca, a dilaceração ou o espezinhamento por cavalos, (…), queimar o criminoso em azeite (…), a prática popular de esfolamento, (…) cobrir o criminoso de mel e deixá-lo às moscas num sol abrasador. Com a ajuda deste tipo de imagens e procedimentos, a pessoa acaba por memorizar cinco ou seis “Não farei”, fazendo assim a promessa em troca das vantagens oferecidas pela sociedade. E de facto! com a ajuda deste tipo de memória, a pessoa acaba por “ver a razão”! Ah, razão, seriedade, domínio das emoções, todo o caso sombrio que dá pelo nome de pensamento, todos esses privilégios e exemplos do homem: que preço elevado que foi pago por eles! Quanto sangue e horror está no fundo de todas as “coisas boas”!
Friedrich Nietzsche (On the Genealogy of Morals)
- Então Guinevere quebrou o juramento do matrimônio - disse Nimue. - Você acha que ela foi a primeira? Ou acha que isso a torna uma prostituta? Nesse caso a Britânia está cheia de prostitutas até a borda. Ela não é prostituta, Derfel. Ela é uma mulher forte que nasceu com mente rápida e boa aparência, e Artur amou a aparência e não quis usar a mente dela. Não a deixou torná-lo rei, por isso ela se voltou para aquela religião ridícula. E tudo que Artur fazia era dizer como ela seria feliz quando ele pudesse pendurar Excalibur e começar a criar gado! - Nimue riu da ideia. - E como nunca ocorreu a Artur ser infiel, ele jamais suspeitou de Guinevere. O resto de nós suspeitava, mas não Artur. Ele vivia se dizendo que o casamento era perfeito, e o tempo todo estava a quilômetros de distância e a boa aparência de Guinevere atraía homens como a carniça atrai moscas. E eram homens bonitos, homens inteligentes, homens bem-humorados, homens que queriam o poder, e um era um homem bonito que queria todo o poder que conseguisse agarrar, por isso Guinevere decidiu ajudá-lo. Artur queria um curral de vacas, mas Lancelot quer ser Grande Rei da Britânia, e Guinevere acha esse um desafio mais interessante do que criar vacas ou limpar a merda dos bebês. E aquela religião idiota a encorajou. Árbitra dos tronos! - Ela cuspiu. - Guinevere não estava dormindo com Lancelot porque era uma prostituta, seu grande idiota, estava dormindo com ele pra fazer de seu homem o Grande Rei.
Bernard Cornwell (Enemy of God (The Warlord Chronicles, #2))
Quando isso aconteceu, Orlando deu um suspiro de alívio, acendeu um cigarro e soprou em silêncio um ou dois minutos. Depois, chamou hesitante, como se a pessoa que procurasse pudesse não estar ali: “Orlando?” Pois se há (por acaso) 76 tempos diferentes, todos pulsando simultaneamente na cabeça, quantas pessoas diferentes não haverá – valha-nos o céu -, todas morando, num tempo ou noutro, no espírito humano? Alguns dizem que 2052. De modo que é a coisa mais natural do mundo uma pessoa chamar, logo que fique sozinha, “Orlando?” (se esse é o seu nome), querendo com isso dizer “Vem, vem! Estou mortalmente cansada deste eu. Preciso de outro”. Daí as mudanças assombrosas que vemos em nossos amigos. Mas isso também não é muito fácil, pois, embora se possa dizer, como Orlando disse (achando-se no campo, e necessitando talvez de outro eu), “Orlando?”, o Orlando de que ela necessita pode não vir; esses eus de que somos constituídos, sobrepostos uns aos outros como pratos empilhados na mão do copeiro, têm suas predileções, simpatias, pequenos códigos e direitos próprios, chamem-se como quiserem (e muitas dessas coisas não têm nome), de modo que um só virá se estiver chovendo, outro, se for num quarto com cortinas verdes, outro, se a sra. Jones não estiver lá, outro, se lhe pudermos prometer um copo de vinho – e assim por diante; pois cada pessoa pode multiplicar com a sua própria existência as diferentes condições que impõe os seus diferentes eus – e algumas, de tão ridículas, nem podem ser impressas em letra de fôrma.
Virginia Woolf (Orlando)
Uma consideção que podemos fazer é a respeito da palavra "traição". De fato, examinada atentamente, ela se nos revela ambígua, não só etimológica mas também semanticamente. Sabemos que o latim tradere significava somente “entregar”. Sabemos também que os evangelhos, escolhendo esse verbo para designar o ato de Judas de entregar Jesus aos seus inimigos, carregavam-no de conotações éticas, obviamente negativas. Mas, com o tempo, o mal-entendido inicial originou outros mal-entendidos e ambiguidades: o itinerário semântico desse verbo “condenado” levou-o a significados diferentes, distantíssimos entre si e às vezes nas antípodas, literalmente opostos. “Traio” deriva do latino trado, que é composto de dois morfemas, trans e do (=dar). O prefixo trans implica passagem; de fato, todos os significados originais de trado contem a ideia de dar alguma coisa que passa de uma mão a outra. Assim, trado significa o ato de entregar nas mãos de alguém (para guarda, proteção, castigo) o ato de confiar para o governo ou o ensinamento, o dar em esposa, o vender, o confiar com palavras ou o transmitir, o narrar. Na forma reflexiva, tradere, o verbo significa abandonar-se a alguém, dedicar-se a uma atividade. O substantivo correspondente, traditio, significa “entrega”, “ensinamento”, “narração”, “transmissão de narrações”, “tradição”. Note-se que o “nomem agentis” (nome do agente) traditor significa tanto “traidor” como “quem ensina”. É bom lembrar esse duplo sentido porque provavelmente tenha algo a ensinar talvez unicamente aquele que traiu com plena e total consciência.
Aldo Carotenuto (Amar Traicionar: Casi una Apología de la Traición [To Love, To Betray: Life as Betrayal])
O tempo desapareceu; é a Eternidade que reina, uma eternidade de delícias! Mas uma batida terrível, pesada, fez estremecer a porta e, como em um pesadelo infernal, senti ter levado uma agulhada na boca do estômago. E em seguida um Espectro entrou. Um funcionário que vem me torturar em nome da lei; uma concubina infame que vem chorar misérias e acrescentar as trivialidades da sua vida às dores da minha; ou ainda o faz-tudo enviado pelo diretor do jornal a exigir a entrega do manuscrito. O quarto paradisíaco, o ídolo, a soberana dos sonhos, a Sílfide, como dizia o grande René, toda essa magia desapareceu com a batida brutal do Espectro. Que horror! Agora lembro, lembro! Sim! Esse pardieiro, residência do tédio eterno, é bem o meu. Aí está a mobília vulgar, coberta de pó, lascada; a lareira sem chama e sem brasa, imunda de escarros: as melancólicas janelas em que a chuva cavou sulcos na poeira; os manuscritos, riscados ou incompletos; o calendário onde o lápis ressaltou as datas fatídicas! E esse perfume de outro mundo, no qual eu me embriagava com uma refinada sensibilidade, ai de mim! Foi substituído pelo cheiro fedorento de tabaco misturado a sabe-se lá que tipo de mofo. Respira-se já aqui o ranço da desolação. Nesse mundinho pequeno, mas farto de desgosto, só um objeto conhecido me sorri: a garrafinha de láudano; velha e espantosa amiga; como todas as amigas, aliás! Fértil em carícias e traições. Ah, sim! O Tempo está de volta, o Tempo reina agora soberano; e junto com o velho repugnante retornou o seu cortejo demoníaco de Lembranças, de Arrependimentos, de Espasmos, de Medos, de Angústias, de Pesadelos, de Cóleras, de Neuroses. Eu lhes asseguro que todos os segundos são agora forte e solenemente acentuados, e cada um deles, brotando do pêndulo, diz: – Sou a Vida, insuportável, implacável!
Charles Baudelaire (Paris Spleen)
Há um morcego de papel da festa das bruxas pendurado num cordão acima de sua cabeça; ele levanta o braço e dá um piparote no morcego, que começa a girar. - Dia de outono bem agradável - continua ele. Fala um pouco do jeito como papai costumava falar, voz alta, selvagem mesmo, mas não se parece com papai; papai era um índio puro de Columbia - um chefe - e duro e brilhante como uma coronha de arma. Esse cara é ruivo, com longas costeletas vermelhas, e um emaranhado de cachos saindo por baixo do boné, está precisando de dar um corte no cabelo há muito tempo, e é tão robusto quanto papai era alto, queixo, ombros e peitos largos, um largo sorriso diabólico, muito branco e é duro de uma maneira diferente do que papai era, mais ou menos do jeito que uma bola de beisebol é dura sob o couro gasto. Uma cicatriz lhe atravessa o nariz e uma das maçãs do rosto, o luga em que alguém o acertou numa briga, e os pontos ainda estão no corte. Ele fica de pé ali, esperando, e, quando ninguém toma a iniciativa de lhe responder alguma coisa, começa a rir. Ninguém é capaz de dizer exatamente por que ele ri; não há nada de engraçado acontecendo. Mas não é da maneira como aquele Relações Públicas ri, é um riso livre e alto que sai da sua larga boca e se espalha em ondas cada vez maiores até ir de encontro às paredes por toda a ala. Não como aquele riso do gordo Relações Públicas . Este som é verdadeiro. Eu me dou conta de repente de que é a primeira gargalhada que ouço há anos. Ele fica de pé, olhando para nós, balançando-se para trás nas botas , e ri e ri. Cruza os dedos sobre a barriga sem tirar os polegares dos bolsos. Vejo como suas mãos são grandes e grossas. Todo mundo na ala, pacientes, pessoal e o resto, está pasmo e abobalhado diante dele e da sua risada. Não há qualquer movimento para faze-lo parar, nenhuma iniciativa para dizer alguma coisa. Ele então interrompe a risada, por algum tempo, e vem andando, entrando na enfermaria. Mesmo quando não está rindo, aquele ressoar do seu riso paira a sua volta, da mesma maneira com o som paira em torno de um grande sino que acabou de ser tocado - está em seus olhos, na maneira como sorri, na maneira como fala. [1] - Meu nome é McMurphy, companheiros, R. P. McMurphy, e sou um jogador idiota. - Ele pisca o olho e canta um pedacinho de uma canção : - .... " e sempre eu ponho ... meu dinheiro ... na mesa " - e ri de novo.
Ken Kesey (One Flew Over the Cuckoo’s Nest)
Não é sob os raios causticantes do sol mas na fria luz refletida da lua, quando a escuridão da inconsciência atinge sua plenitude, que o processo criativo se completa: a noite, e não o dia, é que é o momento da procriação. Esta requer escuridão e quietude, segredo, mudez e ocultamento. Em conseqüência, a lua é senhora da vida e do crescimento em oposição ao sol letal e devorador. O tempo úmido da noite é o tempo do sono, mas também da cura e de recuperação . Por esta razão, o deus da lua, Sin, é um médico; uma inscrição cuneiforme representando sua planta curativa diz que “depois que o sol se põe e com a cabeça velada, ela (a planta) deve ser circundada com um anel mágico de farinha e cortada antes que o sol nasça”. Aqui vemos, associado com o círculo mágico e com a farinha, o símbolo misterioso de “velar , que pertence à lua e ao segredo da noite. Cura e terapeuta, planta curativa e crescimento recuperador se encontram nessa configuração. É o poder regenerador do inconsciente que na escuridão noturna sou sob a luz da lua executa seu trabalho, um mysterium dentro de um mysterium, trabalhando a partir de si mesmo e da natureza, sem qualquer ajuda do ego cerebral. É por isso que as pílulas e as ervas curativas são associadas à lua e seus segredos guardados por mulheres, ou melhor, pela natureza feminina, que está ligada à lua. Aqui o simbolismo do crescimento vegetativo deve ser interpretado no sentido amplo que concede todo símbolo como síntese de uma realidade tanto interior como exterior. Ao reino noturno da lua curativa pertence o poder regenerador do sono que cura o corpo e suas feridas, a escuridão onde tem lugar a recuperação, e também aqueles acontecimentos da alma que na obscuridade, por processos que somente o coração pode saber, permitem ao homem “superar“ suas crises insolúveis. Não é, como se pensou, porque a lua muitas vezes parece verde no leste, que se supôs ser o verde a cor da lua; é por causa da inerente afinidade da lua com a vegetação da qual se diz: “Quando a palavra de Sin desce sobre a terra, o verde aparece.“ Esse verde de Osíris, de Chidher, do broto de shiva e da pedra verde alquímica, não é somente a cor do desenvolvimento físico mas também do desenvolvimento do espírito e da alma. A lua como regente da consciência matriarcal, está ligada a um conhecimento específico e a uma forma particular de compreensão. Isso é a consciência que nasceu, o espírito que veio à luz como fruto da noite.
Erich Neumann (The Fear of the Feminine and Other Essays on Feminine Psychology)
Com as próprias mãos ela deu fim à existência. Talvez fosse melhor poupar-vos dos detalhes mais dolorosos, pois os fatos lastimáveis não se desenrolaram em vossa presença. Contudo sabereis o que sofreu Jocasta, até onde eu puder forçar minha memória. Quando a infeliz transpôs a porta do seu quarto lançou-se como louca ao leito nupcial; com as duas mãos ela arrancava seus cabelos. Depois fechou as portas violentamente, chamando aos gritos Laio há tanto tempo morto, gritando pelo filho que trouxera ao mundo para matar o pai e que a destinaria a ser a mãe de filhos de seu próprio filho, se merecessem esse nome. Lamentava-se no leito mesmo onde ela havia dado à luz — dizia a infeliz — em dupla geração aquele esposo tido de seu próprio esposo e os outros filhos tidos de seu próprio filho! Como em seguida ela morreu, não sei contar. Aos gritos Édipo acorreu, mas também ele não pôde presenciar a morte da rainha. Os nossos olhos não se despregavam dele correndo como um louco em todos os sentidos, pedindo em altos brados que um de nós lhe desse logo um punhal, gritando-nos que lhe disséssemos onde se achava sua esposa (esposa não, mas a mulher de cujo seio maternal saíram ele próprio e todos os seus filhos). Em seu furor não sei que deus fê-lo encontrá-la (não foi nenhum de nós que estávamos por perto). Então, depois de dar um grito horripilante, como se alguém o conduzisse ele atirou-se de encontro à dupla porta: fez girar os gonzos, e se precipitou no interior da alcova. Pudemos ver, pendente de uma corda, a esposa; o laço retorcido ainda a estrangulava. Ao contemplar o quadro, entre urros horrorosos o desditoso rei desfez depressa o laço que a suspendia; a infeliz caiu por terra. Vimos, então, coisas terríveis. De repente o rei tirou das roupas dela uns broches de ouro que as adornavam, segurou-os firmemente e sem vacilação furou os próprios olhos, gritando que eles não seriam testemunhas nem de seus infortúnios nem de seus pecados: “nas sombras em que viverei de agora em diante”, dizia ele, “já não reconhecereis aqueles que não quero mais reconhecer!” Vociferando alucinado, ainda erguia as pálpebras e desferia novos golpes. O sangue que descia em jatos de seus olhos molhava toda a sua face, até a barba; não eram simples gotas, mas uma torrente, sanguinolenta chuva em jorros incessantes. São ele e ela os causadores desses males, e os infortúnios do marido e da mulher estão inseparavelmente entrelaçados. Ambos provaram antes a felicidade, herança antiga; hoje lhes restam só gemidos, vergonha, maldição e morte, ou, em resumo, todos os males, todos, sem faltar um só!
Sophocles (Oedipus Rex (The Theban Plays, #1))
Quem alcançou neste mundo grandeza igual à dessa bendita mulher, a mãe de Deus, a virgem Maria? No entanto, como se fala dela? A sua grandeza não provém do fato de ter sido bendita entre as mulheres, e se uma estranha coincidência não levasse a assembléia a pensar com a mesma desumanidade do predicador, qualquer jovem devia, seguramente, perguntar: Por que não fui eu também bendita entre as mulheres? Se se não possuísse outra resposta, de forma alguma acharia ter de rejeitar esta pergunta, pretextando a sua falta de senso; porque, no abstrato, em presença de um favor, todos temos mesmos direitos. São esquecidos a tribulação, a angústia, o paradoxo. Meu pensamento é tão puro como o de qualquer outro; e ele purifica-se, exercendo-se sobre as coisas. E se não se enobrecer pode-se então esperar pelo espanto; porque se essas imagens foram alguma vez evocadas jamais poderão ser esquecidas. E se contra elasse peca, extraem da sua muda cólera uma terrível vingança, mais terrível do que os rugidos de dez ferozes críticos. Maria,indubitavelmente, deu à luz o filho graças a um milagre, mas no decorrer de tal acontecimento foi como todas as outras mulheres, e esse tempo é o da angústia, da tribulação e do paradoxo. O anjo foi,sem dúvida, um espírito caritativo, mas não foi complacente porque não foi dizer a todas as outras virgens de Israel: Não desprezeis Maria, porque lhe sucedeu o extraordinário. Apresentou-se perante ela só e ninguém a pôde compreender. No entanto, que outra mulher foi mais ofendida do que Maria? Pois não é também verdade que aquele a quem Deus abençoa é também amaldiçoado com o mesmo sopro do seu espírito? É desta forma que se torna necessário, espiritualmente,compreender Maria. Ela não é, de maneira alguma, uma formosa dama que brinca com um deus menino, e até me sinto revoltado ao dizer isto e muito mais ao pensar na afetação e ligeireza de tal concepção. Apesar disso, quando diz: sou a serva do Senhor, ela é grande e imagino que não deve ser difícil explicar por que razão se tornou mãe de Deus. Não precisa, absolutamente nada, da admiração do mundo, tal como Abraão não necessita de lágrimas,porque nem ela foi uma heroína, nem ele foi um herói. E não se tornaram grandes por terem escapado à tribulação, ao desespero e ao paradoxo, mas precisamente porque sofreram tudo isso. Há grandeza em ouvir dizer ao poeta, quando apresenta o seu herói trágico à admiração dos homens: chorai por ele; merece-o; porque é grandioso merecer as lágrimas dos que são dignos de as derramar;há grandeza em ver o poeta conter a multidão, corrigir os homens e analisá-los um por um para verificar se são dignos de chorar pelo herói, porque as lágrimas dos vulgares chorões profanam o sagrado.Contudo ainda é mais grandioso que o cavaleiro da fé possa dizer ao nobre caráter que quer chorar por ele: não chores por mim, chora antes por ti próprio.
Søren Kierkegaard
O tempo que nos resta "De súbito sabemos que é já tarde. Quando a luz se faz outra, quando os ramos da árvore que somos soltam folhas e o sangue que tínhamos não arde como ardia, sabemos que viemos e que vamos. Que não será aqui a nossa festa. De súbito chegamos a saber que andávamos sozinhos. De súbito vemos sem sombra alguma que não existe aquilo em que nos apoiávamos. A solidão deixou de ser um nome apenas. Tocamo-la, empurra-nos e agride-nos. Dói. Dói tanto! E parece-nos que há um mundo inteiro a gritar de dor, e que à nossa volta quase todos sofrem e são sós. Temos de ter, necessariamente, uma alma. Se não, onde se alojaria este frio que não está no corpo? Rimos e sabemos que não é verdade. Falamos e sabemos que não somos nós quem fala. Já não acreditamos naquilo que todos dizem. Os jornais caem-nos das mãos. Sabemos que aquilo que todos fazem conduz ao vazio que todos têm. Poderíamos continuar adormecidos, distraídos, entretidos. Como os outros. Mas naquele momento vemos com clareza que tudo terá de ser diferente. Que teremos de fazer qualquer coisa semelhante a levantarmo-nos de um charco. Qualquer coisa como empreender uma viagem até ao castelo distante onde temos uma herança de nobreza a receber. O tempo que nos resta é de aventura. E temos de andar depressa. Não sabemos se esse tempo que ainda temos é bastante. E de súbito descobrimos que temos de escolher aquilo que antes havíamos desprezado. Há uma imensa fome de verdade a gritar sem ruído, uma vontade grande de não mais ter medo, o reconhecimento de que é preciso baixar a fronte e pedir ajuda. E perguntar o caminho. Ficamos a saber que pouco se aproveita de tudo o que fizemos, de tudo o que nos deram, de tudo o que conseguimos. E há um poema, que devíamos ter dito e não dissemos, a morder a recordação dos nossos gestos. As mãos, vazias, tristemente caídas ao longo do corpo. Mãos talvez sujas. Sujas talvez de dores alheias. E o fundo de nós vomita para diante do nosso olhar aquelas coisas que fizemos e tínhamos tentado esquecer. São, algumas delas, figuras monstruosas, muito negras, que se agitam numa dança animalesca. Não as queremos, mas estão cá dentro. São obra nossa. Detestarmo-nos a nós mesmos é bastante mais fácil do que parece, mas sabemos que também isso é um ponto da viagem e que não nos podemos deter aí. Agora o tempo que nos resta deve ser povoado de espingardas. Lutar contra nós mesmos era o que devíamos ter aprendido desde o início. Todo o tempo deve ser agora de coragem. De combate. Os nossos direitos, o conforto e a segurança? Deixem-nos rir... Já não caímos nisso! Doravante o tempo é de buscar deveres dos bons. De complicar a vida. De dar até que comece a doer-nos. E, depois, continuar até que doa mais. Até que doa tudo. Não queremos perder nem mais uma gota de alegria, nem mais um fio de sol na alma, nem mais um instante do tempo que nos resta." Miguel Gonçalves
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MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO (1890-1916) Atque in perpetuum, frater, ave atque vale! CAT . Morre jovem o que os Deuses amam, é um preceito da sabedoria antiga. E por certo a imaginação, que figura novos mundos, e a arte, que em obras os finge, são os sinais notáveis desse amor divino. Não concedem os Deuses esses dons para que sejamos felizes, senão para que sejamos seus pares. Quem ama, ama só a igual, porque o faz igual com amá-lo. Como porém o homem não pode ser igual dos Deuses, pois o Destino os separou, não corre homem nem se alteia deus pelo amor divino; estagna só deus fingido, doente da sua ficção. Não morrem jovens todos a que os Deuses amam, senão entendendo-se por morte o acabamento do que constitui a vida. E como à vida, além da mesma vida, a constitui o instinto natural com que se a vive, os Deuses, aos que amam, matam jovens ou na vida, ou no instinto natural com que vivê-la. Uns morrem; aos outros, tirado o instinto com que vivam, pesa a vida como morte, vivem morte, morrem a vida em ela mesma. E é na juventude, quando neles desabrocha a flor fatal e única, que começam a sua morte vivida. No herói, no santo e no génio os Deuses se lembram dos homens. O herói é um homem como todos, a quem coube por sorte o auxílio divino; não está nele a luz que lhe estreia a fronte, sol da glória ou luar da morte, e lhe separa o rosto dos de seus pares. O santo é um homem bom a que os Deuses, por misericórdia, cegaram, para que não sofresse; cego, pode crer no bem, em si, e em deuses melhores, pois não vê, na alma que cuida própria e nas coisas incertas que o cercam, a operação irremediável do capricho dos Deuses, o jugo superior do Destino. Os Deuses são amigos do herói, compadecem-se do santo; só ao génio, porém, é que verdadeiramente amam. Mas o amor dos Deuses, como por destino não é humano, revela-se em aquilo em que humanamente se não revelara amor. Se só ao génio, amando-o, tornam seu igual, só ao génio dão, sem que queiram, a maldição fatal do abraço de fogo com que tal o afagam. Se a quem deram a beleza, só seu atributo, castigam com a consciência da mortalidade dela; se a quem deram a ciência, seu atributo também, punem com o conhecimento do que nela há de eterna limitação; que angústias não farão pesar sobre aqueles, génios do pensamento ou da arte, a quem, tornando-os criadores, deram a sua mesma essência? Assim ao génio caberá, além da dor da morte da beleza alheia, e da mágoa de conhecer a universal ignorância, o sofrimento próprio, de se sentir par dos Deuses sendo homem, par dos homens sendo deus, êxul ao mesmo tempo em duas terras. Génio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida. Só a arte, que fez ou que sentiu, por instantes o turbou de consolação. São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a glória os acolhe. Ou morrem jovens, ou a si mesmos sobrevivem, íncolas da incompreensão ou da indiferença. Este morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor. Mas para Sá-Carneiro, génio não só da arte mas da inovação nela, juntou-se, à indiferença que circunda os génios, o escárnio que persegue os inovadores, profetas, como Cassandra, de verdades que todos têm por mentira. In qua scribebat, barbara terrafuit. Mas, se a terra fora outra, não variara o destino. Hoje, mais que em outro tempo, qualquer privilégio é um castigo. Hoje, mais que nunca, se sofre a própria grandeza. As plebes de todas as classes cobrem, como uma maré morta, as ruínas do que foi grande e os alicerces desertos do que poderia sê-lo. O circo, mais que em Roma que morria, é hoje a vida de todos; porém alargou os seus muros até os confins da terra. A glória é dos gladiadores e dos mimos. Decide supremo qualquer soldado bárbaro, que a guarda impôs imperador. Nada nasce de grande que não nasça maldito, nem cresce de nobre que se não definhe, crescendo. Se assim é, assim seja! Os Deuses o quiseram assim. Fernando Pessoa, 1924.
Fernando Pessoa (Loucura...)
Onde eu tinha a cabeça? que feno é esse que fazia a cama, mais macio, mais cheiroso, mais tranquilo, me deitando no dorso profundo dos estábulos e currais? que feno era esse que me guardava em repouso, entorpecido pela língua larga de uma vaca extremosa, me ruminando carícias na pele adormecida? que feno era esse que me esvaía em calmos sonhos, sobrevoando a queimadura das urtigas e me embalando com o vento no lençol imenso da floração dos pastos? que sono era esse tão frugal, tão imberbe, só sugando nos mamilos o caldo mais fino dos pomares? que frutos tão conclusos assim moles resistentes quando mordidos e repuxados no sono dos meus dentes? que grãos mais brancos e seráficos, debulhando sorrisos plácidos, se a varejeira dos meus sonhos verdes me saía dos lábios? que semente mais escondida, mais paciente! que hibernação mais demorada! que sol mais esquecido, que rês mais adolescente, que sono mais abandonado entre mourões, entre mugidos! onde eu tinha a cabeça? nao tenho outra pergunta nessas madrugadas inteiras em claro em que abro as janelas e tenho ímpetos de acender círios em fileiras sobre as asas úmidas e silenciosas de uma brisa azul que feito um cachecol alado corre sempre na mesma hora a atmosfera; não era o meu sono, como um antigo pomo, todo feito de horas maduras? que resinas se dissolviam na danação do espaço, me fustigando sorrateiras a relva delicada das narinas? que sopro súbito e quente me ergueu os cílios de repente? que salto, que potro inopinado e sem sossego correu com meu corpo em galope levitado? essas as perguntas que vou perguntando em ordem e sem saber a quem pergunto, escavando a terra sob a luz precoce da minha janela, feito um madrugador enlouquecido que na temperatura mais caída da manhã se desfaz das cobertas do leito uterino e se põe descalço e em jejum a arrumar blocos de pedra numa prateleira; não era de feno, era numa cama bem curtida de composto, era de estrume meu travesseiro, ali onde germina a planta mais improvável, certo cogumelo, certa flor venenosa, que brota com virulência rompendo o musgo dos textos dos mais velhos; este pó primevo, a gama nuclear, engendrado nos canais subterrâneos e irrompendo numa terra fofa e imaginosa: "que tormento, mas que tormento!" fui confessando e recolhendo nas palavras o licor inútil que eu filtrava, mas que doce amargura dizer as coisas, traçando num quadro de silêncio a simetria dos canteiros, a sinuosidade dos caminhos de pedra no meio da relva, fincando as estacas de eucalipto dos viveiros, abrindo com mãos cavas a boca das olarias, erguendo em prumo as paredes úmidas das esterqueiras, e nesse silêncio esquadrinhado em harmonia, cheirando a vinho, cheirando a estrume, compor aí o tempo, pacientemente.
Raduan Nassar (Lavoura Arcaica)
...Nessa amedrontadora etapa da história, enquanto se acumulam ruínas espirituais e materiais, essas providenciais iniciativas de caridade, que talvez poderiam parecer suficientes às necessidades comuns de outros tempos, tornaram-se, infelizmente, inadequadas. Vislumbramos, veneráveis irmãos, intermináveis multidões de crianças, que, gemendo e quase exaustas de fome, com suas mãozinhas pedem pão "não tendo ninguém que o reparta" (cf. Lm 4, 4); que, privadas de casa e de roupa, congeladas pelo frio do inverno, estão prestes a morrer, não tendo a mãe ou o pai que as cubra e as aqueça; que, enfim, doentes e talvez também atingidas pela tuberculose, falta o remédio adequado e os necessário cuidados. Trata-se de multidões, que com dor vemos perambulando pelas ruas barulhentas da cidade, impelidas pelo ócio e pela corrupção, ou vadiando incertas pelas cidades, vilas e campos, enquanto, infelizmente, ninguém lhes concede segura protecção contra a miséria, os vícios e os delitos. É por isso, veneráveis irmãos, que amando com "o mesmo amor de Cristo" (Fl 1, 8) esses nossos pequeninos filhos, dirigimos um caloroso apelo a vós e a quantos estão animados de nobres sentimentos de misericórdia e de piedade, para que todo tipo de esforço e iniciativa de caridade cristã seja dedicado com generosos entendimentos e propósitos para alívio e conforto de tantos. Nada se transcure daquilo que os nossos tempos sugerem; e se excogitem também novos sistemas e métodos, onde se possa, com o concurso de todos os bons, levar oportunos remédios aos males presentes, impedindo para o futuro deletérias consequências. Queira Deus, com a ajuda de sua graça, que quanto antes os vícios que arrastam tantas crianças abandonadas sejam extintos, sendo substituídos pela virtude, de modo que o ócio vão e a triste inércia dêem lugar ao honrado e alegre trabalho, e que a fome e a nudez de muitos obtenha o necessário socorro da divina caridade de Cristo, que especialmente nos nossos tempos deve reviver, crescer e flamejar nos seus sequazes. Tudo isso não só é de grande vantagem para a religião católica, mas também para a sociedade civil; já que, como todos sabem, os cárceres e as casas de recuperação não estariam tão repletos de criminosos, se os métodos e as medidas preventivas fossem aplicados oportunamente e em maior escala no que se refere à juventude; e se a infância crescesse sadia, íntegra e operosa por toda parte, mais facilmente haveria cidadãos credenciados com as maiores qualidades morais e físicas. Em uma palavra, de probidade e de firmeza.
Pope Pius XII
Enquanto eu crescia, via minhas amigas passarem por vários meninos, um após o outro, e sempre acharem uma razão para descartá-los, se sentindo insatisfeitas, frustradas ou usadas. Eu olhava para elas e pensava que não queria ser assim. E essas meninas, elas estão todas solteiras agora, e parece que vão continuar assim para sempre, porque estão sempre em busca do príncipe encantado. Elas têm uma imagem de quem ele é, como ele é, o que ele faz e como se comporta. E é uma fantasia, uma total fantasia. As mesmas besteiras que falam para as mulheres desde... sempre. Príncipe encantado. O homem perfeito. O boneco Ken. O espécime perfeito. O Solteirão. O marido ideal. Porque esses caras, os incrivelmente bonitos, os charmosos, os que viram seu mundo de cabeça para baixo, os que parecem bons demais para ser verdade, bem, eles costumam ser bons demais para ser verdade. É uma outra palavra para conquistador, uma descrição mais apropriada. Sociopata. É impressionante quantas mulheres se apaixonam por caras assim, caem no mesmo papo, mil e uma vezes, e então amaldiçoam o dia em que o conheceram. O jogo da sedução... é um dos truques mais velhos que existem. E na realidade é o que é: Um jogo de sorte. Sabe aquele jogo em que uma pessoa coloca uma pedra ou uma bolinha embaixo de um de três ou quatro copos e os embaralha sem parar até você adivinhar sob qual copo a pedra está? Observe os copos se moverem e tente adivinhar qual contém o homem certo. Jogue este jogo e você vai perder. Sempre. É certo. Ninguém quer acreditar que está ligado ao outro, especialmente no amor. Porque isso dói pra cacete. Talvez mais do que qualquer outra coisa no mundo. Te atinge no peito. Te faz sentir enjoada. Te faz sentir burra. Muito, muito burra. Então a melhor coisa que alguém tem a fazer numa situação destas é: Fingir que não foi pega de surpresa. Fingir que sempre soube de tudo. Fingir que nunca aconteceu. Começar tudo outra vez. E desta vez, dizer para si mesmas, nunca mais. Nunca vou cair no mesmo truque de novo. Mas vão. Vão cair porque não sabem o que querem da vida e, até saberem, estão fadadas a repetir padrões de tempos em tempos, destinadas a repetir os mesmos erros. Porque estão buscando uma fantasia inalcançável. Ou o homem perfeito. O marido perfeito. O amante perfeito. E a vida não é assim. Realmente não é. Não é mesmo. Pessoas não são assim. E isso não se aplica somente a mulheres. Homens são vítimas de seu próprio autoengano também. Os mais sensíveis, pelo menos. Os que são evoluídos o suficiente para pensar em mulheres como mais do que apenas um receptáculo para seu gozo. Às vezes, eles são muito evoluídos. Eles pensam muito. Eles colocam as mulheres em um pedestal, idealizam a companheira perfeita num nível que ninguém pode atingir. Pelo menos, eu sei que eu não posso. E para mim, isso apenas parece ser a receita para uma vida de decepção e relacionamentos fracassados. De procurar incessantemente pela pessoa certa e sempre acabar com a errada. Muito errada. Este é o jogo do amor. Um jogo em que todos perdem. Você vai dizer, isso é horrível. Eu digo, realista. Eu não estou dizendo que não acredito em amor, porque eu acredito. E, se duvidar, sou capaz de admitir que é a única coisa em que eu acredito. Nada de Deus, dinheiro, pessoas. Somente no amor. E eu não estou sugerindo que ninguém abaixe seu nível de exigência, ou se contente com pouco. Longe disso.
Sasha Grey (The Juliette Society (The Juliette Society, #1))
Afinal, são inúteis as tentativas de análise e de interpertação de nós mesmos. Há, em nós, abismos insondáveis, que jamais exploraremos, onde se recolhem, pelo tempo que lhes apraz, as combinações múltiplas, várias, tantas vezes contraditórias, que compõe as formas sucessivas do nosso espírito. Explicar-me-ei, dizendo que hoje dormimos arlequim, amanhã acordaremos pierô. As vestes ficam guardadas em qualquer guarda-roupa de nossas profundezas onde se amontoam peças de indumentárias que variam até o infinito. E alguém no-las troca sorrateiramente, durante o sono, de acordo com um critério que nos escapa. E esse alguém às vezes se diverte, pondo-nos de casaca e cuecas, ou pregando-nos um rabo de papel no jaquetão. O fato é que se frustra todo o esforço enorme que despendemos para impor certa disciplina, certa unidade, certa coerência. À sorrelfa, algum diabo malicioso inutliza todo o nosso trabalho, e amanhã seremos o que não queremos, e hoje somos o que ontem fôramos e não quiséramos ser mais.
Cyro dos Anjos (O Amanuense Belmiro)
O erro de julgar que o presente é para sempre, que o que há a cada instante é definitivo, quando todos deveríamos saber que nada o é, enquanto nos restar algum tempo. Trazemos às costas as reviravoltas suficientes e os suficientes circuitos, não apenas da fortuna mas do nosso ânimo. Vamos aprendendo que o que nos pareceu gravíssimo chegará o dia em que será neutro, apenas um facto, apenas um dado. A pessoa sem a qual não podíamos estar e por causa da qual não dormíamos, sem a qual não concebíamos a nossa existência, de cujas palavras e de cuja presença dependíamos dia após dia, chegará um dia em que nem sequer nos ocupará um pensamento, e quando nos ocupar, uma vez por outra, será para um encolher de ombros, e o mais que esse pensamento conseguirá será perguntarmos por um segundo: "Que será feito dela?", sem qualquer preocupação, sem curiosidade sequer.
Javier Marías (Los enamoramientos)
Calcula-se que a Peste Negra matou entre um terço e metade dos europeus, e que teve um impacto equivalente na China. Assinalou, para ambas as civilizações, o termo súbito e selvagem de uma era de crescimento e progresso, exacerbada por uma mudança no clima que trouxe invernos muito mais frios e colheitas devastadas. Na Europa, teria alguns efeitos surpreendentes. Excepcionalmente, uma vez que tanto do indispensável campesinato trabalhador nos países ocidentais, como França e Inglaterra, morreu, os que restaram puderam negociar melhores salários e libertar-se um pouco das exigências dos senhorios. Os começos de uma sociedade mais versátil, já não tão aferrada à propriedade da terra pelas famílias nobres, surgiram em consequência da matança bacteriana. Estranhamente, na Europa Oriental o efeito foi quase inverso. Os proprietários de terras acabaram por ver o seu poder e alcance acrescidos e arrastaram gradualmente o campesinato sobrevivente para uma sujeição mais pesada, designada pelos historiadores como «segunda servidão». Isto foi possível porque os proprietários da Europa Oriental, que chegaram mais tarde ao feudalismo, eram um pouco mais poderosos e bem enraizados antes de ter chegado a epidemia. As cidades da actual Polónia, da Alemanha Oriental e da Hungria eram menos povoadas e poderosas do que as cidades mercantis – apoiadas no comércio da lã e do vinho – do norte de Itália e de Inglaterra. Os progressos nos direitos jurídicos e no poder das guildas na Europa Ocidental poderão não ter sido extraordinários pelos padrões actuais, mas foram suficientes para terem feito pender a vantagem contra a nobreza, num momento em que a força de trabalho era escassa. A leste, a aristocracia era mais impiedosa e deparava com menos resistência do campesinato disperso. Assim, uma modesta diferença no equilíbrio do poder, subitamente exagerada pelo abalo social decorrente da Peste Negra, provocou mudanças extremamente divergentes que, durante séculos, teriam como efeito um maior avanço e uma maior complexidade social da Europa Ocidental em comparação com territórios de aparência semelhante imediatamente a leste. A França e a Holanda influenciaram todo o mundo; a Polónia e as terras checas influenciaram apenas o mundo da sua envolvência imediata. Esses efeitos eram, obviamente, invisíveis para aqueles que atravessaram as devastações da peste, que regressaria periodicamente nos séculos mais próximos. No primeiro regresso, particularmente horrendo, as cidades tornaram-se espectros fantasmagóricos do espaço animado que em tempos haviam sido. Aldeias inteiras esvaziaram-se, deixando os seus campos regressarem ao matagal e aos bosques. Prosperaram a obsessão e o extremismo religiosos, e impregnou-se profundamente no povo cristão uma visão sombria do fim dos tempos. As autoridades vacilavam. As artes e os ofícios decaíram. O papado tremeu. Do outro lado da Eurásia, a glória da China Song desmoronou-se e também aí os camponeses se revoltaram. A mensagem de esperança de Marco Polo ecoou em vão entre povos que ainda não estavam suficientemente fortes para se esticarem e darem as mãos.
Andrew Marr (História do Mundo (Vol. 3))
Vida é o que existe entre o nascimento e a morte. O que acontece no meio é o que importa. No meio, a gente descobre que sexo sem amor também vale a pena, mas é ginástica, não tem transcendência nenhuma. Que tudo o que faz você voltar pra casa de mãos abanando (sem uma emoção, um conhecimento, uma surpresa, uma paz, uma ideia) foi perda de tempo. Que a primeira metade da vida é muito boa, mas da metade pro fim pode ser ainda melhor, se a gente aprendeu alguma coisa com os tropeços lá do início. Que o pensamento é uma aventura sem igual. Que é preciso abrir a nossa caixa preta de vez em quando, apesar do medo do que vamos encontrar lá dentro. Que maduro é aquele que mata no peito as vertigens e os espantos. No meio, a gente descobre que sofremos mais com as coisas que imaginamos que estejam acontecendo do que com as que acontecem de fato. Que amar é lapidação, e não destruição. Que certos riscos compensam – o difícil é saber previamente quais. Que subir na vida é algo para se fazer sem pressa. Que é preciso dar uma colher de chá para o acaso. Que tudo que é muito rápido pode ser bem frustrante. Que Veneza, Mykonos, Bali e Patagônia são lugares excitantes, mas que incrível mesmo é se sentir feliz dentro da própria casa. Que a vontade é quase sempre mais forte que a razão. Quase? Ora, é sempre mais forte. No meio, a gente descobre que reconhecer um problema é o primeiro passo para resolvê-lo. Que é muito narcisista ficar se consumindo consigo próprio. Que todas as escolhas geram dúvida, todas. Que depois de lutar pelo direito de ser diferente, chega a bendita hora de se permitir a indiferença. Que adultos se divertem muito mais do que os adolescentes. Que uma perda, qualquer perda, é um aperitivo da morte – mas não é a morte, que essa só acontece no fim, e ainda estamos falando do meio. No meio, a gente descobre que precisa guardar a senha não apenas do banco e da caixa postal, mas a senha que nos revela a nós mesmos. Que passar pela vida à toa é um desperdício imperdoável. Que as mesmas coisas que nos exibem também nos escondem (escrever, por exemplo). Que tocar na dor do outro exige delicadeza. Que ser feliz pode ser uma decisão, não apenas uma contingência. Que não é preciso se estressar tanto em busca do orgasmo, há outras coisas que também levam ao clímax: um poema, um gol, um show, um beijo. No meio, a gente descobre que fazer a coisa certa é sempre um ato revolucionário. Que é mais produtivo agir do que reagir. Que a vida não oferece opção: ou você segue, ou você segue. Que a pior maneira de avaliar a si mesmo é se comparando com os demais. Que a verdadeira paz é aquela que nasce da verdade. E que harmonizar o que pensamos, sentimos e fazemos é um desafio que leva uma vida toda, esse meio todo.
Martha Medeiros
Deveria ter dado voz às minhas preocupações, se não para outra pessoa, ao menos para mim mesmo. Era minha decisão, afinal. Mas algo estranho tinha começado a acontecer. Em um ambiente em que as pessoas estavam desesperadas para fazer coisas por mim mesmo, comecei a perder a capacidade de fazer e pensar coisas por mim mesmo. Deixando minha nova equipe em LA me encorajar em relação à minha carreira e me expor a esse novo estilo de vida de Hollywood, senti que tinha dado um passo além e terceirizado minha habilidade de tomar qualquer tipo de decisão ou de ter minhas próprias opiniões. Se as pessoas te lembram o tempo todo de quanta sorte você tem e de que uma determinada maneira de viver é legal, você começa a acreditar, mesmo que não seja o que sente lá no fundo. De repente, suas habilidades de crítica enfraquecem e você deixar de ser você mesmo. Pouco a pouco, deixei de ser eu mesmo.
Tom Felton (Beyond the Wand: The Magic & Mayhem of Growing Up a Wizard)
Chaparro se prometera que aquela mulher não iria enlouquecê-lo de novo, porque ele estava bem assim, e porque não precisava de uma nova e brutal desilusão, de uma nova insônia, de um novo vazio no estomâgo. Foi por isso que lhe disse “como vai, doutora?, quanto tempo”, embora notasse que ela ficava meio sem graça, porque vinha adiantando a face para dar um beijo nele e se atrapalhava como se atrapalha alguém que vem nos tratar por você e topa com uma parede de quatro metros, sem fissuras, à qual convém responder “bem, e o senhor?, é verdade, quanto tempo”. E por isso, porque a situação o aborreceu, angustiou ou entristeceu — ou lhe produziu todos esses sentimentos —, Chaparro balbuciou a desculpa de que havia deixado um monte de trabalho inacabado sobre sua escrivaninha e saiu disparado. Retirou-se em velocidade suficiente para escapar ao perfume que ela sempre usara, mas não para ficar a salvo de escutar as corriqueiras respostas às corriqueiras perguntas de como vai sua família, Irene, bem, graças a Deus as meninas bem, seu marido, meu marido bem, trabalhando muito e de saúde muito bem; raios partam também a ele, o desgraçado filho de mil putas, com perdão da palavra porque o estúpido não tem culpa de ter se casado com ela mas dá no mesmo, com que direito ela fez isso a ele, que estava tão bem sozinho ou efemeramente acompanhado.
Eduardo Sacheri (El Secreto de Sus Ojos)
Um breve encontro de mãos. O corpo a ser-me cingido num abraço e depois largado. Os olhos envenenados de sonhos, como que inundados de água prateada, estrelada. E o teu pai à distância, a repelir-me, a fugir-me por entre os dedos. Areia a escapar-se-me da palma da mão. A boca dele era o Pacífico no seu ponto mais profundo, onde a Terra é um abismo de escuridão e de pressão indomável. Eu desejava-o, irracional e imoralmente, inconsciente do que era a ânsia física e do muito que me entorpecia cada movimento. Eu era jovem e inócua; o tempo revolteava como uma onda sobre esse desejo agora enterrado, que ainda pulsa. Lateja sete palmos abaixo da superfície. Somando todos os meus dias, vejo que tudo o que foi meu se agita sete palmos debaixo de terra.
Célia Correia Loureiro (Os Pássaros)
Vejo esses que chegam e saem a todo tempo. Tão seguros de si, tão felizes e prósperos. Dá uma vontade grande de chamar cada um e pedir, Deixa eu te contar uma história? Era uma vez um país que ficou décadas sem poder escolher o presidente, daí quando foi possível isso acontecer novamente escolheram tão errado que o novo cara meteu a mão na grana de todo mundo, sem pestanejar. E fez tanta merda que foi expulso do trono, e o irmão e o braço direito dele morreram de forma esquisita, e então ficou todo mundo olhando um para o outro dizendo, A culpa foi sua de ter colocado ele lá. Aí veio gente dizer que era melhor antes, quando outros escolhiam, porque essa galera não está preparada para a liberdade, e fim de papo. O cachorro correndo atrás do próprio rabo, e quando o morde tem raiva de estar sendo atacado, e então revida mordendo mais forte ainda.
Henrique Rodrigues (O Próximo da Fila)
Os participantes das redes de compartilhamento de arquivos compartilham diferentes tipos de conteúdos. Podemos dividi-los em quatro tipos. A-Esses são aqueles que usam as redes P2P como substitutos para a compra de conteúdo. Dessa forma, quando um novo CD da Pitty é lançado, ao invés de comprar o CD, eles simplesmente o copiam. Podemos argumentar se todos os que copiaram as músicas poderiam comprá-las caso o compartilhamento não permitisse baixá-las de graça. Muitos provavelmente não poderiam, mas claramente alguns o fariam. Os últimos são os alvos da categoria A: usuários que baixam conteúdo ao invés de comprá-lo. B-Há alguns que usam as redes de compartilhamento de arquivos para experimentarem música antes de a comprar. Dessa forma, um amigo manda para outro um MP3 de um artista do qual ele nunca ouviu falar. Esse outro amigo então compra CDs desse artistas. Isso é uma forma de publicidade direcionada, e que tem grandes chances de sucesso. Se o amigo que está recomendando a música não ganha nada recomendando porcarias, então pode-se imaginar que suas recomendações sejam realmente boas. O saldo final desse compartilhamento pode aumentar as compras de música. C-Há muitos que usam as redes de compartilhamento de arquivos para conseguirem materiais sob copgright que não são mais vendidos ou que não podem ser comprados ou cujos custos da compra fora da Net seriam muito grandes. Esses uso da rede de compartilhamento de arquivos está entre os mais recompensadores para a maioria. Canções que eram parte de nossa infância mais que desapareceram há muito tempo atrás do mercado magicamente reaparecem na rede. (Um amigo meu me disse que quando ele descobriu o Napster, ele passou um fim de semana inteiro "relembrando" músicas antigas. Ele estava surpreso com a gama e diversidade do conteúdo disponibilizado.) Para conteúdo não vendido, isso ainda é tecnicamente uma violação de copyright, embora já que o dono do copgright não está mais vendendo esse conteúdo, o dano econômico é zero o mesmo dano que ocorre quando eu vendo minha coleção de discos de 45 RPMs dos anos 60 para um colecionador local. D-Finalmente, há muitos que usam as redes de compartilhamento de arquivos para terem acesso a conteúdos que não estão sob copgright ou cujo dono do copyright os disponibilizou gratuitamente. Como esses tipos diferentes de compartilhamento se equilibram? Vamos começar de alguns pontos simples mas importantes. Do ponto de vista legal, apenas o tipo D de compartilhamento é claramente legal. Do ponto de vista econômico, apenas o tipo A de compartilhamento é claramente prejudicial. [78] O tipo B de compartilhamento é ilegal mas claramente benéfico. O tipo C também é ilegal, mas é bom para a sociedade (já que maior exposição à música é bom) e não causa danos aos artistas (já que esse trabalho já não está mais disponível). Portanto, como os tipos de compartilhamento se equilibram é uma pergunta bem difícil de responder e certamente mais difícil do que a retórica envolvida atualmente no assunto sugere.
Lawrence Lessig (Cultura Livre (Portuguese Edition))
Cipriano defendia, como Valentino de Alexandria e outros panteístas, que tudo o que existe é Deus, incluindo cada homem e cada pedra, e que esse Deus que somos todos não é nem bom nem mau, ou é tudo isso sem distinção e alheadamente. Deus, disse-me Cipriano, é o que somos dormindo. - Todas as coisas têm o seu Deus - acrescentou. - Estamos cercados por Eles. Fiquei durante muito tempo pensando naquilo. Imaginando cada homem, cada ser, segregando o seu próprio Deus a partir de algum órgão escondido sob a pele da alma: o grave Deus das corujas. O hábil Deus das cobras. O Deus generoso dos quintais. O Deus traiçoeiro das adagas. O Deus zebrado das zebras. O Deus tagarela dos corvos e dos advogados. O humilde Deus dos pardais. O Deus insalubre dos pântanos. O Deus cabisbaixo dos canalhas. O pálido Deus das osgas. O rápido Deus das tormentas. O líquido Deus dos peixes. O áspero Deus dos sertões. O cálido Deus das praias. O ressequido Deus dos catos. O esquivo Deus dos jaguares. O Deus perfumado dos jasmins.
José Eduardo Agualusa (A Rainha Ginga e de Como os Africanos Inventaram o Mundo)
inventamos deus porque temos de nos policiar uns aos outros, é verdade. é tão mais fácil gerir os vizinhos se compactuarmos com a hipótese de existir um indivíduo sem corpo que atravessa as casas e escuta tudo quanto dizemos e vê tudo quanto fazemos. é tão mais fácil se esta ideia for vendida a cada pessoa com a agravante de se lhe dizer que, um dia, quando morrer, esse mesmo sinistro ser virá ao seu encontro para o punir ou premiar pelo comportamento que houver tido em todo o tempo que gastou. e a comunidade respira mais de alívio por saber que estamos todos policiados da melhor maneira, temos um polícia dentro de nós, um que sendo só nosso também é dos outros e, a cada passo, pode debitar-nos ou acusar-nos e terminar o nosso percurso com facilidade. eu sei que a humanidade inventa deus porque não acredita nos homens e é fácil entender por quê. os homens acreditam em deus porque não são capazes de acreditar uns nos outros. e quanto mais assim for, quanto menos acreditarmos uns nos outros outros, mais solicitamos o policiamento, e se o policiamento divino entre em crise, porque as mentes se libertam e o jugo glutão da igreja já não funciona, é preciso que se solicite do estado esse policiamento. que medo o de voltarmos ao tempo de uma polícia para os costumes e convicções. que medo se voltarmos a temer os vizinhos e os vizinhos nos puderem entregar por ideias contrárias. que medo se nos entra outro filho da puta no poder, a censurar tudo quanto se diga e a mandar que pensemos como pensa e façamos como diz que faz. que medo de tudo se em tudo quanto os homens fazem vai a vontade torpe de ultrapassar o outro, poder mais do que o outro, convencer o outro de que fica bem no andar de baixo e depois subir, subir o mais sozinho possível, porque ganhar acompanhado não satisfaz ninguém. estamos a fazer tudo errado agora, sem valores, sem medo da igreja, sem um fascismo que nos regule o voluntarismo. estamos como que sozinhos da maneira errada. mais sozinhos do que nunca, a ver a coisa passar sem sabermos muito bem em quem confiar. e nisto, é verdade, pressupomos que todos são bons homens, mas a cabeça de alguns, se não a de todos, tem de estar a cozinhar muito do esquisito que para aí acontece e se sente. muito do esquisito que nos impede, mais e mais, de acreditar nos homens.
Valter Hugo Mãe
Se a realidade viesse atingir diretamente nossos sentidos e nossa consciência, se pudéssemos entrar em comunicação imediata com as coisas e com nós mesmos, estou certo de que a arte seria inútil, ou antes, que seríamos todos artistas, porque nossa alma vibraria então continuamente em uníssono com a natureza. Nossos olhos, ajudados pela memória, recortariam no espaço e fixariam no tempo quadros inimitáveis. Nosso olhar captaria de passagem, esculpidos no mármore vivo do corpo humano, fragmentos de estátua tão belos como os da estatuária antiga. Ouviríamos cantar no fundo de nossas almas, como música por vezes alegre, o mais das vezes lamentosa, sempre original, a melodia ininterrupta de nossa vida interior. Tudo isso está em torno de nós, tudo isso está em nós, e no entanto nada de tudo isso é percebido por nós distintamente. Entre a natureza e nós, apenas? Entre nós e nossa própria consciência um véu se interpõe, espesso para o comum dos homens, leve e quase transparente para o artista e o poeta. Que fada teceu esse véu? Terá sido por malícia ou amizade? Impunha-se viver, e a vida exige que apreendamos as coisas na relação que elas mantêm com nossas necessidades. Viver consiste em agir. Viver é aceitar dos objetos só a impressão útil para a eles reagir de modo adequado: as demais impressões devem se obscurecer ou só nos chegarem confusamente. Enxergo o que creio ver, escuto o que creio ouvir, analiso-me e creio ler no fundo do meu peito. Mas o que vejo e o que ouço do mundo exterior é simplesmente o que meus sentidos extraem dele para esclarecer minha conduta; o que conheço de mim mesmo é o que aflora à superfície, o que toma parte na ação. Meus sentidos e minha consciência só me proporcionam da realidade uma simplificação prática. Na visão que me dão das coisas e de mim mesmo, as diferenças inúteis ao homem são apagadas, as semelhanças úteis ao homem são acentuadas, as vias me são traçadas de antemão por onde minha ação enveredará. Essas são as mesmas pelas quais toda a humanidade passou antes de mim. As coisas foram classificadas com vistas à vantagem que poderei tirar delas. E é essa classificação que percebo, muito mais que a cor e a forma das coisas.
Henri Bergson (Laughter: An Essay on the Meaning of the Comic)
[…] Depois de algum tempo, de ter perguntado pelo Tô Manel a várias pessoas, lembrei-me de ir tentar a sorte no ponto de encontro. Meti-me na bicha e fui escutando os apelos que as pessoas iam fazendo em busca dos seus familiares: “me chamo Fololinda Gouveia, estou a precurar meu filho que desapareceu em oitenta e nove, nome dele mais conhecido é Joãozinho Gouveia, peço só nas pessoas que estão a me ouvir favor só de lhe falarem que mãe dele está lhe precurar, moro no Cazenga”; “Meu nome é André Sapanjo, estou a precurar minha mulher que fugiu com outro homem em noventa e dois, uma grande cabra!, perdão!, não era isso que queria dizer, faz só favor de cortar nesta parte, cabra era no antigamente, agora que estou com a palavra do Senhor no coração não lhe posso chamar nem de cabra nem de puta, ai! ai! ai!, corta, corta, corta só também nesta palavra de puta que é muito feia, já cortou?, hã, ok…, nome dela da minha santinha é Madalena, quero que ela volta, volta só mana Lena, minha fofinha, agora estou bem na vida, mijo forte, tenho carros nas lundas, aqui em Luanda tenho várias lojas e carros, vou te dar cama e mesa, vais ver só no amor que vou te dar, moro na Mabor!”; “Meu nome que me pusseram com ele no baptismo é Mana Maria Teresinha do Menino Jesus, diga?, juro mesmo é esse nome que me pusseram com ele!, me chamam também mana Teté, estou só a precurar no pai das crianças que ele me deixou quando quando foi na tropa em oitenta e nove, o nome dele?, o nome dele mesmo é Zeca, Zeca quê?, Zeca só!, o outro nome dele nunca lhe perguntei, mas está aqui foto dele, peço só para me falarem onde é que ele está, vivo ou morto!, Zeca vem só na casa, as crianças estão te chorar todos dias!, moro no Golfe perto da paragem dos autocarros.” Uma velha, de panos, falando umbundo, olhava atentamente para cãmera da TPA que fazia o registo dos apelos e gesticula como se estivesse a ver a imagem da pessoa que procurava reflectida no olhp da câmera: “ Onde é que andas meu Neto?, desde que foste na tropa não voltaste mais porquê?, te mataram nos bandidos ou quê?, fala só meu neto, fala, não faz mais sofrer na tua mãe e na tua avó, ouviste? Vem só na casa, estamos a morar na mesma casa aqui em Luanda, ele me ouviu né?, só logo a noite no Nação Coragem?, não faz mal, mas tenho certeza que está hora ele já me viu falar”. Quando chegou a minha vez exibi foto dele que dona Marília me tinha enviado com a carta, era uma foto muito antiga tirada nos anos sessenta que, talvez por isso, era capaz de não ajudar nada, o Tô hoje deve ter mais ou menos a minha idade, mas pronto, deixei a foto e a filiação dele, e acrescentei que ele devia de estar na província da Huíla, e a única forma de eu puder ser contactodo caso alguém soubesse do Tô era só memso na portária da Rádio. Pessoas que estvam por perto ainda se admiraram por um preto vir procurar paradeiro de um branco, por isso me olharam só dessas – as dúvidas. Sei que a foto dele passou várias vezes no Nação Coragem e depois, cerca de quarenta dias após minha ida no Ponto de Encontro, a Rádio pela mesma via mandou-me chamar: o Tô manel tinha morrido naufragado ao largo sudoeste da africano.[…] — Noites de Vigília, de Boaventura Cardoso
Noites de Vigília, de Boaventura Cardoso
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Boaventura Cardoso
A vida, diz-se, só é tolerável quando percebemos nela alguma razão de ser, quando ela tem um objetivo, e que valha a pena. Ora, o indivíduo, por si só, não é um fim suficiente para sua atividade. Ele é muito pouca coisa. Além de ser limitado no espaço, é estreitamente limitado no tempo. Portanto, quando não temos outro objetivo além de nós mesmos, não podemos escapar à ideia de que nossos esforços estão, afinal, destinados a se perder no nada, pois a ele devemos voltar. Mas a anulação nos apavora. Nessas condições, não conseguimos ter coragem para viver, ou seja, para agir e lutar, uma vez que, de todo esse trabalho que temos, nada irá restar. Em suma, o estado de egoísmo estaria em contradição com a natureza humana e, por conseguinte, seria precário demais para ter possibilidades de perdurar.
Émile Durkheim (Suicide: A Study in Sociology)
Vistos de perto, somos uma gente descuidada e bruta no trato íntimo. Há pessoas preocupadas com os sentimentos dos outros, mas são minoria. No atacado, oferecemos um show coletivo de descaso e grosserias. A regra principal, que parece única, é assim: se eu estiver interessado, apaixonado ou com tesão, corro atrás e me desvelo. Se não estiver, ou se não estiver mais, azar. O outro será ignorado ou destratado. temos por aqui pouca atenção e pouco respeito pelo outro – mesmo por pessoas que dividem seu corpo, seu tempo e seus sentimentos conosco. Achamos que a atenção e o carinho que recebemos são uma espécie de direito natural. Logo, não precisam ser retribuídos. Isso torna as delicadezas supérfluas. A gente não diz coisas que possam atrapalhar nossos planos imediatos. Pegamos o que precisamos e o outro que se vire com os sentimentos dele. Esse modo de agir torna a brutalidade afetiva uma moeda corrente. Se saímos com alguém e não nos apaixonamos, o padrão de tratamento desaba. Antes, um príncipe. Depois, um desaparecido. Ou uma ogra de unhas vermelhas. A gente diz que vai telefonar e não telefona. A gente ignora mensagens diretas nas redes sociais. A gente cancela encontros na última hora. A gente trata mal, enfim. Tem gente que aparece com uma pessoa nova na frente daquela com quem estava até ontem, numa demonstração espantosa de descaso. Se alguém reclama, é mimimi. A coisa só fica séria quando fazem tudo isso com a gente. Então é intolerável. O que estou dizendo é que as pessoas merecem nossa atenção e nosso cuidado mesmo quando não as desejamos mais, ou não estamos apaixonados por elas. Queremos tanto que gostem da gente que não nos importamos em iludir para sermos amados. Depois, quando o afeto dele ou dela não importa mais, nos tornamos francos. Quer dizer, insensíveis e até grosseiros. Sofremos e praticamos todo tipo de desatenção. Na verdade, não estamos acostumados a tratar o outro com o cuidado com que desejamos ser tratados.
Ivan Martins
Os psicanalistas aceitavam, sem questioná-la, a antítese absoluta entre natureza (instinto, sexualidade) e cultura (moralidade, trabalho e dever) e chegaram à conclusão de que "a sobrevivência dos impulsos" está em desacordo com a cura. Levei muito tempo para superar o meu medo a esses impulsos. Era claro que os impulsos anti-sociais que enchem o inconsciente são viciosos e perigosos apenas enquanto está bloqueada a descarga de energia biológica por meio da sexualidade. Se este é o caso, há apenas, basicamente, três saídas patológicas: impulsividade autodestrutiva desenfreada (vício, alcoolismo, crime causado por sentimentos de culpa, impulsividade psicopata, assassínio sexual, violação de crianças, etc.); neuroses de caráter por inibição dos instintos (neurose compulsiva, histeria de angústia, histeria de conversão); e psicoses funcionais (esquizofrenia, paranoia, melancolia ou insanidade maníaco-depressiva). Estou omitindo os mecanismos neuróticos operantes na política, na guerra, no casamento, na educação das crianças, etc., todos eles conseqüências da falta de satisfação genital de milhões de pessoas.
Wilhelm Reich (The Function of the Orgasm (Discovery of the Orgone #1))
— Você é o milagre pelo qual estive esperando todo esse tempo que passei indo para batalhas e rezando para que algo mudasse. Não consigo suportar a ideia de perder você.
Xiran Jay Zhao (Iron Widow (Iron Widow, #1))
medo de falhar, a culpa, a cobrança excessiva faziam-na se sentir sempre insegura, independente da situação que vivesse. No trabalho, sempre que estava a ponto de conquistar uma promoção, algo acontecia que a fazia retroceder, impedindo-a de ter êxito. Ela se esforçava, dedicava-se mais do que os demais colegas, na tentativa de compensar sua “inferioridade”, porque era assim que ela se sentia o tempo todo: inferior aos outros, insuficiente, menos. E ela compensava esses medos inconscientes buscando alimentar a alma e o coração. No núcleo espírita, participava das atividades de distribuição de sopa fraterna aos moradores de rua. E também de grupos de estudo. Ajudava em tudo o que podia, dentro do pequeno tempo que tinha disponível. Aquelas atividades a nutriam e a mantinham
Sandra Carneiro (Todas as flores que eu ganhei (Portuguese Edition))
Eu acho bizarro esse medo de ofender religiosos. No Brasil, a religião é pública. Morrei no exterior por seis anos, posso falar por experiência própria. A religião está escancarada no congresso, na rua quando pessoas te param pelo menos uma vez por mês para te arrastar para igrejas delas, sem ao menos perguntar sua religião, e se tem uma. Se os religiosos não querem ser ofendidos, mantenham sua religião dentro das igrejas. Eu nunca entrei em igrejas para ofender religiosos, nem entro. Agora, uma pessoa se acha no direito de ficar falando de Deus o tempo todo em público e se ofender quando alguém se declara não crente. Isso é bizarro e irracional.
Jorge Guerra Pires (Ciência para não cientistas: como ser mais racional em um mundo cada vez mais irracional, vol. 1 (Bolsonarismo) (Inteligência Artificial, Democracia, e Pensamento Crítico) (Portuguese Edition))
Esse isolamento reina em toda parte, em nossos tempos, mas não está acabado, seu término ainda não chegou. Pois no presente todos aspiram a separar a sua personalidade das outras pessoas, todos querem saborear pessoalmente a plenitude da vida, mas, longe de atingir a meta, todos os esforços humanos só podem levar a um suicídio coletivo, pois, em vez de afirmar plenamente as suas personalidades, os homens caem na mais completa solidão.
Fyodor Dostoevsky (The Brothers Karamazov)
Todos precisam de perdão, Sofia. Bem como de se harmonizar com as leis divinas. Esse é o primeiro passo para se livrar do peso inútil e começar a mudar a própria vibração. Não olhe mais para trás, somente para a frente. Perdoe-se e fortaleça o desejo de servir ao próximo, de ajudar, de contribuir com bem, para que ele prevaleça na Terra. Você experimentará a mudança de vibração que começará lentamente a se processar em seu interior no instante em que soltar toda a culpa e perdoar a si e aos outros. Com o tempo, verá que não há o que perdoar, terá compaixão por si e por todas as criaturas. Por trás de grande parte dos problemas no mundo há questões de perdão não concedido. Liberte-se e liberte aqueles que lhe devem. ​Sofia balançou a cabeça, finalmente compreendendo a amplitude e eficácia daquela atitude. E ali mesmo ela soltou tudo. Ao sair do quarto, beijou novamente o pai e a mãe, e disse: ​– Eu perdoo vocês e deixo-os livre da culpa. ​Depois foi até o quarto onde a filha dormia e beijou-lhe a face suave. ​– Até amanhã, minha filha. ​Ao retornar para casa, ela perguntou a Acabe: ​– Como conseguiu me perdoar? O que eu fiz... ​Ele pousou o dedo nos lábios dela, impedindo que ela continuasse:
Sandra Carneiro (Todas as flores que eu ganhei (Portuguese Edition))
Esse é o grande segredo, Sofia: o amor. A maior energia do Universo, porque é a essência do próprio Deus. Esteja sintonizada com o amor, não importam quais sejam as dificuldades. Deixe que ele flua através de você. E deixe-se conduzir por essa energia poderosa que irá revigorar suas forças. As pessoas não têm noção da força da energia do amor, porque não conseguem ficar nela por mais do que poucos minutos. Logo algum pensamento, algum sentimento negativo aparece dentro da pessoa, ou mesmo alguma coisa acontece, e pronto. Desaparece aquele sentimento mágico que deixa o ser humano tão poderoso. Por isso, mantenha sua sintonia elevada, com pensamentos e sentimentos positivos. Paciência, autocontrole, fé, confiança em si, tolerância com aqueles que ainda não despertaram para o bem, tudo isso manterá você por mais tempo em sintonia com a energia que vibra no Universo, e dela você tirará forças para prosseguir com seu trabalho, sem luta, apenas deixando que ela flua em sua vida. ​Sofia recebia as palavras inspiradas por Emílio e aceitava-as com facilidade. As transformações que realizava dentro de si propiciavam que ela experimentasse com facilidade a interação espiritual com Emílio. E ele prosseguiu: ​– E nos permitirá auxiliá-la sempre que for necessário, inspirando-lhe os melhores pensamentos. ​Ele a envolveu em intenso carinho e recitou um versículo bíblico: ​“Os que confiam no Senhor obterão vigor, forças novas hão de ter, subirão até as alturas. Como águias voarão.”[15] ​– Você tem todos os recursos para fazer muito mais do que pode imaginar. Há um poder enorme dentro de você, que em conexão e de acordo com os desejos de Deus, de fazer sempre o melhor para todos, libera capacidades impensadas. ​Quando Sofia terminou de cuidar da filha, sentia-se renovada. Sua força interior crescia, e ela foi procurar na bíblia, que mantinha desde a infância, o versículo que lhe surgira à mente. Leu e releu, sentindo cada palavra. Que coisa maravilhosa era o significado daquele ensinamento! Como não percebera antes?
Sandra Carneiro (Todas as flores que eu ganhei (Portuguese Edition))
— Quer saber por que o seu pai não fica por perto? As lágrimas fazem meu nariz arder, mas assinto. Essa é a pergunta que eu nunca deixei de me fazer, por mais que doa. — Porque você vê como ele é — diz Miles. — E o seu pai não consegue suportar isso. E o Peter é a mesma merda com figurino diferente, tão entediado com ele mesmo que se convenceu de que estar com alguém como a Petra iria transformar ele em outra pessoa, sem precisar, sei lá, ter coragem pra tentar tomar ácido. — Ele ficou entediado comigo, Miles — retruco. — Se tivesse a ver com você — insiste ele —, o Peter poderia ter terminado o noivado. Em vez de mudar a vida toda. O que aconteceu tem a ver com ele. Eu já fui esse cara várias vezes, com várias pessoas que eu não merecia. É fácil ser amado por quem nunca viu você ferrar com tudo. Com quem você nunca tem que se desculpar, e que ainda acha que todos as suas “loucuras” são um charme. Miles faz uma pausa antes de continuar. — É fácil estar perto de pessoas que não te conhecem. E, assim que alguém começa a te decifrar, assim que você deixa de ser perfeito, é mais fácil fugir, passar para a próxima pessoa. Encontrar alguém novo com quem você possa ser descolado, divertido, descontraído. — Então é isso? — Minha voz sai embargada. — Eu faço as pessoas se sentirem na pior versão delas. — Daphne, não. — Miles me puxa para junto dele e enfia o rosto no meu pescoço. — Meu Deus, não. — Quando ele recua, vejo covinhas de tensão marcando o maxilar com a barba por fazer. — Escuta. Eu sempre quis ser essa pessoa divertida, fácil de lidar, sem bagagem, mesmo com a Petra. Mas depois de um tempo alguém finalmente vê a gente como a gente é, ou não vê, e as duas possibilidades são uma merda. Porque, se a pessoa vê a gente de verdade e não somos o que ela esperava, ela cai fora. E, se ela nunca vê a gente de verdade... é pior. Porque aí estamos completamente sozinhos. Uma nova pausa. — E eu amava a Petra — continua então —, mas no fundo sabia que, assim que as coisas parassem de ser divertidas, ela iria embora. E ela foi. Encontrou alguma coisa mais romântica, mais perfeita, só mais. Acho que você é a primeira pessoa que me vê de verdade. Que vai além do que eu quero que as pessoas vejam. Miles fica em silêncio por mais um instante. — Você faz as pessoas de quem você gosta se sentirem como... — Ele faz uma pausa. — Como se você quisesse tudo delas. Não só as partes boas. E isso é assustador pra alguém que passou a vida inteira evitando essas outras partes de si mesmo. — Eu não quero fazer as pessoas fugirem de mim apavoradas — digo, a garganta doendo. Miles balança a cabeça. — Vale a pena ficar assustado. Acredita em mim. Por você, vale a pena.
Emily Henry (Funny Story)
É quase impossível ser ao mesmo tempo médico e homem honrado, mas é vergonhosamente impossível ser psiquiatra sem estar marcado a ferro e fogo pela mais indiscutível das loucuras: a de não poder lutar contra esse velho reflexo atávico da turba que converte qualquer homem de ciência aprisionado na própria turba em uma espécie de inimigo nato e inato de todo gênio. A medicina nasceu dos males, e se não nasceu exclusivamente das enfermidades, ao menos provocou e criou o surgimento e o completo desenvolvimento da doença para ter uma razão de ser; mas a psiquiatria surgiu da turba plebeia dos seres que quiseram conservar os males, oriundos diretamente da fonte de enfermidades, que foi destarte arrancado de seu próprio vazio, como uma espécie de policial para liquidar em sua base o impulso de rebelião reivindicativa que está na origem de todo gênio. No alienado há um gênio incompreendido que aloja em sua mente uma ideia que produz pavor, e que só pode encontrar no delírio uma válvula de escape para as opressões que a vida lhe apresenta.
Antonin Artaud (Van Gogh. Il suicidato della società)
Diante dos seus olhos apareceu então a imagem minúscula e claramente iluminada de Adolf Hitler dirigindo-se ao servis lacaios que deviam constituir o Reichtag por finais dos anos 30. Der Führer estava então com o seu ar sarcástico, jovial e zombeteiro. Aquela cena famosa ― que todos os homens de Yancy conheciam de cor― era aquela em que Hitler respondia ao requerimento que lhe fora feito pelo presidente Roosevelt para que garantisse as fronteiras de uma boa dúzia de minúsculas nações europeias. Uma a uma Hitler enunciava as nações que constituíam tal lista, a voz ia num crescendo ao ler o nome de cada uma, e de cada vez, as marionetes articuladas exultavam com o crescendo de troça do seu líder. A emotividade de tudo aquilo ― der Führer, possesso de um divertimento titânico perante aquela lista tão absurda (mais tarde iria invadir, sistematicamente, quase todas as nações então referidas), os rugidos daqueles loucos… Joseph Adams escutava, observava, sentia ecoarem dentro de si esses berros, sentia um divertimento sarcástico em consonância com o de Hitler ― e ao mesmo tempo sentia um receio pura e simplesmente infantil de que aquela cena tivesse alguma vez ocorrido realmente. O que de fato acontecera. Aquele segmento, do primeiro episódio do documentário A, era ― por estranho que tal pudesse parecer, dada a sua natureza de tal modo demoníaca ― autêntico.
Philip K. Dick (The Penultimate Truth)
Atiradas na calçada, uma mãe e duas crianças pequenas pediam esmolas. No fim das contas, a felicidade — essa capacidade que às vezes temos de nos sentirmos bem e em paz e alegres e vibrantes, ignorando todo o sofrimento existente neste mundo —, a felicidade talvez seja a maior desumanidade possível. Dei dez reais à mulher. Era tudo o que eu podia dar. Ela, então, olhou para mim e, para terminar de me devastar, disse o seguinte: — Boas festas! E de todos os “boas-festas” que recebi nesse dia 23 de dezembro, é justamente esse, o dessa mulher, que faço questão de pegar emprestado para oferecer ao leitor. O “boas-festas” da gente sem eira nem beira. O “boas-festas” que nos acusa a todos. Para que não nos esqueçamos de que, afinal, cá estamos, todos nós, integrando esta sociedade doente, onde nenhuma alegria, nem mesmo a menorzinha das alegrias, deixa de ter aspecto indecente. Para que não nos esqueçamos de que, afinal, cá estamos, todos nós, mergulhados num contexto social que vai de mal a pior, onde há muito tempo a comemoração tornou-se absolutamente obscena. Para que percamos por completo a fome em plena ceia de Ano-Novo, incapazes de esquecer aqueles que não têm o que comer. Para que percamos por completo o sono, incapazes de esquecer aqueles que não têm onde dormir. Para que percamos por completo a vontade de sorrir, incapazes de esquecer aqueles que só têm motivos para chorar. Boas festas.
José Falero (Mas em que mundo tu vive? (Portuguese Edition))
Que não iremos de todo sair daqui, porque nos retiveram tanto tempo que o campo de trabalho já é uma aldeia sem torres de vigia e, embora continuemos de facto a não ser russos nem ucranianos, passámos a ser habitantes da terra por habituação. Ou que somos obrigados a ficar aqui durante tanto tempo que já não queremos partir, porque estamos convencidos de que lá em casa já ninguém está à nossa espera, porque há muito tempo vivem lá outras pessoas, porque todos foram expatriados, sabe-se lá para onde, e eles próprios já não encontram lugar em que se sintam em casa. (...) Ter desejos foi algo que nos tiraram no campo de trabalho. Não se tinha de decidir nada, nem tão pouco se queria. É certo que se desejava voltar para casa, mas deixava-se ficar esse desejo no passado, entregue à recordação. Não se ousava a nostalgia do futuro, julgava-se que a recordação já era nostalgia.
Herta Müller (Todo lo que tengo lo llevo conmigo)
A morte deve ser privada de seu caráter como lugar de incursão do metafísico; sua banalização deve banir a questão sinistra por ela colocada. Schleiermacher falou, certa vez, do nascimento e da morte como "perspectivas" por meio das quais o homem vislumbra o infinito. Mas justamente esse infinito põe em questão seu caráter ordinário, o que faz com que o homem procure bani-lo: a repressão da morte é mais efetiva quando a morte foi naturalizada. A morte deve tornar-se tão coisificada, tão ordinária, tão pública, que nela não reste mais nenhum resquício de questão metafísica. Isso tudo tem consequências decisivas para a relação do homem consigo mesmo e com a realidade em sua totalidade. A ladainha de Todos os Santos expressa a disposição do fiel cristão diante da morte, na seguinte prece: A subitanea morte, libera nos, Domine - "Livrai-nos, Senhor, da morte precoce e inesperada". O arrebatamento súbito, sem que se esteja preparado, munido para enfrentá-lo, aparece como o perigo do homem, do qual ele quer ser salvo. Seu desejo é o de trilhar em plena consciência o último trecho do caminho; ele quer morrer por si mesmo. Se hoje resolvessemos formular uma ladainha dos não fiéis, sem dúvida a prece seria o inverso: "Senhor, dá-nos uma morte repentina e inesperada". A morte deve chegar repentinamente, sem dar tempo para pensar nem sofrer. Aqui fica claro, primeiramente, que a anulação plena do temor metafísico não foi bem sucedida; a pretensão era a de ter pleno controle sobre a própria morte, de preferência, produzindo-a por si mesmo, fazendo-a desaparecer como questão que supera a técnica e que diz respeito ao ser humano como tal. A importância que se confere à questão da eutanásia baseia-se no fato de que é preciso anular a morte como fenômeno que foge ao meu controle, substituindo-a pela morte técnica, a qual eu mesmo não necessito morrer. É preciso fechar a porta à metafísica, antes que ela consiga entrar.
Bento XVI (Escatologia - Morte e Vida Eterna)
Mas a realidade sempre caía sobre mim assim que eu acordava em minha cela fria e escura, mantendo os olhos abertos só por um momento na tentativa de voltar a dormir e viver aquilo de novo. Levei várias semanas para aceitar que estava preso e que não iria para casa tão cedo. Por mais duro que fosse, esse passo foi necessário para me fazer entender minha situação e agir com objetividade para evitar o pior, em vez de perder tempo com as peças que minha mente me pregava. Muita gente não supera essa fase: perde o juízo. Vi muitos detentos que acabaram ficando loucos. A fase dois chega quando você entende de verdade que está na prisão e que não possui nada além de todo o tempo do mundo para pensar na vida — embora em GTMO os detentos tenham também de se preocupar com os interrogatórios diários. Você entende que não tem controle sobre nada, que não decide quando vai comer, quando vai dormir, quando vai tomar banho, quando vai acordar, quando vai ao médico, quando vai estar com o interrogador. Não tem privacidade alguma; nem para expelir uma gota de urina sem ser vigiado. No começo, é horrível perder todos os privilégios num piscar de olhos, mas ainda que pareça mentira, as pessoas se acostumam. Eu mesmo me acostumei. A fase três consiste em descobrir sua nova casa e sua nova família. Sua família é integrada por carcereiros e interrogadores. Certo, você não escolheu essa família, nem foi criado nela, mas seja como for é uma família, goste você ou não, com todas as vantagens e desvantagens. Eu pessoalmente amo minha família e não a trocaria por nada no mundo, mas criei uma família na cadeia com a qual também me preocupo. Cada vez que um membro de minha família atual vai embora, é como se um pedaço do meu coração estivesse sendo arrancado. Mas fico feliz quando um parente ruim tem de ir embora. Fase quatro: acostumar-se à prisão e ter medo do mundo lá fora.
Mohamedou Ould Slahi (Guantánamo Diary: Restored Edition)
E assim por diante, na ladainha sem fim que todos os interrogadores recitavam quando viam pela primeira vez seus detentos. Muitos detentos não conseguiam deixar de rir ao ouvir esse absurdo mais próprio do Feitiço do Tempo [Groundhog Day]; na verdade, era o único entretenimento que tínhamos na câmara de interrogatório. Quando o interrogador disse a um dos detentos “Sei que você é inocente”, ele riu com vontade e respondeu: “Preferia ser um criminoso e estar em casa com meus filhos”. Acho que qualquer coisa perde força por ser muito repetida. Quando uma pessoa ouve pela primeira vez uma expressão como “Você é o pior criminoso da face da Terra”, o mais provável é que fique assustadíssima. Porém, quanto mais ouve isso, mais o medo vai diminuindo, e chega o momento em que não tem efeito nenhum. Soa mais como um bom-dia.
Mohamedou Ould Slahi (Guantánamo Diary: Restored Edition)
Talvez esse tempo todo, eu deveria estar procurando por alguém tão fodido quanto eu. Talvez dois pedaços quebrados possam ser colados juntos para formar um todo.
Stylo Fantome (Church (Church, #1))
Depois que Julie soube que estava morrendo, sua melhor amiga, Dara, querendo ser útil, enviou-lhe o conhecido ensaio “Bem-vindo à Holanda”. Escrito por Emily Perl Kingsley, mãe de uma criança com síndrome de Down, esse texto trata da experiência de ter suas expectativas de vida viradas de cabeça para baixo. Esperar um bebê é como planejar uma viagem fabulosa à Itália. Você compra um monte de guias e faz seus planos maravilhosos. O Coliseu, o David de Michelangelo, as gôndolas de Veneza. Pode ser que você aprenda algumas frases práticas em italiano. Tudo é muito excitante. Depois de meses de expectativa e ansiedade, finalmente chega o dia. Você faz as malas e vai. Várias horas depois, o avião aterrissa. A aeromoça aparece e diz: “Bem-vindos à Holanda”. “Holanda?!?”, você diz. “Como assim, Holanda?? Minha viagem era para a Itália! Eu deveria estar na Itália. Passei a vida toda sonhando em ir para a Itália.” Mas houve uma mudança no plano de voo. Eles aterrissaram na Holanda, e é lá que você tem que ficar. O importante é que eles não te levaram para um lugar horroroso, desagradável, imundo, cheio de pestilência, fome e doenças. É apenas um lugar diferente. Então, você precisa sair e comprar novos guias. Precisa aprender uma língua completamente nova. Você vai conhecer todo um novo grupo de pessoas que nunca viu. Trata-se apenas de um lugar diferente. É mais tranquilo do que a Itália, menos chamativo do que a Itália, mas depois que você está lá por um tempo e consegue recuperar o fôlego, olha em volta... e começa a reparar que a Holanda tem moinhos de vento... e a Holanda tem tulipas. A Holanda tem até Rembrandt. Mas todo mundo que você conhece está na agitação de ir e vir da Itália... Todos se vangloriam sobre a temporada maravilhosa que passaram lá. E pelo resto da sua vida, você dirá: “É, era para lá que eu deveria ter ido. Foi isso que planejei”. A dor disso nunca, jamais, jamais, jamais desaparecerá... porque a perda desse sonho é uma perda muito, muito significativa. Mas... se você passar a vida toda lamentando o fato de não ter chegado à Itália, pode ser que nunca se sinta livre para aproveitar coisas muito especiais e encantadoras que existem na Holanda.
Lori Gottlieb (Maybe You Should Talk to Someone: A Therapist, Her Therapist, and Our Lives Revealed)
Conquistar é uma palavra que pode ser entendida de muitas maneiras — embora não pareça. Durante todo esse tempo em que estamos vivos, tentamos conquistar tudo aquilo que está a nossa volta. E, assim como não percebemos o que estamos conquistando. Estamos conquistando uma boa nota na escola? Estamos conquistando um pequeno animal para que possamos viver com ele? Estamos conquistando a nós mesmos para que possamos viver sem medo?
Wan Tashiro (A Caçada (Golden Hunter, #1))
Aprenderá como se diz aqui: cada homem é todos os outros. Esses outros não são apenas os viventes. São também os já transferidos, os nossos mortos. Os vivos são vozes, os outros são ecos.
Mia Couto (Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra)
Oh, sim, uma pessoa nunca é o que é - não de todo, não exactamente quando está só e vive no estrangeiro e fala sem cessar uma língua que não é a a sua ou aquela com que começou a falar. Por muito que o tempo de ausência se prolongue e não se vislumbre o seu termo porque não foi fixado desde o início ou se diluiu e não está já previsto, e além disso não haja razões para pensar que um dia possa haver ou divisar-se esse termo e o consequente regresso (o regresso ao antes que não terá esperado), e assim a palavra «ausência» perca sentido e enraizamento e força a cada hora que passa e que se passa longe e então também esta mesma outra palavra, «longe», os perde, esse tempo da nossa ausência vai-se-nos acumulando como um estranho parênteses que no fundo não conta nem nos alberga a não ser como fantasmas comutáveis sem marca, e do qual portanto tão-pouco temos de prestar contas a alguém, nem sequer a nós (ou pelo menos não pormenorizadas, nunca completas). Uma pessoa sente-se até certo ponto irresponsável pelo que faz ou presencia, como se tudo pertencesse a uma existência provisória, paralela, alheia ou emprestada, fictícia ou quase sonhada - ou talvez seja teórica como toda a minha vida, segundo a informação sem assinatura do velho ficheiro que me dizia respeito; como se tudo pudesse ser relegado para a esfera do apenas imaginado e nunca ocorrido, e decerto do involuntário; tudo metido no saco das figurações e das suspeitas e hipóteses, e até no dos meros e desatinados sonhos, acerca dos quais houve um insólito e quase permanente e universal consenso ao longo de todos os séculos de que há memória, conjecturada ou histórica, fabulada ou certa: não dependem da intenção daquele que sonha e este nunca é culpado do seu conteúdo. (...) A ideia que surgiu do onírico fica amiúde descartada ou invalidada por isso mesmo, pela sua proveniência titubeante e obscura, pela sua nublada origem nos fumos, mas nem sempre desaparece quando a consciência regressa, pelo contrário esta recolhe-a e por vezes até a nutre, e assim também convive com aquilo que não foi ela a gerar; admite-o no seu seio e nele cria-o, dá-lhe figura e até nome, e integra-o no seu mundo controlado e diurno mesmo rebaixando-o de categoria, atribuindo-lhe um carácter venial e encarando-o com paternalismo, como se todo o sonho sobrevivente na luz tivesse por força de ser acompanhado pelo comentário irónico de Sir Peter Wheeler quando se retirou por fim, escadas acima e para a esquerda, na noite de sábado do seu jantar buffet: «Que disparate» (...) Mas com toda essa condescendência em relação aos disparates, aprendi a temer não só tudo o que ocorre ao pensamento como o que o pensamento ainda ignora, porque vi quase sempre que tudo já estava ali, num sítio qualquer, antes de chegar a este ou cruzá-lo. Aprendi a temer, portanto, não só o que se concebe, a ideia, como o que a antecede ou lhe é prévio. De um modo semelhante aos simulacros e sonhos, percebemos e vivemos esse tempo entre parênteses da nossa ausência e tudo quanto nele está envolvido: as nossas façanhas ou crimes e todos os actos próprios e alheios; não só os que cometemos ou sofremos, também os que presenciamos ou provocamos, sem querer ou querendo; e nele nunca nada é demasiado sério, é o que pensamos.
Javier Marías (Dance and Dream (Your Face Tomorrow, #2))
O riso une os homens desinteressadamente entre si, e entre si as mulheres, e o que estabelece entre mulheres e homens pode ser um vínculo ainda mais forte e retesado, uma união mais profunda, complexa e mais perigosa por mais duradoura ou com maior aspiração de durabilidade. O duradouro desinteressado acaba por se rarefazer, às vezes por se tornar feio e difícil de tolerar, alguém tem de estar em dívida a longo prazo e só assim as coisas marcham, um ou outro um pouco mais, e a entrega e a abnegação e o mérito podem ser um caminho seguro para tomar posse do lugar do credor. Assim me ri com Luisa em oportunidades sem fim, breve e inesperadamente, vendo a graça os dois no mesmo sem acordo prévio, os dois brevemente ao mesmo tempo. Também com outras mulheres, a primeira a minha irmã; e umas poucas mais. A qualidade desse riso, a sua espontaneidade (a sua simultaneidade com o meu, talvez), fizeram-me saber e aproximar-me ou então descartar de imediato, e algumas mulheres vi-as aí na sua totalidade antes de as conhecer, quase sem falar, sem ser olhado e quase sem olhar. Uma leve dilação, em contrapartida, ou a suspeita de mimetismo, de complacente res- posta ao meu estímulo ou à minha indicação, a percepção de um riso educado ou oferecido para lisonjear, o que não é de todo desinteressado e é acicatado pela vontade, o que não tanto ri como quer rir ou se presta ou anseia ou ainda condescende em rir, desse afastei-me muito depressa ou atribuí-lhe um lugar secundário, só de acompanhamento, ou até de cortejo em épocas minhas de debilidade. Ao passo que a esse outro riso, ao de Luisa, ao que se adianta quase, ao da minha irmã, ao que nos envolve, ao da jovem Pérez Nuix, ao que se confunde com o nosso próprio e nada tem de deliberação mas de esquecimento de nós dois (mas em contrapartida todo de desprendimento e gratuitidade e de nivelamento), a esse dei-lhe habitualmente um lugar principal que depois se revelou ser duradouro ou não, perigoso às vezes, e a longo prazo (quando o houve longo) difícil de tolerar sem que aparecesse ou se interpusesse uma pequena dívida simbólica ou real. Mas suportam-se ainda menos a ausência ou a diminuição desse riso, e isso por sua vez trá-lo sempre, um ou o outro, no dia em que calha endividar-se um pouco mais, um dos dois um pouco mais. (...) quando alguém no-lo retira é sinal de que não há mais nada a fazer. Esse riso desarma. Desarma com as mulheres, e de modo diferente com os homens também. Desejei mulheres tão-somente por causa do seu riso, intensamente, habitualmente elas viram-no. E às vezes soube quem era alguém só por o ouvir ou por nunca o ouvir, o riso inesperado e breve, e até o que ia acontecer ou haver entre esse alguém e eu, se amizade ou conflito ou aborrecimento ou nada, não me enganei muito, pode ter tardado mas acabou por acontecer, e aliás está-se sempre a tempo enquanto não se morra ou não morramos esse alguém nem eu.
Javier Marías (Tu rostro mañana)
esta é a Rua do Ouvidor, onde não se mata José nem chefia; mas unicamente o tempo, esse bom e mau amigo, que não tem pai, nem mãe, nem irmãos, e domina todo este mundo, desde antes de Jacó até Deus sabe quando. Para crônica, é pouco; mas para matar o tempo, sobra.
Machado de Assis (Obras Completas de Machado de Assis VI: Crônica)
Quando fechava os olhos, ressoavam em sua cabeça as palavras da mulher da capa de gelo: Ninguém conquista o mundo se não conquista o tempo. Todos esses anos, todas essas vitórias foram, de fato, em vão, enquanto o tempo corria desembestado . Era como se as palavras tivessem sido tatuadas em sua alma com a presa de narval. O tempo o aniquilará no fim.
Andri Snær Magnason (The Casket of Time (Yonder))
Não era capaz de me sentar num café: ao fim de poucos segundos, já toda a gente que lá estava me teria invadido, e tudo continuava a ser assim - o olhar das pessoas atingia-me, transtornava-me até ao mais fundo de mim, e cada movimento que eu fizesse, até mesmo o simples folhear um livro, era percebido do mesmo modo pelas outras pessoas, comunicava-lhes a minha estupidez, era como se lhes dissesse: "Olhem para o imbecil que ali está." Portanto, o melhor era continuar a andar, porque, enquanto andava, os olhares desapareciam uns atrás dos ouros, é certo que não paravam de suceder-ser, mas não tinham tempo para se implantar, limitavam-se a passar por mim: Lá vai o imbecil, lá vai o imbecil, lá vai o imbecil. Era um coro que acompanhava os meus passos. Eu eu sabia que nada daquilo fazia sentido, que era tudo uma construção minha, do meu espírito, mas de nada me servia sabê-lo, porque os outros continuavam a incidir-me do mesmo modo, atingiam-me no mais fundo de mim, revolviam-me por dentro, e até mesmo o mais inadaptado de todos esses outros, até o mais horroroso, o mais gordo e o mais desalinhado, até mesmo aquela mulher ali, com a boca aberta e um olhar vazio de idiota, todos eles podiam dizer quando me viam que havia em mim qualquer coisa que não batia certo.
Karl Ove Knausgård (Min kamp 2 (Min kamp, #2))
Surpreende-me que os pais consintam. Ao que se diz, é um casamento de amor. - De amor! - exclamou a embaixatriz. - Onde foram arranjar ideias tão antediluvianas?Quem fala de paixão nos nossos dias? - Que quer, minha senhora - disse Vronski -, essa velha moda, tão ridícula, continua a não querer ceder o lugar. - Tanto pior para os que a mantêm! Em matéria de casamentos felizes, só conheço os casamentos de conveniência. - Seja! Mas não acontece, muitas vezes, que esses casamentos caem desfeitos em pó à aparição dessa paixão que era tratada como intrusa? - Dê-me licença: por casamento de conveniência, entendo aquele que se faz quando de ambas as partes se passou já pelas loucuras da juventude. O amor é como a escarlatina, é preciso apanhá-lo. - Nesse caso, devia-se arranjar um processo de o inocular, como as bexigas. - Durante a minha juventude, estive apaixonada por um sacristão - declarou a princesa Miagki. - Gostava bem de saber se o remédio operou. - Pondo de parte brincadeiras - disse Betsy - , creio que para conhecer o amor é preciso, primeiro enganar-se, depois reparar o erro. - Mesmo depois do casamento? - perguntou, rindo, a embaixatriz. - Nunca é tarde para o arrependimento - disse o diplomata, citando um provérbio inglês. - Exactamente - aprovou Betsy. - Cometer um erro, repará-lo depois, eis o que importa. Que pensa disto, minha querida? - perguntou a Ana , que escutava a conversa sem falar, com um meio sorriso nos lábios. - Creio - respondeu Ana, brincando com a luva - que, se há tantas opiniões quantas cabeças, há também tantas maneiras de amar quantos os corações. (...) Durante toda essa Primavera, não foi ele próprio e conheceu minutos trágicos. "Não posso viver sem saber o que sou e com que fim fui posto no mundo", dizia consigo. "E uma vez que não posso alcançar esse conhecimento, torna-se-me impossivel viver." "No infinito do tempo, da matéria, do espaço, uma bolha-organismo se forma, se mantém um momento, depois rebenta...Essa bolha sou eu!" Este sofisma doloroso era o único, o supremo resultado do raciocínio humano durante séculos; era a crença final que se encontrava na base de quase todos os ramos da actividade científica; era a convicção reinante, e, sem dúvida porque lhe parecia ser a mais clara, Levine penetrara-se involuntariamente dela. Mas esta conclusão parecia-lhe mais que um sofisma; via nela a obra cruelmente irrisória de uma força inimiga a que importava subtrair-se. O meio de libertar-se estava ao alcance de cada um...E a tentação do suicídio perseguiu tão frequentemente este homem saudável, este feliz pai de família, que ele afastava das suas mãos todas as cordas e não se atrevia a sair com a espingarda. No entanto, em vez de queimar os miolos, continuou simplesmente a viver.
Leo Tolstoy (Anna Karenina)
2. Noticiabilidade – tomaremos emprestado esse termo do excelente livro O preconceito contra as armas, de John Lott.[ 15 ] O significado do termo é simples: certos fatos têm muito mais chances de chamar a atenção das pessoas do que outros; quanto mais atenção, mais audiência; quanto mais audiência, mais lucro. Como todo empreendimento privado, as empresas da mídia precisam lucrar, mas ao mesmo tempo têm de preservar sua ética jornalística, sob pena de perderem toda a credibilidade perante o público. Portanto, mesmo numa mídia hipoteticamente isenta de ideologia, notícias de menor destaque seriam preteridas em favor das de maior apelo junto ao público. Assim como não se dá a notícia de que um ônibus chegou bem ao seu destino, mas se dá a de que um ônibus sofreu um acidente gravíssimo no qual morreram quase todos os passageiros, não se dão as notícias sobre o uso defensivo das armas, mas sim as notícias sobre seu uso criminoso e letal. Colocando de uma forma bem popular, notícia ruim vende mais.
Flavio Quintela (Mentiram para Mim sobre o Desarmamento)
Alinhando-se à sua Razão, você sentirá que o melhor da vida é a simplicidade, porque esse estilo de vida nada tem a ver com pobreza, e sim com inteligência e objetividade. Você perceberá que o alimento da simplicidade é a verdade e, uma vez que estiver bebendo dessa Fonte, você se sentirá livre. Uma vez livre, você sentirá o Todo e saberá que você, ao mesmo tempo que é insignificante perante a vastidão do universo, é totalmente importante no contexto da missão que Deus tem para você. Quando você viver assim, viverá o seu melhor, pois encontrará a sua mais nobre face, já que, ao olhar-se no espelho, verá o “rosto de Deus” refletindo o seu próprio rosto.
Bruno J. Gimenes (Os símbolos de força: A volta dos iniciados (Portuguese Edition))
Surpreende-me que os pais consintam. Ao que se diz, é um casamento de amor. - De amor! - exclamou a embaixatriz. - Onde foram arranjar ideias tão antediluvianas?Quem fala de paixão nos nossos dias? - Que quer, minha senhora - disse Vronski -, essa velha moda, tão ridícula, continua a não querer ceder o lugar. - Tanto pior para os que a mantêm! Em matéria de casamentos felizes, só conheço os casamentos de conveniência. - Seja! Mas não acontece, muitas vezes, que esses casamentos caem desfeitos em pó à aparição dessa paixão que era tratada como intrusa? - Dê-me licença: por casamento de conveniência, entendo aquele que se faz quando de ambas as partes se passou já pelas loucuras da juventude. O amor é como a escarlatina, é preciso apanhá-lo. - Nesse caso, devia-se arranjar um processo de o inocular, como as bexigas. - Durante a minha juventude, estive apaixonada por um sacristão - declarou a princesa Miagki. - Gostava bem de saber se o remédio operou. - Pondo de parte brincadeiras - disse Betsy - , creio que para conhecer o amor é preciso, primeiro enganar-se, depois reparar o erro. - Mesmo depois do casamento? - perguntou, rindo, a embaixatriz. - Nunca é tarde para o arrependimento - disse o diplomata, citando um provérbio inglês. - Exactamente - aprovou Betsy. - Cometer um erro, repará-lo depois, eis o que importa. Que pensa disto, minha querida? - perguntou a Ana , que escutava a conversa sem falar, com um meio sorriso nos lábios. - Creio - respondeu Ana, brincando com a luva - que, se há tantas opiniões quantas cabeças, há também tantas maneiras de amar quantos os corações. (...) Durante toda essa Primavera, não foi ele próprio e conheceu minutos trágicos. "Não posso viver sem saber o que sou e com que fim fui posto no mundo", dizia consigo. "E uma vez que não posso alcançar esse conhecimento, torna-se-me impossivel viver." "No infinito do tempo, da matéria, do espaço, uma bolha-organismo se forma, se mantém um momento, depois rebenta...Essa bolha sou eu!" Este sofisma doloroso era o único, o supremo resultado do raciocínio humano durante séculos; era a crença final que se encontrava na base de quase todos os ramos da actividade científica; era a convicção reinante, e, sem dúvida porque lhe parecia ser a mais clara, Levine penetrara-se involuntariamente dela. Mas esta conclusão parecia-lhe mais que um sofisma; via nela a obra cruelmente irrisória de uma força inimiga a que importava subtrair-se. O meio de libertar-se estava ao alcance de cada um...E a tentação do suicídio perseguiu tão frequentemente este homem saudável, este feliz pai de família, que ele afastava das suas mãos todas as cordas e não se atrevia a sair com a espingarda. No entanto, em vez de queimar os miolos, continuou simplesmente a viver.
Liev Tolstói (Anna Karenina)
...Estou ao volante e, pelo retrovisor, observo um automóvel que vem atrás de mim. A luzinha da esquerda pisca e todo o automóvel emite ondas de impaciência. O condutor espera o ensejo de me ultrapassar; espreita esse momento como uma ave de rapina espreita um pardal. Véra, a minha mulher, diz-me: “Todos os cinquenta minutos morre um homem nas estradas de França. Olha para eles, para estes doidos todos que correm à nossa volta. São os mesmos que sabem mostrar-se de uma prudência extraordinária quando vêem assaltar uma velha na rua, mesmo diante dos olhos. Como é que podem não ter medo quando estão ao volante?” Que responder? Talvez o seguinte: o homem inclinado para a frente na sua motorizada só pode concentrar-se no segundo presente do seu voo; agarra-se a um fragmento do tempo cortado tanto do passado como do futuro; agarra-se à continuidade do tempo; está fora do tempo; por outras palavras, está no estado de êxtase; nesse estado, nada sabe da sua idade, nada da mulher, nada dos filhos, nada das preocupações e, portanto, não tem medo, porque a fonte do medo está no futuro, e quem se liberta do futuro nada tem a temer. A velocidade é a forma do êxtase com que a revolução técnica presenteou o homem. Ao contrário do motociclista, quem corre a pé continua presente no seu corpo, obrigado ininterruptamente a pensar nas suas bolhas, no seu ofegar; quando corre sente o seu peso, a sua idade, mais consciente do que nunca de si próprio e da sua vida. Tudo muda quando um homem delega a faculdade da velocidade numa máquina: a partir de então, o seu próprio corpo sai do jogo e ele entrega-se a uma velocidade que é incorpórea, imaterial, velocidade pura, velocidade em si mesma, velocidade êxtase. Curiosa aliança: a fria impessoalidade da técnica e as chamas do êxtase. Estou a lembrar-me dessa americana que, há trinta anos, expressão severa e entusiástica, qual apparatchik do erotismo, me deu uma aula (glacialmente teórica) sobre a libertação sexual; a palavra que se repetia mais vezes no seu discurso era a palavra orgasmo; contei: quarenta e três vezes. O culto do orgasmo; o utilitarismo puritano projectado na vida sexual; a eficácia contra a ociosidade; a redução do coito a um obstáculo que se deve ultrapassar o mais depressa possível para se chegar a uma explosão extática, único verdadeiro alvo do amor e do universo. Porque terá desaparecido o prazer da lentidão? Ah, onde estão os deambuladores de outrora? Onde estão esses heróis indolentes das canções populares, esses vagabundos que preguiçam de moinho em moinho e dormem ao relento? Terão desaparecido com os caminhos campestres, com os prados e as clareiras, com a natureza? Há um provérbio checo que descreve a sua ociosidade por meio de uma metáfora: contemplam as janelas de Deus. Quem contempla as janelas de Deus não se aborrece; é feliz. No nosso mundo, a ociosidade transformou-se em desocupação, o que é uma coisa muitíssimo diferente: o desocupado sente-se frustrado, aborrece-se, procura constantemente o movimento que lhe faz falta. Olho para o retrovisor: sempre o mesmo automóvel que não consegue ultrapassar-me por causa da circulação em sentido contrário. Ao lado do condutor, está sentada uma mulher; porque é que o homem não lhe conta alguma coisa engraçada? Porque não lhe põe a palma da mão no joelho? Em vez disso, amaldiçoa o automobilista que, à sua frente, não vai suficientemente depressa, e também a mulher não pensa em tocar com a mão o condutor, conduz mentalmente ao mesmo tempo que ele e como ele amaldiçoa-me. E eu penso nessa outra viagem de Paris para um solar no campo, que teve lugar há mais de duzentos anos, na viagem da Senhora de T. e do jovem cavaleiro que a acompanhava. É a primeira vez que estão tão perto um do outro, e a indizível atmosfera sensual que os envolve nasce justamente da lentidão do ritmo: balouçados pelo movimento da carruagem, os dois corpos tocam-se, primeiro sem o saberem, depois sabendo-o, e a história principia.
Milan Kundera (Slowness)
A cidade bondosa limpa a parte suja que o inferno deixou. Certos corações foram atravessados por um metal claro, amaldiçoados com aquilo que na guerra não é inútil: a matéria densa e incompatível com a vida. O morto confunde-se com uma parte do Outono, três homens roucos ou de voz baixa levantam a massa morta com os dedos fundamentais da higiene; entre as folhas leves castanhas o corpo também castanho, mas pesado. A cidade é eficaz. No céu há um outro mundo impávido. No entanto fragmentos de alegria mantêm-se e crescem. Uma mulher vende flores, o cão fareja com o focinho erguido como se as aves transportassem cheiros fortes, ou as nuvens. Mas o céu não é farejável a não ser depois da chuva espessa, o céu cheira após três horas de água, e não há nos diferentes dias cheiro mais humano. A cidade respira. Fala-se em vindimas longínquas, os frutos prosseguem vindos de todas as direções: crescendo das árvores, invadindo as propriedades dos homens. A natureza ignora pressupostos mecânicos, euforias de hélices de helicópteros ávidas por demonstrar habilidades mortais. E os homens, como um todos, são inacessíveis. É uma espécie que se prolonga por todos os buracos do mundo (...) Tudo mente. É domingo, e a cidade tem mercearias abertas ao domingo. Ainda há pêras espantosas, e a presença física de um grupo de maçãs num caixote surpreende quem já viu a violência de militares exercida sobre quem treme e é fraco.[...]Grande parte da cidade foi conquistada por esse exército neutro que não é exército: a indiferença. Se queres sobreviver colocas a tua coragem num saco de plástico e aguardas. Os restaurantes funcionam. Joseph Walser sai por vezes aos domingos com a mulher e almoça. Eis tudo.[...] Um homem que comeu uma tangerina e bebe vinho elabora uma narrativa complexa para justificar certos acontecimentos mais recentes. Vários cidadãos atentos escutam o percurso bem protegido da narrativa e convencem-se de que a vida prossegue inalterável, enquanto estar vivo, hoje, tiver uma única semelhança com o facto de se ter estado vivo, ontem. As qualidades essenciais da vida permanecem. E que qualidades são essas? Eis algumas: existe a água e o ar livre, podes mexer os dedos dos pés mesmo estando imóvel. A vida tem certas qualidades esquizofrénicas, vê esta. Repara: a cidade mantém-se curiosa, muitos cidadãos querem aumentar os seus conhecimentos laterais enquanto outros são fuzilados em praças evidentes e nada escondidas. Um vizinho de Joseph Walser inscreveu-se ontem numa escola de línguas. Homens adultos aprendem docemente sentados em cadeiras correctas as primeiras sílabas de uma língua desconhecida. E até pode não ser a língua de quem vence; por vezes aprendizagens escolares são obscenamente inúteis: uma mulher que vive numa rua da cidade começou a aprender uma língua distante, de um país com poucos habitantes e com reduzida força. Se questionarem essa mulher, ela dirá : curiosidade. Mulheres e homens mantêm a curiosidade intacta, o que é quase magnífico, uma preciosidade em tempo de guerra, como uma jarra que não se parte a curiosidade não se quebrou; não a direccionada para acontecimentos fundamentais e urgentes, mas a direccionada para os cantos obscuros; mais do que uma mulher se inscreveu ontem num curso sobre o significado do movimento dos astros. Aviões guerreiros tornam-se assim, para certas vidas, obstáculos no campo de visão, partículas de poeira ruidosa que não deixam ver o que sucede no dia-a-dia dos astros. Quando se tem vergonha daquilo que não se faz as notícias sobre factos próximos são escutadas por ouvidos afastados; toda a capacidade auditiva é ocupada por técnicas cínicas, fingindo interesse. Não há fórmulas para a indiferença, pois há diversas maneiras de sobreviver e a neutralidade é uma delas. (...) Enquanto a sombra repetir no chão o teu corpo inteiro eis que te encontras vivo e completo.
Gonçalo M. Tavares (A Máquina de Joseph Walser)
os livros, através das histórias e da ficção, podem ser uma forma de recuperarmos algum espaço. Quando eu tinha 11 anos, sem amigos e com dificuldades de integração na escola, li Os Marginais, Tempos de Juventude e Tex, todos de S. E. Hinton, e subitamente voltei a ter amigos. Os livros que a autora escrevera eram meus amigos. As personagens que ela criara eram minhas amigas. E eram amigos a sério, pois ajudaram-me, tal como, noutras alturas, fui ajudado pelos meus amigos Ursinho Pooh, Scout Finch, Pip ou pela Cécile, de Bonjour Tristesse. As histórias em que eles habitavam eram lugares onde eu me podia esconder e sentir--me em segurança. Os mundos da ficção são essenciais neste planeta que pode tornar-se excessivo, neste planeta em que estamos a ficar sem espaço mental. Esses mundos podem funcionar como um escape à realidade, sim, mas não como escapatória à verdade. É precisamente o contrário. Eu costumava ter dificuldades em integrar-me no mundo “real”. Os códigos que tínhamos de seguir. As mentiras que tínhamos de dizer. Os risos que tínhamos de fingir. Mas eu não sentia que a ficção fosse uma fuga a essas verdades; era uma espécie de porta de entrada nessa realidade. Mesmo que a verdade do livro estivesse repleta de monstros ou ursos falantes, o certo é que havia ali sempre algum tipo de verdade. Uma verdade capaz de manter a nossa sanidade ou, pelo menos, de nos manter na nossa pele. No meu caso, ler nunca foi uma atividade antissocial. Bem pelo contrário, era profundamente social. Ficar intimamente ligado à imaginação de outro ser humano era o tipo de socialização mais profunda que podia existir. Ler era uma forma de me ligar a algo, sem necessidade de passar pelos inúmeros filtros que, geralmente, a sociedade impõe. Muitas vezes, dá-se importância à leitura devido ao valor social. A leitura está associada à educação, à economia, e por aí fora. Mas isso é passar ao lado do verdadeiro sentido da leitura. Ler não é importante por nos ajudar a arranjar um emprego. É importante por nos dar um espaço em que podemos existir para lá da nossa vida real. É a forma de os seres humanos se juntarem. De as mentes se ligarem umas às outras. É a forma dos sonhos, da empatia, da compreensão, do escape. A leitura é amor em ação.
Matt Haig (Notes on a Nervous Planet)
A razão exige convincentemente um ser que possui asseidade; sem ele, nada poderia existir neste mundo. Jamais poderia ter havido um tempo em que nada existia, porque, se esse tempo tivesse existido, nada existiria agora.
R.C. Sproul (Somos todos teólogos: Uma introdução à Teologia sistemática)
Sempre foi considerada uma infelicidade para um país ser governado por um ponto de vista particular ou no interesse de qualquer classe particular, quer fosse a corte, a Igreja, o Exército ou as classes mercantil ou trabalhadora”, disse ele. “Todos os países devem ser governados de um ponto de vista central em que todas as classes e todos os interesses estejam proporcionalmente representados, e atrevo-me a pensar que até nesses tempos modernos esse princípio se aplica ao nosso governo.
Martin Gilbert (Churchill: uma vida – vol. 1)
Verifiquei que o constante desdém de meus agnósticos mestres em relação ao Cristianismo era por ser ele a luz de um povo, enquanto deixava todos os outros morrerem nas trevas. No entanto, pude também observar que era para eles motivo especial de orgulho o fato de serem a ciência e o progresso a descoberta de um povo, enquanto todos os outros povos jaziam na escuridão. O seu principal insulto contra o Cristianismo era, efetivamente para eles, seu motivo de glória. Podíamos acreditar na ética de Epiteto porque a ética nunca tinha mudado, mas não devíamos acreditar na ética [cristã] de Bossuet porque a ética tinha mudado. Tudo isso começava a parecer alarmante. Não que o Cristianismo fosse suficientemente mau para agregar em si todos os defeitos, mas qualquer vara era suficientemente boa para açoitar a religião cristã. Alguns céticos escreveram que o grande crime do Cristianismo fora o seu ataque contra a família. O Cristianismo arrastava as mulheres para a solidão e para a vida contemplativa de um mosteiro, longe de seus lares e de seus filhos. Mas, logo, outros céticos vinham dizer que o grande crime do Cristianismo era forçar-nos ao casamento e à constituição da família, condenando as mulheres ao duro trabalho do lar e dos filhos, proibindo-lhes a solidão e a vida meditativa. As acusações eram, na verdade, contraditórias. Dizia-se, ainda, que algumas palavras das Epístolas ou do Rito do Matrimônio revelavam desprezo pelo intelecto das mulheres. No entanto, concluí que os próprios anticristãos sentiam desprezo pelo intelecto das mulheres, porque seu grande desdém pela Igreja no continente era devido ao fato de afirmarem que 'só as mulheres' a frequentavam. Outras vezes, o Cristianismo era censurado por seus trajes indigentes e pobres, por seu burel e suas ervilhas secas. Entretanto, no momento seguinte, o Cristianismo era censurado por sua pompa e ritualismo, seus relicários de pórfiro e suas vestes de ouro. Acusavam-no por ser demasiadamente humilde e por ser demasiadamente pomposo. O Cristianismo era acusado, ainda, de ter sempre reprimido em extremo a sexualidade, quando o malthusiano Bradlaugh descobrira que a religião cristã a reprimia muito pouco. De um só fôlego, lançavam-lhe ao rosto uma recatada respeitabilidade e uma religiosa extravagância. [...] Eu desejava ser absolutamente imparcial, como ainda o desejo ser agora, e não concluí que o ataque ao Cristianismo fosse de todo injusto. Concluí apenas que, se o Cristianismo estava errado, estava, sem dúvida, muito errado. Tão hostis terrores poderiam ser combinados em uma só coisa, mas tal coisa devia ser bem estranha e única. Há homens que são avarentos e, ao mesmo tempo, perdulários; porém, são raros. Há também homens lascivos e, ao mesmo tempo, ascetas, mas estes também são raros. Mas, se esta amálgama de loucas contradições realmente existisse, pacifista e sanguinário, suntuoso e maltrapilho, austero e lascivo, inimigo das mulheres e seu tolo refúgio, pessimista declarado e otimista ingênuo, se este mal existisse, então haveria nele algo de supremo e único. De fato, não encontrei nos meus mestres racionalistas explicação alguma para tão excepcional corrupção. O Cristianismo (teoricamente falando) era, a seus olhos, apenas um dos mitos ordinários e um dos erros dos mortais. Eles não me davam a chave para esta retorcida e desnatural maldade. Esse mal assumia as proporções do sobrenatural. Era, sem dúvida, tão sobrenatural quanto a infalibilidade do papa. Uma instituição histórica que nunca se mostrou acertada é um milagre tão grande quanto uma instituição que nunca pode errar. A única explicação que me ocorreu foi a de que o Cristianismo não viera do Céu, mas do Inferno. Na verdade, se Jesus de Nazaré não fosse Cristo, devia ter sido o anticristo.
G.K. Chesterton (Orthodoxy)
Mais tarde, numa hora de calma, um novo e estranho pensamento fulminou-me o espírito como um raio e, subitamente, veio-me à mente outra explicação. Suponhamos que várias pessoas estejam falando de um homem desconhecido. Suponhamos ainda que fiquemos surpresos ao ouvir algumas dessas pessoas dizerem que tal homem é demasiadamente alto, enquanto outros afirmam ser ele muito baixo; uns censuram sua excessiva gordura, e outros criticam-nos pela sua magreza; uns julgam-no sombrio e circunspecto, ao passo que outros julgam-no extrovertido. Uma explicação possível, já cogitada: talvez esse homem tivesse uma compleição deveras estranha; há, porém, outra maneira de explicar o caso. Talvez ele não tivesse nada de estranho. Os homens excessivamente altos consideravam-no baixo; os homens muito baixos consideravam-no alto. Os velhos mercadores, que frequentemente engordam, achá-lo-iam magro, ao passo que os esbeltos achá-lo-iam tão gordo a ponto de ultrapassar os estreitos limites da elegância. Talvez os suecos o chamassem de moreno, enquanto os negros o julgariam loiro. Talvez, resumindo, o que era considerado extraordinário não passasse de uma coisa comum; pelo menos normal, o centro. Talvez, depois de tudo, o Cristianismo é que fosse o são, e os seus críticos, os loucos – de diversas maneiras. Tentei, então, investigar a exatidão dessa ideia, perguntando a mim mesmo se haveria, à volta de qualquer dos acusadores, algo de mórbido que pudesse justificar essa acusação. Fiquei espantado ao constatar que a chave ajustava-se perfeitamente à fechadura. Por exemplo, era de fato estranho que o mundo moderno acusasse o Cristianismo por ter austeridade com o corpo e, ao mesmo tempo, por ter refinamento artístico. Também era estranho, muito estranho mesmo, que o próprio mundo moderno procurasse conciliar a excessiva luxúria carnal com a excessiva ausência de refinamento artístico. O homem moderno considerava demasiadamente ricas as vestes de [São Tomás] Becket e demasiadamente pobres as suas refeições. Mas, neste caso, o homem moderno seria, realmente, uma exceção na História: nenhum homem tinha, anteriormente, degustado tão lautos jantares, vestindo roupas tão feias. O homem moderno considerava a Igreja demasiadamente simples, exatamente porque a vida moderna é demasiadamente complexa; ele julga a Igreja demasiadamente faustosa, porque a vida moderna é tão destituída de brilho. [...] Analisei todos os casos e verifiquei que a chave continuava a ajustar-se perfeitamente. O fato de Swinburne irritar-se com a infelicidade e, ainda mais, com a felicidade dos cristãos era facilmente explicável. [...] As restrições dos cristãos entristeciam-no só porque ele era mais hedonista do que deve ser um homem saudável. A fé dos cristãos enfurecia-o, porque ele era mais pessimista do que um homem saudável deve ser. Da mesma forma, os malthusianos atacavam, instintivamente, o Cristianismo, não porque haja qualquer coisa especialmente antimalthusiana no Cristianismo, mas porque há alguma coisa um pouco anti-humana no Malthusianismo.
G.K. Chesterton (Orthodoxy)
Quando li e reli todos os relatos não cristãos e anticristãos a respeito da Fé [...], logo uma lenta e horrível impressão gravou-se, gradual mas graficamente, sobre o meu espírito - a impressão de que o Cristianismo devia ser algo extraordinário. De fato, o Cristianismo parecia ter os mais violentos vícios, mas tinha também, aparentemente, o místico talento de conciliar defeitos incompatíveis entre si. Atacavam-no por todos os lados e pelas mais contraditórias razões. Assim que um racionalista acabava de demonstrar estar o Cristianismo demasiadamente longe para o leste, outro vinha demonstrar, com igual clareza, que ele estava muito mais longe para o oeste. [...] Provaram-me, no Capítulo I, que o Cristianismo era demasiadamente pessimista; mas, depois, no Capítulo II, provaram-me que ele era, em grande parte, otimista demais. Uma das acusações contra o Cristianismo era a de que ele impedia os homens, por meio de lágrimas e terrores mórbidos, de procurarem alegria e a liberdade no seio da Natureza. Outra acusação, porém, era que ele confortava os homens com uma fictícia providência e os colocava numa creche rosa e branca. [...] Quando um racionalista classificava o Cristianismo como um pesadelo, já outro começava a chamá-lo de paraíso dos tolos. Isso me intrigava, porque tais acusações pareciam-me incompatíveis. O Cristianismo não podia ser, ao mesmo tempo, uma máscara preta sobre um mundo branco e uma máscara branca sobre um mundo preto. [...] Se o Cristianismo deturpava a visão humana, devia deturpá-la de uma forma ou de outra: o cristão não poderia usar, ao mesmo tempo, óculos verdes e óculos cor-de-rosa. [...] O mesmo homem que acusava o Cristianismo de pessimismo era, ele próprio, um pessimista. Achei que devia haver algo errado. E, num momento de exaltação, veio-me à mente a ideia de que aqueles talvez não fossem os melhores juízes da relação entre a religião e a felicidade, pois não possuíam nem uma coisa nem outra. Deve-se compreender que não concluí, apressadamente, que as acusações eram falsas ou que os acusadores não passavam de loucos. Apenas deduzi que o Cristianismo deveria ser algo mais estranho e perverso do que se pretendia afirmar. Uma coisa podia ser ter esses dois defeitos opostos, mas era necessário que fosse bastante estranha para poder concentrar tais características. Um homem poderia ser muito gordo em uma parte do corpo e muito magro em outro, mas seria preciso que tivesse uma compleição deveras singular. Nesse ponto, todos os meus pensamentos centravam-se, apenas, na bizarra forma da religião cristã, sem atribuir qualquer forma bizarra ao pensamento racionalista. [...] O paradoxo do Evangelho acerca da outra face, o fato de os padres nunca lutarem em guerras, uma centena de coisas, enfim, tornava plausível a acusação de que o Cristianismo era uma tentativa de transformar o homem em um cordeiro. Li isso e acreditei, e, se não tivesse lido nada diferente, continuaria a acreditar. No entanto, li algo muito diferente depois. Virei a página seguinte do meu manual agnóstico, e, logo, meu cérebro ficou de pernas para o ar. Descobri, então, que tinha de odiar o Cristianismo não por combater pouco, mas por combater demais. A religião cristã parecia a mãe das guerras. O Cristianismo tinha inundado o mundo em sangue. Eu, que havia ficado zangado com o Cristianismo por ele nunca se zangar, tinha agora de zangar-me com ele porque sua fúria havia sido a coisa mais horrível e monstruosa da História da Humanidade. [...] As mesmas pessoas que criticavam o Cristianismo por sua mansidão e pela não-resistência dos mosteiros eram as que vinham agora acusá-lo pela violência e pela bravura das Cruzadas. O que tudo isso queria dizer? Que cristianismo era este que sempre proibia as guerras e sempre estava a provocá-las? Qual poderia ser a natureza de uma coisa que era insultada, primeiramente, por não combater e, depois, por estar sempre envolvida em lutas?[...]A forma do Cristianismo tornava-se mais estranha a cada instante.
G.K. Chesterton
O dr. Victor Frankenstein finalmente procurou um advogado. Que o recebeu com surpresa, e depois se desculpou: -É que eu vi o nome "Frankenstein" na minha agenda e pensei... -Que era eu o monstro, não é? Todo mundo se engana. Frankenstein sou eu, não o monstro que eu criei. Ele não tem nome, mas se apresenta como Frankenstein, e está fazendo uma carreira artística de sucesso, ganhando muito dinheiro. É sobre isso que vim consultá-lo. - O senhor quer que... - Que ele pare de usar o nome Frankenstein. E me pague por ter usado o nome sem a minha permissão, todos esses anos. Quero meus direitos de criador! Fui eu que juntei e costurei as partes do seu corpo, fui eu que dei vida ao monstro. Tudo sem receber um tostão! Ou, ao menos, um muito obrigado".
Luis Fernando Verissimo (Ironias do Tempo (Em Portugues do Brasil))
Esse foi o grande acontecimento da ética cristã: a descoberta de um novo equilíbrio. No Cristianismo, equilibram-se coisas que parecem acidentais. S. Tomás Becket usava uma camisa de penitente por baixo de suas vestes de ouro e púrpura, e muito há a dizer a favor desta combinação, porque ele tirou proveito dessa camisa de penitente, ao passo que o povo da rua tirou proveito do ouro e da púrpura. E isto é, sem dúvida, melhor do que a atitude do moderno milionário que, para os outros, se mostra negro e sujo exteriormente, mas traz o ouro junto ao coração. O equilíbrio nunca esteve no corpo de um homem como no de S. Tomás Becket; o equilíbrio esteve, muitas vezes, distribuído por todo o corpo do Cristianismo. Porque um homem orava e jejuava nas regiões nevadas do Norte, podiam espargir-se flores no dia da sua festa nas cidades do Sul; e porque os fanáticos bebiam água nas areias da Síria, podiam ainda os homens beber cidra nos pomares da Inglaterra. É isso o que torna o Cristianismo ao mesmo tempo muito mais surpreendente e muito mais interessante do que o império pagão, exatamente como a catedral de Amiens não é melhor, mas mais interessante que o Pártenon. Se alguém desejar uma prova moderna de tudo isso, considere o fato curioso de que, sob o Cristianismo, a Europa (conservando-se uma unidade) dividiu-se em nações individuais.
G.K. Chesterton (Orthodoxy)
Sem conseguir resolver para onde olhar durante todo esse tempo, Dafé se admirou de haver tanta ciência naquela gente comum, se admirou também de nunca ter visto nos livros que pessoas como essas pudessem possuir conhecimentos e habilidades tão bonitos, achou até mesmo a mãe uma desconhecida, misteriosa e distante, em seu saber antes nunca testemunhado. Quantos estudos não haveria ali, como ficavam todos bonitos fazendo ali suas tarefas, agora também ela ia ser pescadora!
João Ubaldo Ribeiro (Viva o Povo Brasileiro)
Certas pessoas são dedicadas quando as coisas vão bem, mas desmoronam diante de uma situação adversa.” Os exemplos muito bem-sucedidos descritos nessas entrevistas realmente iam até o fim: “No começo, esse sujeito não era um ótimo escritor. Quer dizer, a gente lia os contos dele e até achava graça, porque seu texto era... assim, meio desajeitado e melodramático. Mas ele foi melhorando e, no ano passado, ganhou uma bolsa Guggenheim.” E essas pessoas procuravam melhorar o tempo todo: “Ela nunca está satisfeita. Seria de imaginar que a essa altura já estivesse, mas ela é sua crítica mais contundente.” As pessoas de mais sucesso eram modelos de perseverança.
Angela Duckworth (Garra: O poder da paixão e da perseverança)
Em muitos aspectos, a agenda de Graham era típica de um gerente corporativo. Todos os seus dias eram recheados de reuniões. Mas havia algo de inusitado: entre seis e onze da manhã, todo dia, Graham agendava tempo consigo mesmo. "Esse é o meu tempo.
Jake Knapp (Make Time: How to Focus on What Matters Every Day)
Além dessas, escutávamos todo tipo de programas: informativos, de perguntas e respostas, humorísticos, e, é claro, de música. Nicola Paone me dominava. Mas não havia distinções: toda música era a minha favorita, pelo menos enquanto a estava ouvindo. Até dos tangos, que em geral entediam as crianças, eu gostava. A música me parecia maravilhosa pelo vigor com que tomava posse de seu presente, e dele expulsava tudo o mais. Qualquer melodia que escutasse me parecia a mais bonita do mundo, a melhor, a única. Era o instante elevado à sua máxima potência. Era uma fascinação do presente, um hipnotismo (outro!). Eu me obstinava em colocá-lo à prova sempre; queria pensar em outras músicas, outros ritmos, comparar, recordar, e não podia, estava inundada por esse presente transformado em música,
César Aira (Cómo me hice monja / La costurera y el viento)
28 de março Embarque na sua viagem interior Segundo a tradição Budista, “a viagem [a vida] é um veículo de transformação ao longo de uma expedição na busca de compreender a vida e a natureza de nosso ser”. A vida é como um caminho de acesso e exploração de um Universo misterioso presente, ao mesmo tempo, dentro e fora de todos nós. É uma viagem não apenas externa, mas também — e principalmente — interna. Muitas vezes secreta. Você pode fazer esse caminho da sua cabeça ao seu coração, desde que decida se conhecer, sair da sua zona de conforto e olhar para dentro de si mesmo. Boa viagem!
Tadashi Kadomoto (Meu livro da consciência: 365 mensagens para nossas boas escolhas de cada dia (Portuguese Edition))