“
A poesia está guadarda nas palavras - é tudo que
eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a reladidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossa).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.
”
”
Manoel de Barros (Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo)
“
então me vens e me chegas e me invades e me tomas e me pedes e me perdes e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos e abres a boca para libertar novas histórias e outra vez me completo assim, sem urgências, e me concentro inteiro nas coisas que me contas, e assim calado, e assim submisso, te mastigo dentro de mim enquanto me apunhalas com lenta delicadeza deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida, que nada devo esperar além dessa máscara colorida, que me queres assim porque é assim que és...
À beira do mar aberto
”
”
Caio Fernando Abreu (Os Dragões não Conhecem o Paraíso)
“
A vida é cruel por ter inventado a memória. Como os velhos que recobram em matizes suas lembranças mais antigas, à beira da morte minha memória gravita em torno do sol, e como ele clareia tudo! Tudo é presente, nada está perdido. É como uma força oculta que nos impele para nos estimular de novo: diante da evidência de que não mais haverá futuro, o passado se amplifica, suas raízes engrossam, tudo em mim é rizosfera, as cores se cristalizam sobre cada estrato, a mais insignificante imagem toca o seu absoluto, o coração bate em crescendo.
”
”
Frida Kahlo
“
Morrerão milhares, Morrerão centenas de milhares, Morrerão centenas de milhares de homens e mulheres, a terra encher-se-á de gritos de dor, de uivos e roncos de agonia, o fumo dos queimados cobrirá o sol, a gordura deles rechinará sobre as brasas, o cheiro agoniará, e tudo isto será por minha culpa, Não por tua culpa, por tua causa, Pai, afasta de mim este cálice, Que tu o bebas é a condição do meu poder e da tua glória, Não quero esta glória, Mas eu quero esse poder.
”
”
José Saramago (O Evangelho Segundo Jesus Cristo)
“
Tanto tenho vivido sem ter vivido! Tanto tenho pensado sem ter pensado! Pesam sobre mim mundos de violências paradas, de aventuras tidas sem movimento. Estou farto do que nunca tive nem terei, tediento de deuses por existir. Trago comigo as feridas de todas as batalhas que evitei… Em mim o que há de primordial é o hábito e o jeito de sonhar.
”
”
Fernando Pessoa (Livro do Desassossego, Vol. I)
“
Nem imagina como fico triste de cada vez que oiço um baloiço a ranger. Quando vejo as crianças a subirem pelos ares, caio de joelhos sobre o meu passado. Para mim, um baloiço era um sinónimo de felicidade. Um motor, uma máquina de fazer sorrir. Mas, de repente, como todas as máquinas, deixou de trabalhar. O baloiço enferrujou e acabou por desaparecer do meu mundo, como acontece à felicidade.
”
”
Afonso Cruz (O Pintor Debaixo do Lava-Loiças)
“
Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
”
”
Mário de Sá-Carneiro
“
Povoamento
No teu amor por mim há uma rua que começa
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera
”
”
Ruy Belo
“
O avião tremeu enquanto descia e apertei os braços da cadeira.
Não estava assustada com a aterragem. Pelo menos, não desse tipo de aterragem. Tinha medo de aterrar com os meus dois pés no chão e sentir o peso dos meus pesadelos caírem sobre mim. Era agora ou nunca. Teria de os enfrentar.
”
”
Patricia Morais (Sombras)
“
Todos os que afirmam saber as coisas sobre as quais medito, seja por tê-las ouvido de mim, seja por tê-las ouvido de outros, seja por tê-las descoberto sozinhos, não é possível, segundo meu parecer, que tenham entendido algo desse objeto. Sobre essas coisas não existe um texto escrito meu nem existirá jamais.
”
”
Plato
“
Digo-te, ó sagrado Baal do céu, que não existes. Mas, se existisses, eu te amaldiçoaria de tal modo que esse teu céu palpitaria com o fogo do inferno. Em verdade te digo: ofereci-te meus serviços e tu os recusaste; repeliste-me, e hoje eu te viro as costas para sempre, pois nunca soubeste conhecer a hora da Visitação. Em verdade te digo: sei que vou morrer, e, não obstante, com a morte diante dos olhos, eu te desprezo, ó celeste Ápis. Empregaste contra mim a força, e não sabes que jamais me dobrei perante a adversidade. Pois deverias sabê-lo. Por acaso dormias quando plasmaste meu coração? Em verdade te digo: durante toda a vida, cada gota de sangue em minhas veias sentirá alegria em desprezar-te e escarnecer de tua Graça. A partir deste momento, renuncio a ti, a tuas pompas e tuas obras; lançarei o anátema sobre meu pensamento, se jamais ele te pensar; arrancarei os lábios se jamais eles pronunciarem teu nome. Se existires, digo-te a última palavra da vida e da morte: digo-te adeus. Depois, calo-me, viro-te as costas e sigo meu caminho.
”
”
Knut Hamsun (Hunger)
“
Charlotte,
Se tiveres mais alguma pergunta sobre Bridgehampton, não hesites em escrevê-la no ar para mim.
Reed
”
”
Penelope Ward (Hate Notes)
“
Até mesmo hoje, vários anos depois, partes de mim ainda se desmancham sobre o reverberar daquela dor.
”
”
Filipe Russo (Caro Jovem Adulto)
“
E o que significa a palavra qualidade? Para mim significa textura. Este livro tem poros. Tem feições. Este livro poderia passar pelo microscópio. Você encontraria vida sob a lâmina, emanando em profusão infinita. Quanto mais poros, quanto mais detalhes de vida fielmente gravados por centímetro quadrado você conseguir captar numa folha de papel, mais "literário" você será. Pelo menos essa é minha definição. Detalhes reveladores. Detalhes frescos. Os bons escritores quase sempre tocam a vida. Os medíocres apenas passam rapidamente a mão sobre ela. Os ruins a estupram e a deixam para as moscas. Entende agora por que os livros são odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida. Os que vivem no conforto querem apenas rostos com cara de lua de cera, sem poros nem pêlos, inexpressivos.
”
”
Ray Bradbury (Fahrenheit 451)
“
Meu Deus, não sou muito forte, não tenho muito além de uma certa fé - não sei se em mim, se numa coisa que chamaria de justiça-cósmica ou a-coerência-final-de-todas-as-coisas. Preciso agora da tua mão sobre a minha cabeça. Que eu não perca a capacidade de amar, de ver, de sentir. Que eu continue alerta. Que,
se necessário, eu possa ter novamente o impulso do vôo no momento exacto. Que eu não me perca, que eu não me fira, que não me firam, que eu não fira ninguém. Livra-me dos poços e dos becos de mim, Senhor. Que meus olhos saibam continuar se alargando sempre. Sinto uma dor enorme de não ser dois e não poder assim um ter partido, outro ter ficado com todas aquelas pessoas.
Volta a pergunta maldita: terei realmente escolhido certo? E o que é o "certo"? Digo que todo caminho é caminho, porque nenhum caminho é caminho. Que aqui ou lá - London, London, Estocolmo, Índia - eu continuaria sempre perguntando. Minhas mãos transpiram, transpiram. O nariz seco por dentro. Não quero escrever mais nada hoje.
”
”
Caio Fernando Abreu (Ovelhas Negras)
“
Seja como for, as pessoas dedicadas à religião não querem reconhecer a realidade que contradiz o seu conto de fadas. Se realmente vivermos num universo sem Deus, elas perdem o emprego. O fluxo de dinheiro estagna.
Por outro lado, há pessoas que escolhem viver a sua vida de uma forma completamente egocêntrica e homicida. Essas sentem que, se nada importa e elas podem fazer o que querem sem sofrer consequeências, vão fazê-lo. Mas também podemos ver as coisas de outra maneira: estamos nós e os outros todos, vivos e num barco salva-vidas, e temos de fazer as coisas da maneira mais decente possível para nós e para eles. A mim parece-me que esta seria uma forma de viver muito mais morale "cristã": reconhecermos a terrível verdade da existência humana e, perante isso, ainda escolhermos ser humanos decentes em vez de nos iludirmos sobre a existência de uma qualquer recompensa paradisíaca ou um qualquer castigo infernal. Parecia-me uma atitude muito mais nobre. Se há recompensa, castigo ou qualquer tipo de pagamento e agimos bem, então não estamos a fazer por razões muito nobres - os chamados princípios cristãos. É como os bombistas suicidas que agem alegadamente de acordo com princípios religiosos ou nacionais bastante nobres quando, na verdade, as suas famílias recebem uma recompensa em dinheiro e congratulam-se com um legado heróico - já para não falar da promessa de virgens para os perpetradores, embora me passe completamente ao lado como é que alguém prefere um grupo de virgens a uma mulher altamente experiente.
”
”
Woody Allen (Conversations with Woody Allen: His Films, the Movies, and Moviemaking)
“
Tu sabias perfeitamente, Egito, que em teu leme com fio atado o coração eu tinha, e que me levarias arrastado. Tinhas consciência da supremacia que sobre mim exerces e que a um simples aceno teu eu infringira as ordens dos próprios deuses.
”
”
William Shakespeare
“
Você não sabe nada sobre mim. Você me vê. Mas não me enxerga. Todos me veem. Mas ninguém tem a menor ideia da tempestade que se forma dentro de mim. É meu pequeno inferno secreto e privado. Vivo com ele, durmo com ele. Adoro que ninguém saiba.
”
”
André Aciman (Enigma Variations)
“
…ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.
”
”
Charles Baudelaire
“
Estou espantado, desiludido, satisfeito comigo. Estou triste, abatido, entusiasmado. Sou também tudo isso e não sou capaz de fazer a soma. Não estou em condições de determinar um valor ou não-valor definitivo, não tenho um juízo sobre mim e sobre a minha vida. Não tenho a certeza absoluta de nada.
”
”
C.G. Jung (Memories, Dreams, Reflections)
“
Naquele momento, uma parte de mim desejava de fato discutir com ele sobre o mal que, enquanto você acha que está sendo boa, aos poucos ou de repente, se espalha pela cabeça, pelo estômago, por todo o corpo. De onde isso nasce, papai - eu queria perguntar -, como podemos controlar, e por que esse mal não elimina o bem, mas convive com ele.
”
”
Elena Ferrante (The Lying Life of Adults)
“
Enquanto escreve, é como se me estivesse a desenhar, ou não a desenhar-me, a desenhar sobre mim, sobre a minha pele, não com o lápis que usa, mas com uma pena de pato antiquada, e não com a extremidade do cálamo mas com a da penugem.
Como se centenas de borboletas me tivessem poisado na cara e estivessem a abrir e fechar suavemente as asas.
”
”
Margaret Atwood (Alias Grace)
“
Adquiri a capacidade de administrar o sono, ficar adormecido e despertar no momento designado. Se eu faço algo que não entendo, me obrigo a pensar em meu sonho para encontrar assim uma solução. A quinta condição de ajuste é a memória. Talvez, na maioria das pessoas, o cérebro é o guardião dos conhecimentos sobre o mundo e o conhecimento adquirido através da vida. Meu cérebro está ocupado em coisas mais importantes que recordar, está recolhendo o que se requer em um momento dado, isto é, tudo o que nos rodeia. Só há que interiorizá-lo. Tudo o que vimos uma vez, escutamos, lemos e aprendemos, nos acompanha na forma de partículas de luz. Para mim, estas partículas são obedientes e fiéis.
”
”
Nikola Tesla
“
Tem mais presença em mim o que me falta.
”
”
Manoel de Barros (Livro sobre nada)
“
Preciso mais do que um protetor com as asas sempre prontas a se estenderem sobre mim. Nunca estive tão segura e ao mesmo tempo nunca me senti tão insegura. Para que eu alcance o inatingível e possa provar aos meus sentidos que amar o sobrenatural é natural, Nate precisa amanhecer um lado para que o outro anoiteça. Eu preciso ver o homem que se eclipsa na sombra do anjo.
”
”
Lu Piras
“
A palavra falada, tal como a palavra escrita não me saem facilmente e muito menos quando tenho de me expressar sobre mim mesmo ou sobre o meu trabalho. (...) Aquele que pretende saber algo sobre mim - na qualidade de artista porque apenas esta minha faceta é digna de interesse - deve olhar atentamente para os meus quadros e tentar depreender deles o que sou e o que pretendo.
”
”
Gustav Klimt
“
(...) e às vezes ele mandava-me ir buscar o almoço ao restaurante, para que ele não pensasse porventura que lhe apresentava uma dose pequena porque pelo caminho tinha mandado abaixo metade dela, quando a dose me parecia pequena, eu próprio, com o meu último dinheiro, comprava mais uma para que o senhor primeiro-tenente enchesse a barriga e não pensasse nada de mau sobre mim.
”
”
Jaroslav Hašek (The Good Soldier Švejk)
“
Importante papel está reservado aos psiquiatras. Aos profetas, acredito ainda mais nos profetas. Acho que eu seria mais útil se estudasse Medicina, de que vão adiantar no futuro as leis se agora já são o que se sabe. Uma psiquiatra maravilhosa. O chato é que quando leio um livro sobre doenças mentais, descubro em mim os sintomas de quase todas, uma psiquiatra por dentro demais da loucura.
”
”
Lygia Fagundes Telles (As Meninas)
“
Eu, ainda que diante de Vós me despreze e me tenha em conta de terra e cinza, sei de Vós algumas coisas que não conheço de mim [...]. Sei que em nada podeis ser prejudicado, mas ignoro a que tentações posso ou não posso resistir.
”
”
Augustine of Hippo
“
A comunidade amaldiçoa-me dia e noite, exortam a ira de Deus a recair sobre mim por toda a eternidade, pedem que todas as maldições contidas nas leis divinas me sejam infligidas, desejam que o meu nome desapareça para sempre do planeta, proíbem que quem quer que seja mantenha comigo qualquer tipo de relação, privada ou profissional, recusam compartilhar tecto comigo, e enfim proíbem que se aproximem a menos de quatro côvados de mim. Finalmente posso tornar-me um filósofo livre.
”
”
Baruch Spinoza
“
Dedico-me à tempestade de Beethoven. A vibração das cores neutras de Bach. A Chopin que me amolece os ossos. A stravinsky que me espantou e com quem voei em fogo. Â morte e transfiguração, em que Richard Strauss me revela um destino? Sobretudo, dedico-me às vesperas de hoje e a hoje, ao trasnparente véu de Debussy, a Marlos Nobre, a Prokofiev,a Carl Orf, a Schönngberg, aos dodecafônicos, aos gritos rascantes dos eletronicos - a tonas esses que em mim atigiram zonas assutadoramente inesperadas, todos esses profetas do presente e que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponte de eu neste instante explodir em : eu. Esse eu que é vós pois não aguento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter de pé, tão tonto que sou, eu enviesado, enfim que é que se há de fazer senão meditar para cair naquele vazio pleno que só se atinge com a meditação. Meditar não precisa de ter resultados: a meditação pode ter como fim apenas ela mesma. Eu medito sem palavras e sobre o nada. O que me atrapalha a vida é escrever.
”
”
Clarice Lispector (The Hour of the Star)
“
Mas o que era isso que querias aprender com doutrinas e com mestres e que eles, que tanto te ensinaram, não te podiam ensinar?"
E compreendeu: "Era o Eu, cujo sentido e natureza eu queria conhecer. Era o Eu, de que eu queria libertar-me, que eu queria vencer. Mas não fui capaz de o vencer, apenas de o enganar, de fugir dele, esconder-me dele. Na verdade, nada no mundo ocupou tanto os meus pensamentos como este Eu, este enigma, o facto de eu estar vivo, de existir separado e isolado dos outros(...)E sobre nada no mundo sei tão pouco como sobre mim próprio.
”
”
Hermann Hesse (Siddhartha)
“
sob a cúpula do céu melancólico, com os pés chafurdados na poeira de um chão não menos desolado que o céu, eles avançavam com o olhar resignado daqueles cuja condenação é esperar sempre.
E o cortejo passou por mim e desapareceu na atmosfera do horizonte, aquele lugar em que a superfície arredondada do planeta se furta à curiosidade do olhar humano.
E durante alguns instantes, não pude deixar de cismar com aquele mistério; mas logo a irresistível Indiferença caiu sobre mim, prostrando-me de tal maneira que a eles não os prostravam as suas debilitantes Quimeras.
”
”
Charles Baudelaire (Paris Spleen)
“
Engana-se, Estella! Faz parte de minha vida desde que a conheci, faz parde de mim mesmo! Eu a vi em cada linha que li depois da primeira vez que aqui vim, sendo ainda um pobre menino grosseiro e vulgar, um menino cujo coração feriu. Desde então esteve em todos os meus sonhos de futuro. No rio, nas velas dos navios, nos pântanos, nas nuvens, na luz, nas sombras no vento, no mar, nos matos e nas ruas foi a personificação de todas as fantasias graciosas que meu espírito concebeu. As pedras com que se construíram os mais sólidos edifícios de Londres não são mais reais do que a sua influência sobre mim. E lhe seria mais fácil deslocá-las com suas mãos de mulher do que afastar da minha vida a sua presença constante e sua influência. Aqui em toda parte. Hoje e sempre, Estella. Até a última hora da minha vida, Estella, viverá no íntimo do meu ser, será uma parte do pouco do bem e do pouco do mal que há em mim. Mas quando estivermos longe um do outro, nas minhas recordações eu a associarei sempre ao bem, só ao bem, porque deve me ter feito muito mais bem do que mal. Apesar do sofrimento atroz que agora sinto... Oh! que Deus a guarde! que Deus a Perdoe.
”
”
Charles Dickens (Great Expectations)
“
Considerando-se tudo aquilo com que se espera que as mulheres convivam — os olhares lascivos que começam quando mal entramos na puberdade, o assédio, a violência à qual sobrevivemos ou contra a qual estamos sempre em guarda —, não posso deixar de me perguntar qual é o efeito de tudo isso sobre nós. Não apenas em relação a como as mulheres vivenciam o mundo, mas a como vivenciamos a nós mesmas. Passei a me questionar: Quem eu seria se não vivesse em um mundo que odeia as mulheres? Não consegui encontrar uma resposta satisfatória, mas percebi que há muito tempo venho guardando luto por essa versão de mim mesma que nunca existiu
”
”
Jessica Valenti (Objeto sexual: Memórias de uma feminista (Portuguese Edition))
“
Sou assediada pelo medo, Aurel! Tenho medo daquilo que os homens da Igreja possam um dia fazer a mulheres como eu. Não apenas porque somos mulheres - porque Deus criou-nos mulheres. Mas porque tentamos a vocês, que são homens - pois Deus criou-os homens. Achas que Deus ama os eunucos e castrados acima daqueles homens que amam uma mulher. Então cuida como louvas a obra de Deus, pois ele não criou o homem para se castrar.
Não posso esquecer o que aconteceu em Roma, e não penso mais em mim, pois não foi sobre mim que desencadeaste tua ira naquele dia. Foi sobre Eva, Excelência Reverendíssima, sobre a mulher. E aquele que faz mal a alguém ameaça a todos.
Tremo, pois temo o dia que virá quando mulheres como eu serão liquidadas pelos homens da Igreja universal. E por que serão liquidadas, Excelência Reverendíssima? Porque lembrar a vocês o fato de terem renegado suas próprias almas e seus próprios dons. E em nome de quê? De um Deus, dizem vocês todos, daquele que criou um céu acima de vocês e também uma terra onde realmente estão as mulheres que os trazem ao mundo.
Se Deus existe, que ele te perdoe. Mas talvez venhas a ser julgado um dia por todas as alegrias da vida a que deste as costas. Renuncias ao amor entre homem e mulher. Isso talvez possa ser perdoado. Mas o fazes em nome de Deus.
A vida é curta, e sabemos muito pouco. Mas se foi por tua ordem que me deram tuas confissões para ler aqui em Cartago, a resposta é não. Não me deixarei batizar, Excelência Reverendíssima. Não é a Deus que temo. Sinto que já vivo com ele, e, afinal, não foi ele que me criou? Nem é o Nazareno que me detém, ele era provavelmente um homem de Deus de fato. E não era ele também justo com as mulheres? É dos teólogos que tenho medo. Que o Deus do Nazareno te perdoe por toda a ternura e todo o amor que proscreveste.
[Flória Emília foi mulher de Aurélio Agostinho, o Santo Agostinho, por 12 anos antes de ser abandonada]
”
”
Jostein Gaarder (Vita Brevis: A Letter to St Augustine)
“
Minha mãe se reduzira a quase nada, no entanto tinha sido realmente um estorvo, pesara sobre mim fazendo com que eu me sentisse como um verme debaixo da pedra, protegida e esmagada. Desejei que sua agonia terminasse imediatamente, agora, e para meu espanto foi o que aconteceu. De repente o quarto ficou silencioso. Esperei, não tive forças para me levantar e ir até ela. Depois a língua de Imma estalou e o silêncio se rompeu. Deixei a cadeira, me aproximei da cama. Nós duas — eu e a pequena, que no sono estava buscando avidamente meu mamilo para sentir-se ainda parte de mim — éramos, naquele espaço de doença, tudo o que de vivo e de são ainda permanecia dela.
”
”
Elena Ferrante (The Story of the Lost Child (Neapolitan Novels, #4))
“
Há cerca de seis semanas, o médico permitiu que eu comesse pão branco em vez do grosseiro pão preto que servem na prisão. É uma iguaria deliciosa. Talvez pareça estranho que alguém possa considerar um pedaço de pão seco uma fina iguaria, mas para mim ele é de tal forma delicioso que ao fim de cada refeição recolho e devoro cuidadosamente todas as migalhas que possam ter caído no meu prato de estanho ou sobre o pedaço de tecido áspero que usamos como toalha para não sujar a mesa. E não o faço porque tenha fome – pois agora recebo comida suficientemente – mas simplesmente para não desperdiçar nada daquilo que me foi dado. E é assim que deveríamos fazer também com o amor.
”
”
Oscar Wilde (De Profundis)
“
Escrever é projectar-se além da Vida,
É vencer a morte.
Um dia esta virá, de surpresa, ou tardia,
Mas uma coisa não levará, não reduzirá a cinzas,
E sobre ela a sua álgida mão não terá poder.
Ó morte, eu sei que tu me aniquilarás,
Mas não destruirás esta página
em que escrevo o teu nome,
O teu nome odiado e cruel.
Quantos seres derrubaste em volta de mim!
A todos apavoras.
Mas outras vidas há que não estão à tua mercê,
E essas, que nós criamos
Com a música das nossas palavras,
Com a febre do nosso espírito,
Com a ambição do nosso sonho,
Essas - sobreviver-nos-ão
E o teu amplexo não as envolverá.
O que fica do artista, para além dele, não te pertence;
Basta que nós te pertençamos.
”
”
Joaquim Paço d'Arcos
“
Enfim, encontrei esse trecho de uma carta que ele escreveu para Laurens, e me fez pensar em você. E em mim, acho:
"A verdade é que sou um homem honesto e desafortunado, que falo meus sentimentos a todos e com ênfase. Digo isso a você
porque você sabe e não me acusará de vaidade. Odeio o Congresso — odeio o Exército — odeio o mundo — me
odeio. São todos uma multidão de tolos e patifes; quase à exceção de você..."
Pensar sobre história me fez questionar como vou entrar para ela algum dia, acho. E você também. Meio que queria que as
pessoas ainda escrevessem desse jeito.
História, hein? Aposto que poderíamos fazer.
Com carinho, seu, enlouquecendo lentamente,
Alex, Primeiro-Filho do Sacrilégio contra os Pais Fundadores
”
”
Casey McQuiston (Red, White & Royal Blue)
“
Duas mães pedem a Deus, com devoção extrema, que livre seus filhos da dor, do sofrimento, do desaparecimento, da morte. Pedem todos os dias saúde e proteção para eles, como se pedissem, sufocadas, um pouco de ar para elas. Suplicam, sem coragem de duvidar que serão atendidas. Confiam. Entregam a Deus seus corações apertados e reconhecem humildes que amor demais é um despreparo para a dor.
O flho de uma delas morre de maneira cruel e covarde. O filho da outra prossegue forte e abençoado. Uma conquista atrás da outra. A boa mãe do filho vivo agradece todos os dias. Não se cansa de dar graças: Deus é tão bom pra mim, ouve as minhas preces em seu coração generoso. Que testemunho sobre Deus a outra boa mãe, que sofre a perda brutal de um filho, deveria dar?
”
”
Carla Madeira (Tudo é Rio)
“
Uma menininha de cabelo ruivo corre até a mesa da entrada, rindo e quase se sufocando com um emaranhado de fios verdes.
Um belo cachecol? Ela sorri, saltitante.
— Olá — digo. — Posso-te perguntar uma coisa? — Ela ri e balança a cabeça. — Como farias para encontrar uma agulha num palheiro?
A menina para, pensativa, puxando o fio verde em torno do pescoço. Na realidade, ela está a pensar sobre o problema. Pequenas engrenagens estão funcionando. Ela retorce os dedinhos juntos, refletindo. É muito fofa. Por fim, ela olha para mim e diz com seriedade.
— Eu pediria à palha para encontrar a agulha. — Então, emite um guincho fantasmagórico baixo e sai pulando em um pé só.
Um gongo antigo da dinastia Song ribomba na minha cabeça. Sim, claro. Ela é um génio!
”
”
Robin Sloan (Mr. Penumbra's 24-Hour Bookstore (Mr. Penumbra's 24-Hour Bookstore, #1))
“
à noite, depois do chá, refugiava-me no oratório, como numa fortaleza de santidade, embebia os meus olhos no corpo de ouro de Jesus, pregado na sua linda cruz de pau preto. Mas então o brilho fulvo do metal precioso ia, pouco a pouco, embaciando, tomava uma alva cor de carne, quente e tenra; a magreza de Messias triste, mostrando os ossos, arredondava-se em formas divinamente cheias e belas; por entre a coroa de espinhos, desenrolavam-se lascivos anéis de cabelos crespos e negros; no peito, sobre as duas chagas, levantavam-se, rijos, direitos, dous esplêndidos seios de mulher, com um botãozinho de rosa na ponta; e era ela, a minha Adélia, que assim estava no alto da cruz, nua, soberba, risonha, vitoriosa, profanando o altar, com os braços abertos para mim!
”
”
Eça de Queirós (A Relíquia)
“
(…) Havia lá algo escrito a negro, que eu ainda não conhecia.
Not broken, just bent.
Levantei o dedo e passei-o sobre as linhas. O Kaden estremeceu, contudo não se moveu nem um centimetro.
- O que é isso? - perguntei num murmúrio, erguendo o olhar. O Kaden pareceu inseguro.
- As tuas palavras - respondeu, também em voz baixa. Tinha os olhos escuros e cheios de sentimento. - As palavras que me fizeram voltar a acreditar em mim mesmo, As palavras que me levaram ao limite, porque eu não conseguia imaginar que alguém me visse realmente como tu me vês. - Faltou-lhe a voz, e engoliu em seco.
Lembrei-me daquele dia junto à cascata. Da nossa conversa, de todos os sinais ocultos que ele me tinha enviado. De tudo o que ele me tinha confiado e eu lhe tinha confiado.
Tu não estás avariado, Kaden. Só um pouco empenado. Não é nada que não se possa arranjar.
”
”
Mona Kasten (Begin Again (Again, #1))
“
Para mim isso prova que a vida e o tempo não estão em sincronia. É como se o tempo estivesse sempre errado e a vida da esposa tivesse sido vivida na margem errada ou, pior ainda, em duas margens, e nenhuma das duas era a certa. Talvez ninguém queira admitir que leva a vida em vias paralelas, mas todo mundo vive muitas vidas, uma escondida por baixo, ou mesmo ao lado, da outra. Algumas esperam sua vez porque ainda não foram vividas, enquanto outras morrem antes que tenham se concluído. Umas ainda estão esperando para ser revividas porque não foram vividas o suficiente. Não sabemos como pensar sobre o tempo, porque ele não se entende como nós o entendemos. Ele na verdade não está nem aí para o que pensamos a seu respeito, porque ele é só uma metáfora oscilante e duvidosa para nosso modo de pensar a vida. No fim das contas, não é o tempo que é errado para nós, ou nós para ele. Talvez a própria vida seja errada.
”
”
André Aciman (Find Me (Call Me By Your Name, #2))
“
Mas a exclusão, que me impus, dos fins e dos movimentos da vida; que procurei, do meu contacto com as coisas — levou-me precisamente àquilo q que eu procurava fugir. Eu não queria sentir a vida, nem tocar as coisas, sabendo, pela experiência do meu temperamento em contágio do mundo, que a sensação da vida era sempre dolorosa para mim. Mas ao evitar esse contacto, isolei-me, e, isolando-me, exacerbei a minha sensibilidade já excessiva. Se fosse possível cortar de todo o contacto com as coisas, bem iria à minha sensibilidade. Mas esse isolamento total não pode realizar-se. Por menos que eu faça, respiro; por menos que aja, movo-me. E, assim, conseguindo exacerbar e minha sensibilidade pelo isolamento, consegui que os factos mínimos, que antes mesmo a mim nada fariam, me ferissem como catástrofes. Errei o método de fuga. Fugi, por um rodeio incômodo, para o mesmo lugar onde estava, com o cansaço da viagem sobre o horror de viver ali.
”
”
Bernardo Soares (The Book of Disquiet: The Complete Edition)
“
A primeira: você sabe por que livros como este são tão importantes? Porque têm qualidade. E o que significa a palavra qualidade? Para mim significa textura. Este livro tem poros. Tem feições. Este livro poderia passar pelo microscópio. Você encontraria vida sob a lâmina, emanando em profusão infinita. Quanto mais poros, quanto mais detalhes de vida fielmente gravados por centímetro quadrado você conseguir captar numa folha de papel, mais “literário” você será. Pelo menos, esta é a minha definição. Detalhes reveladores. Detalhes frescos. Os bons escritores quase sempre tocam a vida. Os medíocres apenas passam rapidamente a mão sobre ela. Os ruins a estupram e a deixam para as moscas. Entende agora por que os livros são odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida. Os que vivem no conforto querem apenas rostos com cara de lua de cera, sem poros nem pelos, inexpressivos. Estamos vivendo num tempo em que as flores tentam viver de flores, e não com a boa chuva e o húmus preto.
”
”
Ray Bradbury (FARENHIET 451)
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Da economia do tempo - Sêneca saúda o amigo Lucílio
Comporta-te assim, meu Lucílio, reivindica o teu direito sobre ti mesmo e o tempo que até hoje foi levado embora, foi roubado ou fugiu, recolhe e aproveita esse tempo. Convence-te de que é assim como te escrevo: certos momentos nos são tomados, outros nos são furtados e outros ainda se perdem no vento. Mas a
coisa mais lamentável é perder tempo por negligência.
Se pensares bem, passamos grande parte da vida agindo mal, a maior parte sem fazer nada, ou fazendo algo diferente do que se deveria fazer.
Podes me indicar alguém que dê valor ao seu tempo, valorize o seu dia, entenda que se morre diariamente? Nisso, pois, falhamos: pensamos que a morte é coisa do futuro, mas parte dela já é coisa do passado.
Qualquer tempo que já passou pertence à morte.
Então, caro Lucílio, procura fazer aquilo que me escreves: aproveita todas as horas; serás menos dependente do amanhã se te lançares ao presente. Enquanto adiamos, a vida se vai. Todas as coisas, Lucílio, nos são alheias; só o tempo é nosso. A natureza deu-nos posse de uma única coisa fugaz e escorregadia, da qual qualquer um que queira pode nos privar. E é tanta a estupidez dos mortais que, por coisas insignificantes e desprezíveis, as quais certamente se podem recuperar,
concordam em contrair dívidas de bom grado, mas ninguém pensa que alguém lhe deva algo ao tomar o seu tempo, quando, na verdade, ele é único, e mesmo aquele que reconhece que o recebeu não pode devolver esse tempo de quem tirou.
Talvez me perguntes o que faço para te dar esses conselhos. Eu te direi francamente: tenho consciência de que vivo de modo requintado, porém cuidadoso. Não posso dizer que não perco nada, mas posso dizer o que perco, o porquê e como; e te darei as razões pelas quais me considero miserável. No entanto, a mim acontece o que ocorre com a maioria que está na miséria não por culpa própria: todos estão prontos a desculpar, ninguém a dar a mão.
E agora? A uma pessoa para a qual basta o pouco que lhe resta, não a considero pobre. Mas é melhor que tu conserves todos os teus pertences, e começarás em tempo hábil. Porque, como diz um sábio ditado, é tarde para poupar quando só resta o fundo da garrafa. E o que sobra é muito pouco, é o pior. Passa bem!
(Sêneca, em "Aprendendo a Viver - Cartas a Lucílio")
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Seneca (Letters from a Stoic)
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Amava Aida desde sempre, o nosso encontro aconteceu na eternidade. Só assim eu entendo que não saiba contar bem como tudo começou. Porque os factos não são indício de nada e o verdadeiro indício está antes e depois de todos os indícios. Há a minha infância, há a morte da minha mãe, mas no que se passa em mim estou só eu. E é dessa solidão absoluta que o absurdo nasceu. Rapidamente ultrapassei os limites da plenitude de um encontro que se basta, de duas mãos que se prendem, de dois olhares que se fitam. Rapidamente me interroguei sobre quem estava atrás desse olhar e dessas mãos e quis chegar até lá... É tão difícil explicar. É tão difícil e tão alto e tão fora da nossa medida, que estremeço de loucura e as minhas palavras se atropelam. Mas isto existe, como é possível que seja um erro? Há um além para lá de ti, da pessoa que vejo e está aqui e que é a pessoa que és. Trago em mim o apelo absoluto da identidade absoluta, a exigência da comunhão verdadeira. Porque eu sou de mais para mim - e tu. Jamais te saberei? Jamais tocarei com as minhas mãos a chama que arde em ti? Estamos cheios de prodígio, não é estúpido que o ignoremos? Para lá de todas as portas há uma porta ainda, e essa é que é a porta da nossa morada...
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Vergílio Ferreira (Estrela Polar)
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Não tinhas a mínima noção do que é o amor, Mayya? Não sentiste nada do que eu passei enquanto andava à volta da tua casa como um peregrino em volta da Caaba, uma, duas, sete vezes?
Como pôde a casa ter espaço suficiente para abrigar toda a minha paixão? Como é que a sua única varanda aguentou comigo, ali parado, sozinho, sob o peso de tanto amor, sem se partir ou cair na rua de terra batida, para ser levada pela brisa para os céus de Deus? Como é que aquele quartinho suportou as toneladas de nuvens que eu aí guardava, só para poder caminhar sobre elas? Como é que as paredes se mantiveram imóveis e inabaláveis, sem tremer uma única vez com o tormento da minha insustentável felicidade?
Mas tudo ficou no seu lugar, apesar de eu não ter lugar. As portas não saíram dos seus gonzos, apesar de o meu corpo abatido estar crivado pelas balas vivas do amor desesperado. As janelas não se partiram, ainda que as minhas asas batessem violentamente contra o vidro, com força suficiente para voar da janela da frente até à mancha mais distante no horizonte. A casa foi suficientemente grande para me conter, para sufocar o grito de desejo que ecoava dentro de mim.
Como foi então possível, Mayya, que os teus olhos, fixos na tua máquina de costura, nunca conseguissem ver a dimensão imensa e tortuosa do meu amor, e o meu eu aprisionado?
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Jokha Alharthi جوخة الحارثي (Celestial Bodies)
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Porque, não importa o que diga, a linha sobre a qual caminhava, de recta que talvez fosse, tinha passado a curva desde que me viu, e eu apercebi-me do momento exacto em que me viu pelo momento exacto em que o seu caminho se tornou curvo, e não uma curva que o afastasse de mim, mas uma curva para vir ter comigo, senão nunca nos teríamos encontrado, mas teria antes afastado ainda mais de mim, porque você estava à andar à velocidade de alguém que caminha de um ponto para outro; e eu nunca o teria apanhado porque eu só caminho lentamente, calmamente, quase imóvel, com o passo de alguém que não vai de um ponto para o outro mas que, num lugar imutável, espreita quem passa à sua frente e espera que modifique ligeiramente o seu percurso. E se eu digo que fez uma curva, e como sem dúvida há-de dizer que era um desvio para me evitar, ao que eu afirmarei, em resposta, que foi um movimento para se aproximar, sem dúvida que isso é assim porque no fim de contas você não se desviou, que qualquer linha recta só existe em relação a um plano, que nós nos movemos segundo dois planos distintos, e que no fim de contas só existe o facto que você olhou para mim e que eu interceptei esse olhar ou o inverso, e que, à partida, de absoluta que era, a linha segundo a qual você se movia tornou-se relativa e complexa, nem recta nem curva, mas fatal.
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Bernard-Marie Koltès (Dans la solitude des champs de coton)
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O que há é que estou resolvido a sumir. Eu sei que sou um desfavorecido da
natureza. Estive doente durante 24 anos, desde o meu nascimento até
completar 24 anos. Deve tomar tudo quanto eu digo agora como coisa de
um homem doente. Vou-me embora, imediatamente, imediatamente. Pode
ficar certa disso. Não me sinto envergonhado, não, pois seria estranho que
eu estivesse envergonhado disso, não seria? Mas estou deslocado na
sociedade… Falo, não por vaidade ferida!… Estive refletindo durante estes
três dias e achei cá comigo que lhe devia explicar certas coisas
sinceramente e de modo bem digno para com a senhora, na primeira
oportunidade que eu tivesse. Há ideias, grandes ideias, sobre as quais eu
não devo começar a falar, porque na certa faria todo o mundo rir. O Príncipe
Chtch… ainda agora me avisou sobre tal coisa. Minha atitude não é
conveniente. Não tenho nenhum senso de proporção. Minhas palavras são
incoerentes, não se enquadrando no assunto; e isso é uma degradação para
tais ideias. Portanto, não tenho nenhum direito!… Além disso, sou sensível
morbidamente… Estou mais do que certo de que ninguém, aqui nesta casa,
feriria meus sentimentos e que sou mais querido aqui do que mereço. Mas
eu sei (e sei ao certo) que vinte anos de doença devem deixar traços, e que
por conseguinte é impossível a qualquer pessoa deixar de rir de mim… às
vezes… Não é assim, não é mesmo?
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Fyodor Dostoevsky (The Idiot)
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Algumas vezes eu imaginava o sangue enchendo um copo descartável. Eu podia escutar cada esguicho batendo contra as paredes enceradas do copo. Talvez 100 esguichos enchessem o copo; seriam apenas 50 segundos. Então eu pensava em como poderia cortar meus pulsos. A faca da cozinha? Aquela pequena e afiada, com o cabo preto? Ou uma lâmina de barbear? Mas não existem mais lâminas de barbear cortantes; somente aquelas lâminas injetadas, que são seguras. Eu nunca havia percebido o desaparecimento da lâmina de barbear. Acho que é assim que eu, também, desaparecerei. Sem estardalhaço. Talvez alguém vá pensar em mim em algum momento de fantasia, exatamente como pensei na extinta lâmina de barbear. Contudo, a lâmina não está extinta. Graças aos meus pensamentos, ela ainda vive. Sabe, não existe mais nenhuma pessoa viva, agora, que era adulta quando eu era criança. De modo que eu, como criança, estou morto. Em algum dia próximo, talvez em quarenta anos, não existirá mais ninguém vivo que tenha algum dia me conhecido. É quando estarei verdadeiramente morto, quando não existir na memória de ninguém. Eu pensei muito sobre uma pessoa muito velha, o último indivíduo vivo que conheceu alguém ou um grupo de pessoas. Quando essa pessoa velha morre, todo o grupo morre também, desaparece da memória viva. Eu gostaria de saber quem será essa pessoa para mim. A morte de quem me tornará verdadeiramente morto?
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Irvin D. Yalom (Love's Executioner and Other Tales of Psychotherapy)
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Você conheceu algum poema-veneno que faria explodir minha prisão num maço de miosótis? Uma arma que mataria o rapaz perfeito que mora em mim e me obriga a asilar todo um aglomerado de animais?
As andorinhas se aninham debaixo de seus braços. Aí elas construíram um ninho de terra seca. Lagartas de veludo cor de tabaco mesclam-se nos cachos dos seus cabelos. Sob seus pés um enxame de abelhas, e ninhadas de víboras atrás dos seus olhos. Nada o emociona. Nada o perturba a não ser as meninas fazendo a primeira comunhão, pondo a língua para o padre, ajuntando as mãos, baixando os olhos. Faz frio como na neve. Sei que ele é sorrateiro. O ouro mal o faz sorrir, mas se ele sorrir, terá a graça dos anjos. Que cigano seria suficientemente veloz para livrar-me dele com um punhal inevitável? É necessário velocidade, uma boa pontaria, uma bela indiferença. E... o assassino ocupou seu lugar. Voltou esta manhã de uma volta pelas espeluncas onde viu marinheiros, putas, uma delas deixou no seu rosto o traço de uma mão sangrenta. Ele pode partir para bem longe mas é fiel como um pombo. Outra noite, uma velha atriz colocou uma camélia na sua lapela.
Eu quis amassá-la: as pétalas caíram sobre o tapete (mas que tapete? Minha cela é pavimentada de pedras achatadas) em grossas gotas de água transparentes e mornas. Agora, apenas ouso olhar para ele, pois meus olhos atravessam sua carne de cristal e estes ângulos rígidos perfazem tantos arcos-íris que eis por que choro. Fim.
Pode não parecer grande coisa para vocês, mas este poema me aliviou. Eu o caguei.
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Jean Genet (Our Lady of the Flowers)
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D’ENGENHO DE DENTRO (excertos)
12/10
eu queria escrever sobre ana, mas ainda é cedo, eu não sei, não sei se posso e, finalmente, vejo que não quero. sobre a vinda de mamãe e papai até aqui, também não: falta qualquer novidade a esse respeito – a não ser que valha a pena anotar que reencontrar papai depois de três anos é como reencontrar um velho amigo que não via há três dias; e reencontrar mamãe depois de dois anos é como ser apresentado a alguém cujo nome, fama e aventuras eu já conhecia de sobra e que, portanto, me pareceu estranha, distante, mítica. mais ou menos assim. mas prefiro escrever sobre este lugar e minha vida dentro dele. a melhor sensação é a de reconquistar inteiramente o anonimato no contato diário com meus pares de hospício. posso gritar: “meu nome é torquato neto, etc., etc.”; do outro lado uma voz sem dentes dirá: meu nome é vitalino; e outra: o meu é atagahy! aqui dentro só eu mesmo posso ter algum interesse: minhas aventuras, nem um pingo. meu nome podia ser, josé da silva – e de preferência, mas somente no que se refere a mim. a eles não interessa. O dr. Osvaldo não pode fugir. nem fingir: mas isso eu comecei a ver, de fato, logo mais quando teremos nossa primeira entrevista. o anonimato me assegura uma segurança incrível: já não preciso mais (pelo menos enquanto estiver aqui) liquidar meu nome e formar nova reputação como vinha fazendo sistematicamente como parte do processo autodestrutivo em que embarquei – e do qual, certamente, jamais me safarei por completo. mas sobre isso, prefiro dar mais tempo ao tempo: eu sou obrigado a acreditar no meu destino. (isso é outra conversa que só rogério entenderia). tem um livro chamado: o hospício é deus. eu queria ler esse livro. foi escrito, penso, neste mesmo sanatório. vou pedir a alguém para me conseguir esse livro.
13/10
eu: pronome pessoal e intransferível. viver: verbo transitório e transitivo, transável, conforme for. a prisão é um refúgio: é perigoso acostumar-se a ela. e o dr. Osvaldo? Não exclui a responsabilidade de optar, ou seja:?
20/10
É preciso não beber mais. Não é preciso sentir vontade de beber e não beber: é preciso não sentir vontade de beber.
É preciso não dar de comer aos urubus. É preciso fechar para balanço e reabrir. É preciso não dar de comer aos urubus. Nem esperanças aos urubus. É preciso sacudir a poeira.
É preciso poder beber sem se oferecer em holocausto. É preciso.
É preciso não morrer por enquanto. É preciso sobreviver para verificar. Não pensar mais na solidão de Rogério, e deixá-lo. É preciso não dar de comer aos urubus. É preciso enquanto é tempo não morrer na via pública.
4/4/71
Debaixo da tempestade
sou feiticeiro de nascença
atrás desta reticência
tenho o meu corpo cruzado
a morte não é vingança
7/4/71
– Foi um caminhão que passou. bateu na minha cabeça. aqui. isso aqui é péssimo, não me lembro de nada.
– Eles não deixam ninguém ficar em paz aqui dentro. são bestas. Não deixam a gente cortar a carne com faca mas dão gilete pra se fazer a barba.
– Pode me dar um cigarro? eu só tenho um maço, eu tenho que pedir porque senão acaba. Pode me dar as vinte.
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Torquato Neto (26 Poetas Hoje)
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Um imenso animal leiteiro aproximou-se da mesa de Zaphod Beeblebrox. Era um enorme e gordo quadrúpede do tipo bovino, com olhos grandes e protuberantes, chifres pequenos e um sorriso nos lábios que era quase simpático.
– Boa noite – abaixou-se e sentou-se pesadamente sobre suas ancas –, sou o Prato do Dia. Posso sugerir-lhes algumas partes do meu corpo? – Grunhiu um pouco, remexeu seus quartos traseiros buscando uma posição mais confortável e olhou pacificamente para eles.
Seu olhar se deparou com olhares de total perplexidade de Arthur e Trillian, uma certa indiferença de Ford Prefect e a fome desesperada de Zaphod Beeblebrox.
– Alguma parte do meu ombro, talvez? – sugeriu o animal. – Um guisado com molho de vinho branco?
– Ahn, do seu ombro? – disse Arthur, sussurrando horrorizado.
– Naturalmente que é do meu ombro, senhor – mugiu o animal, satisfeito –, só tenho o meu para oferecer.
Zaphod levantou-se de um salto e pôs-se a apalpar e sentir os ombros do animal, apreciando.
– Ou a alcatra, que também é muito boa – murmurou o animal. – Tenho feito exercícios e comido cereais, de forma que há bastante carne boa ali. – Deu um grunhido brando e começou a ruminar. Engoliu mais uma vez o bolo alimentar. – Ou um ensopado de mim, quem sabe? – acrescentou.
– Você quer dizer que este animal realmente quer que a gente o coma? – cochichou Trillian para Ford.
– Eu? – disse Ford com um olhar vidrado. – Eu não quero dizer nada.
– Isso é absolutamente horrível – exclamou Arthur -, a coisa mais repugnante que já ouvi.
– Qual é o problema, terráqueo? – disse Zaphod, que agora observava atentamente o enorme traseiro do animal.
– Eu simplesmente não quero comer um animal que está na minha frente se oferecendo para ser morto – disse Arthur. – É cruel!
– Melhor do que comer um animal que não deseja ser comido – disse Zaphod.
– Não é essa a questão – protestou Arthur. Depois pensou um pouco mais a respeito. – Está bem – disse –, talvez essa seja a questão. Não me importa, não vou pensar nisso agora. Eu só... ahn...
O Universo enfurecia-se em espasmos mortais.
– Acho que vou pedir uma salada – murmurou.
– Posso sugerir que o senhor pense na hipótese de comer meu fígado? Deve estar saboroso e macio agora, eu mesmo tenho me mantido em alimentação forçada há meses.
– Uma salada verde – disse Arthur, decididamente.
– Uma salada? – disse o animal, lançando um olhar de recriminação para ele.
– Você vai me dizer – disse Arthur – que eu não deveria comer uma salada?
– Bem – disse o animal –, conheço muitos legumes que têm um ponto de vista muito forte a esse respeito. E é por isso, aliás, que por fim decidiram resolver de uma vez por todas essa questão complexa e criaram um animal que realmente quisesse ser comido e que fosse capaz de dizê-lo em alto e bom tom. Aqui estou eu!
Conseguiu inclinar-se ligeiramente, fazendo uma leve saudação.
– Um copo d’água, por favor – disse Arthur.
– Olha – disse Zaphod –, nós queremos comer, não queremos uma discussão. Quatro filés malpassados, e depressa. Faz 576 bilhões de anos que não comemos.
O animal levantou-se. Deu um grunhido brando.
– Uma escolha muito acertada, senhor, se me permite. Muito bem – disse –, agora é só eu sair e me matar.
Voltou-se para Arthur e deu uma piscadela amigável.
– Não se preocupe, senhor, farei isso com bastante humanidade.
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Douglas Adams (The Restaurant at the End of the Universe (The Hitchhiker's Guide to the Galaxy, #2))
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Como se me afiguravam felizes e satisfeitos todos aqueles homens que eu encontrava no meu caminho! A vida, na verdade, era para eles como uma imensa sala de baile. Nem a sombra de uma preocupação nos seus olhares nem a mais leve aparência de cansaço nos seus gestos! Nunca, talvez, um pensamento inquietante, uma angústia misteriosa lhes teria perturbado as almas! E ao lado desta humanidade que se cruzava comigo, eu, jovem, quase virgem de experiência, já esquecera o que era felicidade! Lutei com este pensamento até me persuadir de que se cometia comigo uma cruel injustiça. Por que tinham sido os últimos meses tão terrivelmente duros para mim? Nem já me reconhecia tão pertinaz caíra sobre mim todo o gênero de inesperadas preocupações! Não me era possível sentar-me num banco, ir a qualquer parte, fosse onde fosse, sem ser vítima de imprevistas casualidades, de angustiosas humilhações que me obcecavam a imaginação e dispersavam aos quatro ventos as minhas resoluções. (...)
Continuando a analisar a minha vida, acabei por me convencer de que o fato de ter sido eu o eleito para expiar as faltas comuns da Humanidade constituía um ato arbitrário de Deus Nosso Senhor. Mesmo depois de ter encontrado um banco e de me sentar, ainda me obcecavam as sugestões desse pensamento, a ponto de me impedirem qualquer outra reflexão. Desde aquele dia de maio, em que haviam começado as minhas adversidades, era-me impossível seguir facilmente o rasto das minhas progressivas fraquezas. Empalideci subitamente e as minhas forças dificilmente continuaram concordando com os meus desejos, era como se um enxame de insetos mordedores e teimosos tivessem feito ninho no meu espírito.
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Knut Hamsun (Hunger)
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ele se deixava corroer pelos vermes de suas lembranças/ […] descanso minha cabeça entre essas palmas cheias de estrelas, cruzes e precipícios que um dia compuseram o meu destino./ Pois toda dor à qual nós nos abandonamos transforma-se em serenidade./ […] há muito foi mumificado pela mentira da glória./ Desperto cada noite sob o incêndio do meu próprio sangue./O respeito devido aos mártires acaba por enobrecer o instrumento ignóbil do suplício. Não basta amar as criaturas; é preciso adorar sua miséria, seu aviltamento, sua desgraça./[…] pareço-me com a Morte, a velha amante de Deus./A verdade é que Ele não me salvou nem da morte, nem dos males, nem do crime, porque é através deles que somos salvos. Salvou-me, porém, da felicidade./ Há seis dias, há seis meses… São passados seis anos, passar-se-ão seis séculos… Ah! Morrer para fazer parar o Tempo…[…]/ Falo-te em surdina porque só quando falamos em voz baixa escutamos a nós mesmos./ Toda vez que uma dor vinha até mim eu me apressava em sorrir-lhe para que ela me sorrisse em retribuição./ A ambição é apenas um logro. A sabedoria enganou-se. E o próprio vício mentiu. Não existe nem virtude, nem piedade, nem amor, nem pudor, nem os seus contrários, mas apenas uma concha vazia dançando no alto de uma alegria que é também a Dor, um clarão de beleza na tempestade das formas./ O amor é um castigo. Somos punidos por não termos podido permanecer sós…/ Pois, se o Tempo é o sangue dos vivos, a Eternidade deve ser o sangue das trevas./Criatura magnética, demasiado etérea para o solo, muito carnal para o céu, seus pés besuntados de cera romperam o pacto que nos une à terra./ Safo mergulha, tendo os braços abertos como para abraçar a metade do infinito./ Só se pode construir a felicidade sobre alicerces de desespero. Creio que vou poder começar a construir
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Marguerite Yourcenar (Fires)
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guia, Sra. Saeki, tem cerca de 45 anos e é magra. É também alta em comparação às demais mulheres da sua geração. Usa vestido verde com um cardigã creme claro jogado sobre os ombros. Seu porte é elegante. Seus cabelos, longos, estão arrebanhados frouxamente na nuca. O rosto é delicado e inteligente. Tem olhos bonitos. E também um sorriso suave como uma sombra brincando sempre em seus lábios. Um sorriso que não sei descrever direito, mas que me parece conclusivo. Lembra uma pequena e ensolarada poça de luz, de formato único e que só se encontra em lugares secretos. No jardim de minha casa em Nogata, havia um cantinho e uma poça semelhantes, e desde muito pequeno sempre os amei. A Sra. Saeki desperta em mim uma sensação forte, mas, ao mesmo tempo, de comovente nostalgia. Como seria bom se ela fosse minha mãe, penso eu. O mesmo pensamento me ocorre toda vez que vejo uma mulher bonita (ou apenas simpática) de meia-idade. Como seria bom se ela fosse minha mãe… Mas nem é preciso dizer, a chance da Sra. Saeki ser minha mãe é praticamente nula. Mas do ponto de vista teórico a possibilidade existe, embora mínima. Afinal, não conheço nem o rosto nem o nome da minha mãe. Em outras palavras, não existe nenhuma razão para ela não ser minha mãe. Da visita guiada participamos apenas eu e um casal de meia-idade proveniente de Osaka. A mulher é rechonchuda e usa óculos de grau forte. O marido é magro e seu cabelo, duro, parece ter sido deitado à força com cerdas de ferro. Os olhos finos e as maçãs de rosto largas trazem à mente certas figuras esculpidas de ilhas meridionais, sempre a fitar o horizonte com intensa ferocidade. A mulher assume a maior parte do diálogo; o marido apenas murmura respostas automáticas. Além disso, acena a cabeça em concordância, emite exclamações admiradas e vez ou outra resmunga palavras soltas, ininteligíveis. O vestuário de ambos é mais apropriado para escalar montanhas do que para visitar bibliotecas: colete impermeável cheio de bolsos, sapatos de meio-cano fechados
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Haruki Murakami (Kafka à Beira-Mar)
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- O quê? - fez indignado Flores, erguendo-se, num só e rápido movimento, da cadeira, e deixando a xícara sobre a mesa. - Pois tu não sabes quem sou eu, quem é Leonardo Flores? Pois tu não sabes que a poesia para mim é a minha dor e é a minha alegria, é a minha própria vida? Pois tu não sabes que tenho sofrido tudo, dores, humilhações, vexames, para atingir o meu ideal? Pois tu não sabes que abandonei todas as honrarias da vida, não dei o conforto que minha mulher merecia, não eduquei convenientemente meus filhos, unicamente para não desviar dos meus propósitos artísticos? Nasci pobre, nasci mulato, tive uma instrução rudimentar, sozinho completei-a conforme pude; dia e noite lia e relia versos e autores; dia e noite procurava na rudeza aparente das coisas achar a ordem oculta que as ligava, o pensamento que as unia; o perfume à cor, o som aos anseios de mudez de minha alma; a luz à alegoria dos pássaros pela manhã; o crepúsculo ao cicio melancólico das cigarras - tudo isto eu fiz com sacrifício de coisas mais proveitosas, não pensando em fortuna, em posição, em respeitabilidade. Humilharam-me, ridicularizaram-me, e eu, que sou homem de combate, tudo sofri resignadamente. Meu nome afinal soou, correu todo este Brasil ingrato e mesquinho; e eu fiquei cada vez mais pobre, a viver de uma aposentadoria miserável, com a cabeça cheia de imagens de ouro e a alma iluminada pela luz imaterial dos espaços celestes. O fulgor do meu ideal me cegou; a vida, quando não me fosse traduzida em poesia, aborrecia-me. Pairei sempre no ideal; e se este me rebaixou aos olhos dos homens, por não compreender certos atos desarticulados da minha existência; entretanto, elevou-me aos meus próprios, perante a minha consciência, porque cumpri o meu dever, executei a minha missão: fui poeta! Para isto, fiz todo o sacrifício. A Arte só ama a quem a ama inteiramente, só e unicamente; e eu precisava amá-la, porque ela representava, não só a minha Redenção, mas toda a dos meus irmãos, na mesma dor. Louco?! Haverá cabeça cujo maquinismo impunemente possa resistir a tão inesperados embates, a tão fortes conflitos, a colisões com o meio tão bruscas e imprevistas? Haverá?
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Lima Barreto (Clara dos Anjos)
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- Ora bem, minha filha, ouve-me. Muitas vezes, as jovens julgam-se notáveis, imagens encantadoras, figuras ideais, e inventam ideias fantasiosas sobre os homens, sobre os sentimentos, sobre o mundo. Depois atribuem inocentemente a um indivíduo as qualidades com que sonharam e confiam nele. Amam no homem da sua escolha aquela criatura imaginária, mas mais tarde, quando já não há hipótese de se libertarem da infelicidade, a enganadora aparência que elas embelezaram, o seu primeiro ídolo, transforma-se, por fim, num esqueleto odioso. Julie, preferia saber-te apaixonada por um velho a ver-te amar o coronel. Ah, se pudesses imaginar-te daqui por dez anos, darias valor à minha experiência! Conheço Victor: a sua alegria é uma alegria sem alma, uma alegria de caserna. Não tem talento e é perdulário. É daqueles homens que o céu criou para tomar e digerir quatro refeições por dia, dormir, amar à primeira vista e desinteressar-se. Não entende a vida. O seu bom coração, porque tem bom coração, levá-lo-á provavelmente a oferecer a sua bolsa a um infeliz, a um camarada, mas é negligente, mas não é dotado da delicadeza de coração que nos torna escravos da felicidade de uma mulher, mas é ignorante, egoísta... São demasiados mas.
- No entanto, meu pai, precisou de talento e de recursos para se tornar coronel...
- Minha querida, Victor será coronel toda a vida. Ainda não conheci ninguém que me parecesse digno de ti - replicou o velho pai com algum entusiasmo.
Parou um momento, olhou para a filha e acrescentou:
- Mas, minha pobre Julie, és ainda muito jovem, muito frágil, muito delicada para suportar as tristezas e as preocupações do casamento. D'Aiglemont foi mimado pelos pais, tal como tu o foste pela tua mãe e por mim. Como esperar que possam entender-se um ao outro quando possuem caracteres tão diferentes, cujos caprichos serão inconciliáveis? Serás vítima ou impiedosa. Qualquer das alternativas comporta semelhante grau de infelicidade na vida de uma mulher. Mas és delicada e modesta, serás a primeira a submeter-se. Enfim - exclamou, com a voz alterada -, possuis uma delicadeza de sentimentos que será ignorada, e então...
Não conseguiu terminar, as lágrimas dominaram-no.
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Honoré de Balzac (A Woman Of Thirty)
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(Cont.. Página 46)
O seu rosto negro, bonito, cintilava ali na minha frente. Fiquei boquiaberto, tentando pensar em alguma maneira de responder. Ficamos juntos, enlaçados daquela maneira durante alguns segundos; então o som da fábrica saltou num arranco, e alguma coisa começou a puxá-la para trás, afastando-a de mim. Um cordão em algum lugar que eu não via se havia prendido naquela saia vermelha florida e a puxava para trás. As unhas dela foram arranhando as minhas mãos e, tão logo ela desfez o contato comigo, seu rosto saiu novamente de foco, tornou-se suave e escorregadio como chocolate derretendo-se atrás daquela neblina de algodão que soprava. Ela riu e girou depressa, deixando que eu visse a perna amarela, quando a saia subiu. Lançou-me uma piscadela de olho por sobre o ombro enquanto corria para sua máquina, onde uma pilha de fibra deslizava da mesa para o chão; ela apanhou tudo e saiu correndo sem barulho pela fileira de máquinas para enfiar as fibra num funil de enchimento; depois, desapareceu no meu ângulo de visão virando num canto.
(Página 47)
"Todos aqueles fusos bobinando e rodando, e lançadeiras saltando por todo lado, e carretéis fustigando o ar com fios, paredes caiadas e máquinas cinza-aço e moças com saias floridas saltitando para a frente e para trás e a coisa toda tecida como uma tela, com linhas brancas corrediças que prendiam a fábrica, mantendo-a unida - aquilo tudo me marcou e de vez em quando alguma coisa na enfermaria o traz de volta à minha mente
Sim. Isto é o que sei.. A enfermaria é uma fábrica da Liga. Serve para reparar os enganos cometidos nas vizinhanças, nas escolas e nas igrejas, isso é o que o hospital é. Quando um produto acaba, volta para a sociedade lá fora - todo reparado e bom como se fosse novo, às vezes melhor do que se fosse novo, traz alegria ao coração da Chefona; algo que entrou deformado, todo diferente, agora é um componente em funcionamento e bem-ajustado, um crédito para todo esquema e uma maravilha para ser observado. Observe-o se esgueirando pela terra com um sorriso, encaixando-se em alguma vizinhançazinha, onde estão escavando valas agora mesmo, por toda a rua, para colocar encanamento para a água da cidade. Ele está contente com isso. Ele finalmente está ajustado ao meio-ambiente...
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Ken Kesey (One Flew Over the Cuckoo’s Nest)
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Quem alcançou neste mundo grandeza igual à dessa bendita mulher, a mãe de Deus, a virgem Maria? No entanto, como se fala dela? A sua grandeza não provém do fato de ter sido bendita entre as mulheres, e se uma estranha coincidência não levasse a assembléia a pensar com a mesma desumanidade do predicador, qualquer jovem devia, seguramente, perguntar: Por que não fui eu também bendita entre as mulheres? Se se não possuísse outra resposta, de forma alguma acharia ter de rejeitar esta pergunta, pretextando a sua falta de senso; porque, no abstrato, em presença de um favor, todos temos mesmos direitos. São esquecidos a tribulação, a angústia, o paradoxo. Meu pensamento é tão puro como o de qualquer outro; e ele purifica-se, exercendo-se sobre as coisas. E se não se enobrecer pode-se então esperar pelo espanto; porque se essas imagens foram alguma vez evocadas jamais poderão ser esquecidas. E se contra elasse peca, extraem da sua muda cólera uma terrível vingança, mais terrível do que os rugidos de dez ferozes críticos. Maria,indubitavelmente, deu à luz o filho graças a um milagre, mas no decorrer de tal acontecimento foi como todas as outras mulheres, e esse tempo é o da angústia, da tribulação e do paradoxo. O anjo foi,sem dúvida, um espírito caritativo, mas não foi complacente porque não foi dizer a todas as outras virgens de Israel: Não desprezeis Maria, porque lhe sucedeu o extraordinário. Apresentou-se perante ela só e ninguém a pôde compreender. No entanto, que outra mulher foi mais ofendida do que Maria? Pois não é também verdade que aquele a quem Deus abençoa é também amaldiçoado com o mesmo sopro do seu espírito? É desta forma que se torna necessário, espiritualmente,compreender Maria. Ela não é, de maneira alguma, uma formosa dama que brinca com um deus menino, e até me sinto revoltado ao dizer isto e muito mais ao pensar na afetação e ligeireza de tal concepção. Apesar disso, quando diz: sou a serva do Senhor, ela é grande e imagino que não deve ser difícil explicar por que razão se tornou mãe de Deus. Não precisa, absolutamente nada, da admiração do mundo, tal como Abraão não necessita de lágrimas,porque nem ela foi uma heroína, nem ele foi um herói. E não se tornaram grandes por terem escapado à tribulação, ao desespero e ao paradoxo, mas precisamente porque sofreram tudo isso. Há grandeza em ouvir dizer ao poeta, quando apresenta o seu herói trágico à admiração dos homens: chorai por ele; merece-o; porque é grandioso merecer as lágrimas dos que são dignos de as derramar;há grandeza em ver o poeta conter a multidão, corrigir os homens e analisá-los um por um para verificar se são dignos de chorar pelo herói, porque as lágrimas dos vulgares chorões profanam o sagrado.Contudo ainda é mais grandioso que o cavaleiro da fé possa dizer ao nobre caráter que quer chorar por ele: não chores por mim, chora antes por ti próprio.
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Søren Kierkegaard
“
«Sabe, meu amor, que te amo. E que te amarei até morrer. É por isso que todo o resto me parece tão pouco, um nada imenso de nenhum valor. Sabe que te choro e te venero, e sobretudo que te espero. E sabe que te vejo, com olhos de quem vê, e que te conheço, como só conhece um livro quem o lê. Sabe que à amargura dos dias subtraí a doçura de te ter. Sim, o cintilar da vida, ao meu redor, por te ter. Por saber-te nunca muito longe, embora raramente aqui. por saber que, nos teus olhos - laivos de mel e coisas mais profundas, lucidez e racionalidade - leio que também me lês. Deslizemos agora para o silêncio, perfeição. Não vejo já necessidade de prender a tua mão, pois que sinto que te prendi. Ao teu olhar, que se enreda no meu. que estranhas asas povoam as minhas entranhas, murmuram a meus ouvidos. que grande és, que tola sou. Sabe, meu amor, que tenho plena consciência das nossas dimensões. Basta-me ter-te assim, como te tenho, para seguir pela vida a sorrir. Em mim não se apagarão mais luzes, em mim, à noite, acendem-se as estrelas. Fosse eu firmamento, e tu o cimento com que se constrói o mundo. Sem nós, nada. Reservatório de tudo. Conheço-te, milagre maior, e tenho-te, não podia ter-te melhor. Porque caminhas a meu lado, não acorrentado a mim. Porque me beijas a testa e porque te louvo as mãos. Homem honesto. Amor maior. Porque me guias na escuridão das ingenuidades - resquícios da infância - e porque não me apontas caminhos, descreves-me paisagens. Sim e não, talvez e também. Veremos o que dali vem. E eu, a teu lado, que tola sou, pequena e feliz, que feliz é quem amou assim um grande amor. Ecos de palavras, distantes. Que importa se não somos amantes? Se nunca o seremos? Sei que te amo e, nalguma linguagem, sei que me amas também. Se é na matemática dos racionais, se na pureza dos amigos, se no secretismo dos poetas, isso não sei. Sei que te carrego em mim e que, se fechar os olhos, me sorris. Estás comigo a todo o instante. Não te guardo em caixas, fotografias ou objectos. Caberias lá tu em caixas, mundo, permanecerias lá tu imóvel, como os objectos, vida. Quanto muito, vejo-te às vezes num livro cá por casa. Mas sei-te, e sei-te quase de cor. Não quero saber-te, na totalidade ou de cor. Não o poderia, é inalcançável. Tão grande és tu, que não acabas. Em mim nunca acabarás. A felicidade que a tua volta me trouxe. E sabe que vou chorar, «a cada ausência tua eu vou chorar». Mas não lágrimas; é paixão, fogo, urgência. Coisa física, átomos de energia em colisão. Ainda assim, ter-te-ei aqui, para seguir pela vida a sorrir. A cada vez que afastar os lençóis, pedir-te-ei que te chegues para lá. E ainda que a tua boca nunca sobre a minha pouse, e ainda que nunca venhas a sorrir enquanto te beijo, sabe, meu amor, que te amo, e que te amarei até morrer. Com a certeza de quem quer viver, de quem quer seguir, a vida inteira, com a alma enredada na tua. Que o teu chá seja fervido da minha chaleira, e que os teus livros disputem com os meus o espaço da prateleira. Meu amor, sabe que te amarei a vida inteira.»
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Célia Correia Loureiro (Os Pássaros)
“
Três coisas estão faltando. A primeira: você sabe por que livros como este são
tão importantes? Porque têm qualidade. E o que significa a palavra qualidade? Para mim
significa textura. Este livro tem poros. Tem feições. Este livro poderia passar pelo
microscópio. Você encontraria vida sob a lâmina, emanando em profusão infinita. Quanto
mais poros, quanto mais detalhes de vida fielmente gravados por centímetro quadrado você
conseguir captar numa folha de papel, mais “literário” você será. Pelo menos, esta é a minha
definição. Detalhes reveladores. Detalhes frescos. Os bons escritores quase sempre tocam a
vida. Os medíocres apenas passam rapidamente a mão sobre ela. Os ruins a estupram e a
deixam para as moscas. Entende agora por que os livros são odiados e temidos? Eles mostram
os poros no rosto da vida. Os que vivem no conforto querem apenas rostos com cara de lua
de cera, sem poros nem pelos, inexpressivos. Estamos vivendo num tempo em que as flores
tentam viver de flores, e não com a boa chuva e o húmus preto. Mesmo os fogos de artifício,
apesar de toda a sua beleza, derivam de produtos químicos da terra. No entanto, de algum
modo, achamos que podemos crescer alimentando-nos de flores e fogos de artifício, sem
completar o ciclo de volta à realidade. Você conhece a lenda de Hércules e Anteu, o
gigantesco lutador cuja força era invencível desde que ele ficasse firmemente plantado na
terra? Mas quando Hércules o ergueu no ar, deixando-o sem raízes, ele facilmente pereceu.
Se não existe nessa lenda nenhuma lição para nós hoje, nesta cidade, em nosso tempo, então
sou um completo demente. Bem, aí temos a primeira coisa de que precisamos. Qualidade,
textura da informação.
— E a segunda?
— Lazer.
— Ah, mas já temos muitas horas de folga.
— Horas de folga, sim. Mas e tempo para pensar? Quando você não está dirigindo a cento
e sessenta por hora, numa velocidade em que não consegue pensar em outra coisa senão no
perigo, está praticando algum jogo ou sentado em algum salão onde não pode discutir com o
televisor de quatro paredes. Por quê? O televisor é “real”. É imediato, tem dimensão. Diz o
que você deve pensar e o bombardeia com isso. Ele tem que ter razão. Ele parece ter muita
razão. Ele o leva tão depressa às conclusões que sua cabeça não tem tempo para protestar:
“Isso é bobagem!”.
— Somente a “família” é “gente”.
— Como disse?
— Minha mulher diz que os livros não são “reais”.
— Graças a Deus que não. Você pode fechá-los e dizer: “Espere um pouco aí”. Você faz
com eles o papel de Deus. Mas quem consegue se livrar das garras que se fecham em torno
de uma pessoa que joga uma semente num salão de tevê? Ele dá a você a forma que ele
quiser! É um ambiente tão real quanto o mundo. Ele se torna a verdade e é a verdade. Os
livros podem ser derrotados com a razão. Mas com todo o meu conhecimento e ceticismo,
nunca consegui discutir com uma orquestra sinfônica de cem instrumentos, em cores, três
dimensões, e ao mesmo tempo estar e participar desses incríveis salões. Como você vê, meu
salão não passa de quatro paredes de gesso. E veja. — Faber exibiu dois pequenos tampões de
borracha. — Para minhas orelhas, quando ando nos jatos subterrâneos.
— O Dentifrício Denham; eles não tecem, nem fiam — disse Montag, os olhos cerrados.
— E para onde vamos? Os livros nos ajudariam?
— Só se nos fosse dada a terceira coisa necessária. A primeira, como eu disse, é a
qualidade da informação. A segunda, o lazer para digeri-la. E a terceira, o direito de realizar
ações com base no que aprendemos da interação entre as duas primeiras.
”
”
Ray Bradbury (Fahrenheit 451)
“
Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste. E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever.
Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo. Às vezes as idéias não vêm, ou vêm muito numerosas e a folha permanece meio escrita, como estava na véspera. Releio algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las. Afasto o papel.
Emoções indefiníveis me agitam inquietação terrível, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração.
Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na escuridão.
Lá fora os sapos arengavam, o vento gemia, as árvores do pomar tornavam-se massas negras.
- Casimiro!
(...) A figura de Casimiro Lopes aparece à janela, os sapos gritam, o vento sacode as árvores, apenas visíveis na treva. Maria das Dores entra e vai abrir o comutador.
Detenho-a: não quero luz.
O tique-taque do relógio diminui, os grilos começam a cantar. E Madalena surge no lado de lá da mesa. Digo baixinho:
- Madalena!
A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Também já não a vejo com os olhos. Estou encostado à mesa, as mãos cruzadas. Os objetos fundiram-se, e não enxergo sequer a toalha branca.
- Madalena...
A voz de Madalena continua a acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente que mande algum dinheiro a Mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é diferente das outras, é uma irritação antiga, que me deixa inteiramente calmo. Loucura estar uma pessoa ao mesmo tempo zangada e tranqüila. Mas estou assim. Irritado contra quem? Contra Mestre Caetano. Não obstante ele ter morrido, acho bom que vá trabalhar. Mandrião!
A toalha reaparece, mas não sei se é esta toalha sobre que tenho as mãos cruzadas ou a que estava aqui há cinco anos.
(...) Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis, colerizo-me e enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de chorar. Aparentemente estou sossegado: as mãos continuam cruzadas sobre a toalha e os dedos parecem de pedra. Entretanto ameaço Madalena com o punho. Esquisito.
Distingo no ramerrão da fazenda as mais insignificantes minudências. Maria das Dores, na cozinha, dá lições ao papagaio. Tubarão rosna acolá no jardim. O gado muge no estábulo. O salão fica longe: para irmos lá temos de atravessar um corredor comprido. Apesar disso a palestra de Seu Ribeiro e Dona Glória é bastante clara. A dificuldade seria reproduzir o que eles dizem. É preciso admitir que estão conversando sem palavras.
Padilha assobia no alpendre. Onde andará Padilha? Se eu convencesse Madalena de que ela não tem razão... Se lhe explicasse que é necessário vivermos em paz... Não me entende. Não nos entendemos. O que vai acontecer será muito diferente do que esperamos. Absurdo.
Há um grande silêncio. Estamos em julho. O nordeste não sopra e os sapos dormem.
(...)
Repito que tudo isso continua a azucrinar-me. O que não percebo é o tique-taque do relógio. Que horas são? Não posso ver o mostrador assim às escuras. Quando me sentei aqui, ouviam-se as pancadas do pêndulo, ouviam-se muito bem. Seria conveniente dar corda ao relógio, mas não consigo mexer-me.
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Graciliano Ramos (São Bernardo)
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Prisão de Jesus — 47Enquanto ainda falava, eis que chegou uma multidão. À frente estava o chamado Judas, um dos Doze, que se aproximou de Jesus para beijá-lo. 48Jesus lhe disse: "Judas, com um beijo entregas o Filho do Homem?" 49Vendo o que estava para acontecer, os que se achavam com ele disseram-lhe: "Senhor, e se ferirmos à espada?" 50E um deles feriu o servo do Sumo Sacerdote, decepando-lhe a orelha direita. 51Jesus, porém, tomou a palavra e disse: "Deixai! Basta!" E tocando-lhe a orelha, curou-o. 52Depois, Jesus dirigiu-se àqueles que vieram de encontro a ele, chefes dos sacerdotes, chefes da guarda do Templo e anciãos: "Como a um ladrão saístes com espadas e paus? 53Eu estava convosco no Templo todos os dias e não pusestes a mão sobre mim. Mas é a vossa hora, e o poder das Trevas".
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Various (Bíblia de Jerusalém: Bíblia Sagrada)
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Desejo-te com tanta força que por vezes creio que a vasta solidão do mar troça de mim, trazendo-me a tua voz sobre a espuma das ondas. Sinto a tua presença em cada sopro de vento e viro-me à tua procura, mesmo sabendo que não estás aqui, comigo.
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Noelia Amarillo (Quédate a mi lado)
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Não te posso deixar aqui. Não podemos acabar assim, tu e eu.
Vive bem, pelos dois, e um dia conta a Urtiga histórias sobre mim.
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Robin Hobb (Fool's Errand (Tawny Man, #1))
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…ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.
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Clarice Lispector
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Há cerca de dez anos, aprendi uma grande lição. O telefone sempre tocava aos domingos, quando eu tinha reservado aquele dia só para mim. Eu atendia e acabava ficando irritada com quem quer que tivesse ligado. Em uma dessas ocasiões, Stedman me disse: “Se não quer falar, por que continua a atender o telefone?” Foi uma revelação: só porque o aparelho está tocando, não significa que eu precise atender. Eu tenho o controle sobre o que fazer com o tempo. Todos temos, mesmo quando parece que não. Proteja o seu tempo. A sua vida é feita dele.
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Oprah Winfrey (What I Know for Sure)
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Sabe quando você perde toda e qualquer esperança no mundo, nas pessoas e em tudo ao seu redor? É exatamente esse o sentimento que me preenche agora, a falta de fé no ser humano. Sinto um nó na garganta, meus olhos se enchendo de lágrimas. Parece um pesadelo, a cada coisa boa que acontece na minha vida, três coisas ruins são desencadeadas e despejadas sobre mim.
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GABBIE OLIVEIRA (NOSTALGIA (Volume 1) (Portuguese Edition))
“
Toda tentativa de pulverização do eu que sofre só me deixa mais ciente de sua solidez. Nunca estive tão consciente da utopia que é viver no presente (que, pra mim, só existe assombrado pelo passado e pelo futuro, que sempre estiveram aqui e agora, mas raramente notados). Essa consciência é a parte maravilhosa de meditar e, por enquanto, é só isso.
Como questionar a realidade da assombração, algo que vem do passado e acossa o presente querendo dizer algo sobre o futuro, quando seus contornos se tornam cada vez mais nítidos? Como não prestar atenção a uma situação na qual não resta dúvida de que me tornei um fantasma pra minha filha e ela se tornou um fantasma pra mim? É como se eu tivesse uma rede de pesca em minhas mãos e não conseguisse fazer nada com ela, porque fui hipnotizada por seus buracos.
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Carla Piazzi (Luminol)
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O português é uma língua que amo profundamente, eu gosto muito de misturar espanhol e português. Pra mim, é importante morar nas outras línguas, nos outros territórios e nos outros mapas.
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Andrea Alejandro Freire (Camino de letras que desaparece en un sobre)
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Eu tenho uma dica que repito sempre para mim mesmo: Caju, fique livre do mundo, aproveite a dor, ame de olhos fechados e se divirta na Terra. Acredito que amar é sofrer. E não tenho vocação para sofrimento.
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Andrea Alejandro Freire (Camino de letras que desaparece en un sobre)
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Infelizmente, para mim tem sido difícil ajustar essas ideias sobre fragilidade e antifragilidade no âmbito do atual discurso político dos Estados Unidos — aquele abominável sistema de dois fósseis. Na maior parte do tempo, o lado democrata do espectro norte-americano favorece a hiperintervenção, a regulamentação incondicional e o governo grande, ao passo que o lado republicano adora as grandes corporações, a desregulamentação incondicional e o militarismo — aqui ambos são a mesma coisa para mim.
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Nassim Nicholas Taleb (Antifrágil: Coisas que se beneficiam com o caos)
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O que você está fazendo? — Eu pergunto, franzindo a testa com a perda de seu peso.
Seus olhos se arrastam sobre mim, seu ângulo fazendo com que veja tudo.
— Admirando a vista — Ele responde, sorrindo. — Se a hora do chá fosse tão bonita. — Eu coro, colocando minha cabeça para baixo. — Olhe para você
— Continua ele, — toda espalhada na minha frente como uma festa.
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Kendra Moreno (Mad as a Hatter (Sons of Wonderland #1))
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Cheguei a um estágio de vida em que não me incomodo com nada do que digam sobre mim; com certeza tenho defeitos, mas agora sei, mais que nunca, que estou fazendo diferença na vida das pessoas. Digo isso com total humildade. Trabalhei durante anos simplificando informações científicas complexas para que as pessoas as aplicassem na própria vida.
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Joe Dispenza (Como se tornar sobrenatural: Pessoas comuns realizando o extraordinário (Portuguese Edition))
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esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avançando para as que diante de mim estão, prossigo para o alvo,
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Gustavo Augusto Ferreira (O QUE O SENHOR DOS ANÉIS E A CRUZ NOS ENSINAM SOBRE COMO PERDOAR O PRÓXIMO? (Portuguese Edition))
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Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio. Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.
Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas.
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo.
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora.
Na distância subitamente impossível de percorrer.
Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela.
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto.
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.
Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena.
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.
Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes.
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos.
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde — quem sabe? — Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...
Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-o misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!
Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé antepé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.
Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,
A lua começa a ser real.
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Fernando Pessoa (Poemas de Álvaro de Campos (Obra Poética IV))
“
Independência não tem nada a ver com o fato de alguém escolher ou não ser solteira ou casada, ter filhos ou não ter. Independência por definição é sobre autogoverno. Sobre escolher por si só. Sobre tomar suas próprias decisões.
Todas as minhas decisões me pertencem.
Eu escolhi essa vida. Eu amo essa vida e foda-se todos que querem escolher por mim.
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Krista Ritchie (Some Kind of Perfect (Calloway Sisters, #5))
“
Não tivemos um profundo “grand finale”, como Julie vinha chamando nossa última sessão. Suas últimas palavras para mim foram sobre um filé. “Deus, o que eu não daria por um filé!”, disse, com a voz fraca, baixinho. “É bom que eles tenham filé onde quer que eu esteja indo.” E, então, adormeceu. Foi um final em nada diferente das nossas demais sessões, onde ainda após o “nosso tempo acabou”, a conversa perdurava. Nas melhores despedidas, sempre existe a sensação de que existe algo mais a ser dito.
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Lori Gottlieb (Maybe You Should Talk to Someone: A Therapist, Her Therapist, and Our Lives Revealed)
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De resto, sobre o que uma pessoa respeitável pode falar com a máxima satisfação? Resposta: sobre si. Então, eu também vou falar sobre mim.
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Fyodor Dostoevsky (Memórias do subsolo (Portuguese Edition))
“
Mestre nunca disse nada de sensual, jamais falou de amor que não fosse fraterno e não individual. Ele sempre combateu a hipocrisia, a maledicência, a falta de respeito, o adultério. Por isso, para nós espíritas, indicamos ler o Evangelho e estudar O Livro dos Espíritos, porque Jesus falou “Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei”. Somente indo até Jesus, aprendendo sobre os Seus ensinamentos, é que compreenderemos como separar o joio do trigo, pois eles crescem juntos em nossos pensamentos até a ceifa, que é o nosso discernimento, aí arrancamos o joio e atiramos para queimar e o trigo ajuntamos no celeiro da nossa consciência.
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Elaina Machado Coelho (Sem Regras para Amar (Portuguese Edition))
“
Meu nome é Thomas Sayer, você já deve ter ouvido falar de mim no passado, mas ninguém nunca te contou a história da mulher a frente do homem que eu fui, porque essa história não é sobre a redenção de um homem. É sobre a ascensão de uma mulher.
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Joanna Falcão (Deserto de Sal (Portuguese Edition))
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me sentia sempre correndo e ficando para trás, o que gerava a frustração, e esse sentimento de não ter controle sobre a própria vida se apossou de mim.
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F. Fortunato (Masked Guy (Hunters and preys Livro 1) (Portuguese Edition))
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Há um velho equívoco sobre a palavra amor, e, se muitos filhos nascem desse equívoco, tantos outros perderam o único instante de nascer apenas por causa de uma suscetibilidade que exige que seja de mim, de mim!
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Clarice Lispector (Laços de Família)
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Acordei com estrelas sobre o rosto. Subiam até mim ruídos campesinos. Aromas de noite, de terra e de sol refrescavam-me as têmporas. A paz maravilhosa deste Verão adormecido entrava em mim, como uma maré.
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Albert Camus (The Stranger)
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Vocês acham que alguém vai se lembrar de nós? Quem se lembra daqueles que nunca nasceram, e mesmo assim ainda estão vivos? No sonho, sou um esqueleto dançando junto às biocortinas. Abro a boca e sorrio para mim mesmo com meu queixo saliente. Quero muito ser um bom funcionário, quero fazer boas escolhas. Mas como posso saber se estou seguindo o programa corretamente? Algumas ações podem ter consequências, que em alguns casos só se manifestarão num futuro tão distante que para mim se tornam insondáveis. Devo continuar trabalhando sabendo que minhas ações têm o potencial de neutralizar o programa? Ou o programa me deixa tão assoberbado que, não importa o que eu faça, sempre agirei de acordo com seus comandos? Serei eu a mão do programa? No entanto, existem erros nas atualizações, é bem verdade. Pode não ser essa a intenção do programa. Caso eu, sem me dar conta, execute uma ação que comprometa a boa execução do programa, não conseguirei deixar de me odiar por esse erro. Uma vez que não sei se estou agindo de forma comprometedora, porém, como poderei de fato saber se mereço ser odiado ou não? Devo me odiar antecipadamente? Onde posso descobrir quais ações são contrárias aos comandos do programa? A quem devo procurar para pedir perdão? É preciso submeter algum tipo de formulário? Gostaria de solicitar que providenciassem um material sobre quais ações requerem perdão. Pode ser um pensamento, por exemplo? Um pensamento demasiado ruim? Posso pensar que vocês estão sujeitos a falhas, que há algo de errado com vocês, mas então sinto raiva de mim mesmo e acho que o errado sou eu. Por que todos esses pensamentos me ocorrem se estou aqui sobretudo para executar uma tarefa essencialmente técnica? Por que tenho essas ideias se minha função é, antes de mais nada, aumentar a produtividade? Em que perspectiva esses pensamentos são "produtivos"? Ocorreu algum erro na atualização? Neste caso, gostaria de recomeçar do zero.
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Olga Ravn (The Employees)
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Opa, opa! Tivemos um terrível engano por aqui: eu não sou uma pessoa extrovertida! Sou uma introvertida altamente funcional. Uso meu carisma e senso de humor como mecanismos de disfarce quando me sinto ansiosa em situações sociais, desviando a atenção de mim fazendo muitas perguntas e tornando o ambiente sobre o outro, até porque tenho um grande senso de responsabilidade pela felicidade de todos ao meu redor. Atenciosamente, uma introvertida altamente funcional.
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Marcela Ceribelli (Aurora: O despertar da mulher exausta)
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O olho é o limite. O mundo caiu do céu vindo parar dentro de meu olho, junto desceram pássaros diurnos e noturnos; nenhum deles me livrou do meu suplício, nem lhe carregou a culpa; não levantaram vôo nunca mais, minhas membranas grudaram em suas patas. Fiquei com a natureza em mim, o olhar de medo, distante das coisas, saturado de ar, esvoaçado e flutuante, ciscos e ciscos, cílios caídos dentro do vulcão, as constelações mortas, as luzes apagadas. Isso me pesa, não porque o universo seja desproporcional ao que posso ver, mas porque me enche de remorsos não poder vê-lo por inteiro. Esforço-me em ver, não posso ver o que deveria, os escombros estão sob a tarja azul que apareceu sobre minha retina, a cada movimento me torno mais incapaz; além de tudo, o cansaço da ação do olhar, acrescido da incompreensão dos caminhos de ver, dá-me muito sono.
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Marcia Tiburi (Magnólia (Trilogia Íntima, #1))
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Ele nunca me perguntou nada sobre mim. Acho que nem sabia em que país eu tinha nascido. Não estava interessado no que se passava pela minha cabeça. Essa pode ser uma das coisas mais degradantes a que se pode submeter alguém, não se importar com o que a pessoa pensa.
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Sofia Lundberg (The Red Address Book)
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Reflexões sobre o amor (Reflections on love)
O amor é uma escolha. Uma escolha de partilhar a vida com aquela pessoa. Não são as borboletas no estômago quando estamos juntos. Não é a atração dos nossos corpos, dos nossos átomos. Não é a calma quando está tudo bem e contemplamos o universo agarrados. Nem tão pouco é a dor e o sofrimento quando não nos entendemos. São as pequenas partilhas do dia a dia. É o querer saber se está tudo bem. É o saber que aquela pessoa está lá para ti, independentemente do que acontecer. Que te vai escolher em todas as situações. É chegar a um compromisso que funcione para os dois. Quando o teu mundo desaba é que se percebe se é amor. Alguém que te ama não te abandona, aparece quando mais precisas. Quando o mundo é sombrio e te sentes sozinho, essa pessoa está lá. Amor é uma escolha constante, aceito-te como és. És a pessoa que eu quero, apesar de todos os teus defeitos e problemas.
É difícil fazer essa escolha quando temos medos, barreiras emocionais, e não estamos confortáveis com a nossa sombra, o nosso passado, os nossos pensamentos mais sujos. Só depois de nos deixarmos entrar no buraco negro da alma e começarmos a acordar aos poucos para os nossos traumas é que podemos encontrar a pessoa com quem queremos partilhar a nossa vida. Porque sabemos que não somos perfeitos mas sabemos quais são os nossos medos e não vamos deixar que eles controlem a nossa vida.
É nisto que trabalho. Não me deixo distrair do que sinto, não me escondo. Deixo que os sentimentos passem por mim e olho de frente para eles. Quando dominar os meus demónios mas profundos vou finalmente saber quem sou. Quando ultrapassar amores passados e aceitar que posso passar o resto da vida sozinho, vou encontrar essa pessoa, esse amor. Porque não quero alguém que seja "good enough". Não quero alguém que eu não ame simplesmente para ter uma família ou sentir-me validado. Quero que os meus filhos nasçam por amor. Eles merecem isso. Não que sejam fruto de um egoísmo individual para não me sentir sozinho.
Quando verdadeiramente aceitar isto tudo, acho que estarei preparado para encontrar a pessoa imperfeita. Sim, a pessoa imperfeita, a pessoa errada. A pessoa com problemas, mas problemas que eu quero que também sejam os meus. A pessoa errada que escolho. A pessoa errada que amo.
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Miguel Ferreira-Pinto
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No filme Amelia 2.0 , Amelia é trazida de volta à vida usando inteligência artificial [118] . O filme, uma ficção científica sobre inteligência artificial, possui duas provocações. O filme brinca com estudos que sugerem que será possível transmitir consciência para redes neurais artificiais (o chatGPT é feito de redes neurais artificiais). Ver meu livro “ Redes Neurais em termos simples (pensamento computacional): como aprendemos, pensamos e modelamos ”.
Primeiro, um senador religioso faz de tudo para barrar o projeto, o que ocorre no momento com células-tronco. Ele usa argumentações religiosas, similar ao que fazem quando querem barrar algo como estudos em células-troncos e aborto. Para mim, esse filme serve como uma reflexão futurística, mas bem real. Quando a religião invade o campo da ciência, e quer servir como tutela da ciência, isso nunca funciona. A ciência tem mecanismos éticos próprios, e são constantemente revisados e atualizados. Esses mecanismos éticos são baseados em discussões, não em imposições estáticas e atemporais.
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Jorge Guerra Pires (Seria a Bíblia um livro científico?: Por que a Bíblia Sagrada não deve ser levada a sério e como argumentar contra ela (Estudos Bíblicos para ateus 2) (Portuguese Edition))
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COISAS QUE TEMOS: PEDRAS, MAÇÃS
Tive pedra, sobre ela
deixei cair as imagens,
para que aí ficasse gravada
uma memória de pedra, impiedosa ardendo sobre as trevas.
Uma pedra que dissesse: quem sobre mim olhar
verá a sua sombra reflectida do destino.
Pus uma maçã sobre a pedra,
e era sol então e ela imaginava:
subitamente, o sítio das pedras levantadas
ecoa contra a morte. Densamente.
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Helena Carvalhão Buescu (Ardem as Trevas e Outros Lugares)
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Chovia sempre e eu custei para conseguir me levantar daquela poça de lama, chegava num ponto, eu voltava ao ponto, em que era necessário um esforço muito grande, era preciso um esforço tão terrível que precisei sorrir mais sozinho e inventar mais um pouco, aquecendo meu segredo, e dei alguns passos, mas como se faz? me perguntei, como se faz isso de colocar um pé após o outro, equilibrando a cabeça sobre os ombros, mantendo ereta a coluna vertebral, desaprendia, não era quase nada, eu, mantido apenas por aquele fio invisível ligado à minha cabeça, agora tão próximo que se quisesse eu poderia imaginar alguma coisa como um zumbido eletrônico saindo da cabeça dele até chegar na minha, mas como se faz? eu reaprendia e inventava sempre, sempre em direção a ele, para chegar inteiro, os pedaços de mim todos misturados que ele disporia sem pressa, como quem brinca com um quebra-cabeça para formar que castelo, que bosque, que verme ou deus, eu não sabia, mas ia indo pela chuva porque esse era meu único sentido, meu único destino: bater naquela porta escura onde eu batia agora. E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar que as pessoas na rua parassem para olhar, eu quis chamá-lo, mas tinha esquecido seu nome, se é que alguma vez o soube, se é que ele o teve um dia, talvez eu tivesse febre, tudo ficara muito confuso, idéias misturadas, tremores, água de chuva e lama e conhaque no meu corpo sujo gasto exausto batendo feito louco naquela porta que não abria, era tudo um engano, eu continuava batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva, pelo meio da cidade, eu só estava parado naquela porta fazia muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, na mesma porta que não abre nunca.
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Caio Fernando Abreu
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PRÓLOGO
Alguns Anos atrás no Planeta Orfheus...
Escurecia quando Lucius chegou ao local combinado, do qual haviam escolhido para ser o novo esconderijo. O último havia sido utilizado por vários meses, e estavam preocupados com a possibilidade de estarem sendo perseguidos e por fim, descobertos.
- Pensei que você não viesse... Estou lhe esperando faz quase uma hora, estava ficando angustiada. - disse Sofia aliviada.
- Desculpe meu amor... Tudo está se tornando cada vez mais difícil, quase não consegui vir hoje. Houve uma emboscada com as tropas de Igor na última invasão, e muitos guerreiros retornaram gravemente feridos. – ele a olhou surpreso. – Porque, esse encontro repentino? Nós havíamos combinado que o próximo seria na semana seguinte!
- Eu sei... Mas, não pude esperar...
Lucius deu-lhe um forte abraço, trazendo-a para junto de si. Permanecendo em silêncio por alguns momentos, sentindo o cheiro dela. A saudade e o desejo o consumiam. Ela significava o seu mundo, sem Sofia, sua vida jamais faria sentido. Ele nunca esqueceria aqueles olhos, serenos e sinceros, um azul tão claro e límpido, capaz de enxergar sua alma de guerreiro atormentado. Juntamente com seus cabelos dourados, Sofia parecia um anjo.
- Algum problema? Você ficou tão quieto e pensativo. – ela perguntou intrigada.
- Estou pensando em nós... Quanto tempo nós conseguiremos manter tudo em segredo? – ele afastou-se dela suspirando. - Ficar mentindo e fingindo que está tudo bem. Você faz ideia do quanto eu tenho que suportar quando está longe de mim? Ou quando vejo você com ele?
– Meu amor, agora não. Já discutimos diversas vezes sobre esse assunto. Você sabe que a nossa única alternativa, seria fugir, e rezar para que nunca nos encontrem.
Sofia sabia muito bem que as leis do Reino não podiam ser desrespeitadas. O amor, o respeito e a lealdade eram fatores primordiais, que faziam parte da hierarquia de Orfheus. Embora sempre fosse apaixonada por Lucius, que jamais demonstrou qualquer atitude ou interesse por ela, Sofia acabou se relacionando com Alex, irmão de Lucius em consequência de um pacto. Entretanto com o decorrer dos séculos, Lucius começou a mudar e demonstrar sentimentos amorosos por ela que, nunca deixou de amá-lo e sucumbiu às tentações e a paixão por ele. Inevitavelmente um caso de amor surgiu entre os dois.
Interrompendo os pensamentos dela, Lucius pegou-a pela mão e a levou para dentro da cabana. Este último lugar escolhido era reservado, adentro de uma vasta e linda floresta. Ele a puxou pela cintura, dando-lhe um beijo apaixonado, acariciou seus cabelos e disse baixinho.
- Amor... Senti tanto a sua falta.
- Eu também senti muitas saudades, mas o verdadeiro motivo que me trouxe hoje aqui às presas é outro. Preciso que você escute com atenção e mantenha a calma. – enquanto falava passava as mãos entre os cabelos negros de Lucius que contrastavam com sua pele clara. Sofia não queria assustá-lo. No entanto imaginava o quanto ele ficaria transtornado e nervoso com a notícia. Infelizmente a revelação era inevitável, cedo ou tarde, tudo viria à tona.
- Estou grávida. – ela declarou sem cerimônias.
Por um breve instante, Lucius não lhe disse nada. Somente a encarou sem reação alguma. Parecia estar em uma batalha silenciosa com seus próprios pensamentos.
- Mas como? – ele balbuciava não acreditando no que acabara de escutar. Certamente aquela revelação seria o fim para os dois.
- Fique calmo meu amor! Eu sei que isso muda tudo. O que estávamos planejando há meses, não será mais possível. – ela sentou-se em um banquinho improvisado e prosseguiu com lágrimas nos olhos. - Com o bebê a caminho, não posso simplesmente passar pelo portal, eu e o bebê morreríamos durante a travessia.
- Poderíamos pedir ajuda para a tia Wilda, ela é muito poderosa, provavelmente, ela seria capaz de quebrar a magia dos portais.
Sofia já havia pensado nessa possibilidade. Tinha plena consciência de que seria a única escolha que lhe restava.
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Gisele de Assis (Entre o Amor e o Sacrifício)
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- Daqui a quanto tempo é que farei a barba?
e os anos a passarem, lentíssimos, sem nenhum pêlo nele, respondam-me que idade temos, uma mão cheia de gaivotas sobre a minha cabeça e os pinheiros de volta, o meu pai a humedecer o pincel, a girá-lo na caixa do sabão, a passeá-lo no lugar do bigode, a tirar uma das navalhas do
- Que idade tens?
estojo e sangue no lábio, a mãe dele procurou o algodão na lata, pingou-lhe em cima a tintura das feridas
- Só fazes asneiras não chores
o pai à mesa do jantar, que idade
- Cortaste-te?
temos, com medo que a mãe contasse, sem se atrever a olhá-la, e a colher a ascender da terrina da sopa, salvando-o
- Uma coisa insignificante já passou
vontade de saltar-lhe para o colo, beijá-la, chamar-lhe nomes ternos, não há nada melhor no mundo que o alívio, a vida cheia de cores, uma passadeira que se desenrolava à sua frente e havia de percorrer pairando, já passou que felicidade, uma coisa insignificante, não existem palavras mais bonitas, a mãe do meu pai piscou o olho ao meu pai enquanto o pai do meu pai desdobrava o guardanapo num vagar episcopal
- De que está a sorrir pai?
e uma voz de garoto, vinda das brumas anteriores a mim
- Coisas velhas menina
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António Lobo Antunes
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Uma loba matou um de seus filhotes que estava mortalmente ferido. Para mim foi como uma dura lição sobre a compaixão e a necessidade de permitir que a morte venha aos que estão morrendo. As lagartas cabeludas que caíam dos seus galhos e voltavam a subir, arrastando-se, me ensinaram a determinação. As cócegas do seu caminhar no meu braço me revelaram como a pele pode ter vida própria. Subir ao alto das árvores me mostrou como seria o sexo um dia.
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Clarissa Pinkola Estés (Women Who Run With the Wolves)
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Eu queria era dormir, dormi, dormir,
Longo dormir, meio sentindo em sono,
E dormir sempre, sem consciência ter
Do tempo, só do sono sonolento
E da vacuidade do meu ser;
Dormir sem vir a morte, nem sonhar
Mas dormir só dormir, sempre dormir.
Que hoje já de dormir desaprendi.
Cansado de pensar, a pensar fico,
E as noites longas, longas, longas, longas,
E o pálido raiar de inda doutro dia...
Inda outro dia que trará ainda
Uma outra noite e essa mais dias, mais...
Insone sentir isto, e o deslizar
Suave e horroroso do tempo.
Cai então sobre mim todo o horror claro
E nítido e visível do mistério,
E eu tal fico em abalo e em comoção
Que durmo — sim que durmo de pesar-me
Tudo de mais p'ra mais poder sentir.
Então durmo... e antes eu não dormisse
Porque desordenadas incoerências
Mas não visões, só abstracções terríveis
(...)
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Fernando Pessoa