“
A poesia está guadarda nas palavras - é tudo que
eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a reladidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossa).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.
”
”
Manoel de Barros (Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo)
“
então me vens e me chegas e me invades e me tomas e me pedes e me perdes e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos e abres a boca para libertar novas histórias e outra vez me completo assim, sem urgências, e me concentro inteiro nas coisas que me contas, e assim calado, e assim submisso, te mastigo dentro de mim enquanto me apunhalas com lenta delicadeza deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida, que nada devo esperar além dessa máscara colorida, que me queres assim porque é assim que és...
À beira do mar aberto
”
”
Caio Fernando Abreu (Os Dragões não Conhecem o Paraíso)
“
A vida é cruel por ter inventado a memória. Como os velhos que recobram em matizes suas lembranças mais antigas, à beira da morte minha memória gravita em torno do sol, e como ele clareia tudo! Tudo é presente, nada está perdido. É como uma força oculta que nos impele para nos estimular de novo: diante da evidência de que não mais haverá futuro, o passado se amplifica, suas raízes engrossam, tudo em mim é rizosfera, as cores se cristalizam sobre cada estrato, a mais insignificante imagem toca o seu absoluto, o coração bate em crescendo.
”
”
Frida Kahlo
“
Morrerão milhares, Morrerão centenas de milhares, Morrerão centenas de milhares de homens e mulheres, a terra encher-se-á de gritos de dor, de uivos e roncos de agonia, o fumo dos queimados cobrirá o sol, a gordura deles rechinará sobre as brasas, o cheiro agoniará, e tudo isto será por minha culpa, Não por tua culpa, por tua causa, Pai, afasta de mim este cálice, Que tu o bebas é a condição do meu poder e da tua glória, Não quero esta glória, Mas eu quero esse poder.
”
”
José Saramago (O Evangelho Segundo Jesus Cristo)
“
Tanto tenho vivido sem ter vivido! Tanto tenho pensado sem ter pensado! Pesam sobre mim mundos de violências paradas, de aventuras tidas sem movimento. Estou farto do que nunca tive nem terei, tediento de deuses por existir. Trago comigo as feridas de todas as batalhas que evitei… Em mim o que há de primordial é o hábito e o jeito de sonhar.
”
”
Fernando Pessoa (Livro do Desassossego, Vol. I)
“
Nem imagina como fico triste de cada vez que oiço um baloiço a ranger. Quando vejo as crianças a subirem pelos ares, caio de joelhos sobre o meu passado. Para mim, um baloiço era um sinónimo de felicidade. Um motor, uma máquina de fazer sorrir. Mas, de repente, como todas as máquinas, deixou de trabalhar. O baloiço enferrujou e acabou por desaparecer do meu mundo, como acontece à felicidade.
”
”
Afonso Cruz (O Pintor Debaixo do Lava-Loiças)
“
Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
”
”
Mário de Sá-Carneiro
“
Povoamento
No teu amor por mim há uma rua que começa
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera
”
”
Ruy Belo
“
O avião tremeu enquanto descia e apertei os braços da cadeira.
Não estava assustada com a aterragem. Pelo menos, não desse tipo de aterragem. Tinha medo de aterrar com os meus dois pés no chão e sentir o peso dos meus pesadelos caírem sobre mim. Era agora ou nunca. Teria de os enfrentar.
”
”
Patricia Morais (Sombras)
“
Todos os que afirmam saber as coisas sobre as quais medito, seja por tê-las ouvido de mim, seja por tê-las ouvido de outros, seja por tê-las descoberto sozinhos, não é possível, segundo meu parecer, que tenham entendido algo desse objeto. Sobre essas coisas não existe um texto escrito meu nem existirá jamais.
”
”
Plato
“
Digo-te, ó sagrado Baal do céu, que não existes. Mas, se existisses, eu te amaldiçoaria de tal modo que esse teu céu palpitaria com o fogo do inferno. Em verdade te digo: ofereci-te meus serviços e tu os recusaste; repeliste-me, e hoje eu te viro as costas para sempre, pois nunca soubeste conhecer a hora da Visitação. Em verdade te digo: sei que vou morrer, e, não obstante, com a morte diante dos olhos, eu te desprezo, ó celeste Ápis. Empregaste contra mim a força, e não sabes que jamais me dobrei perante a adversidade. Pois deverias sabê-lo. Por acaso dormias quando plasmaste meu coração? Em verdade te digo: durante toda a vida, cada gota de sangue em minhas veias sentirá alegria em desprezar-te e escarnecer de tua Graça. A partir deste momento, renuncio a ti, a tuas pompas e tuas obras; lançarei o anátema sobre meu pensamento, se jamais ele te pensar; arrancarei os lábios se jamais eles pronunciarem teu nome. Se existires, digo-te a última palavra da vida e da morte: digo-te adeus. Depois, calo-me, viro-te as costas e sigo meu caminho.
”
”
Knut Hamsun (Hunger)
“
Até mesmo hoje, vários anos depois, partes de mim ainda se desmancham sobre o reverberar daquela dor.
”
”
Filipe Russo (Caro Jovem Adulto)
“
Charlotte,
Se tiveres mais alguma pergunta sobre Bridgehampton, não hesites em escrevê-la no ar para mim.
Reed
”
”
Penelope Ward (Hate Notes)
“
E o que significa a palavra qualidade? Para mim significa textura. Este livro tem poros. Tem feições. Este livro poderia passar pelo microscópio. Você encontraria vida sob a lâmina, emanando em profusão infinita. Quanto mais poros, quanto mais detalhes de vida fielmente gravados por centímetro quadrado você conseguir captar numa folha de papel, mais "literário" você será. Pelo menos essa é minha definição. Detalhes reveladores. Detalhes frescos. Os bons escritores quase sempre tocam a vida. Os medíocres apenas passam rapidamente a mão sobre ela. Os ruins a estupram e a deixam para as moscas. Entende agora por que os livros são odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida. Os que vivem no conforto querem apenas rostos com cara de lua de cera, sem poros nem pêlos, inexpressivos.
”
”
Ray Bradbury (Fahrenheit 451)
“
Seja como for, as pessoas dedicadas à religião não querem reconhecer a realidade que contradiz o seu conto de fadas. Se realmente vivermos num universo sem Deus, elas perdem o emprego. O fluxo de dinheiro estagna.
Por outro lado, há pessoas que escolhem viver a sua vida de uma forma completamente egocêntrica e homicida. Essas sentem que, se nada importa e elas podem fazer o que querem sem sofrer consequeências, vão fazê-lo. Mas também podemos ver as coisas de outra maneira: estamos nós e os outros todos, vivos e num barco salva-vidas, e temos de fazer as coisas da maneira mais decente possível para nós e para eles. A mim parece-me que esta seria uma forma de viver muito mais morale "cristã": reconhecermos a terrível verdade da existência humana e, perante isso, ainda escolhermos ser humanos decentes em vez de nos iludirmos sobre a existência de uma qualquer recompensa paradisíaca ou um qualquer castigo infernal. Parecia-me uma atitude muito mais nobre. Se há recompensa, castigo ou qualquer tipo de pagamento e agimos bem, então não estamos a fazer por razões muito nobres - os chamados princípios cristãos. É como os bombistas suicidas que agem alegadamente de acordo com princípios religiosos ou nacionais bastante nobres quando, na verdade, as suas famílias recebem uma recompensa em dinheiro e congratulam-se com um legado heróico - já para não falar da promessa de virgens para os perpetradores, embora me passe completamente ao lado como é que alguém prefere um grupo de virgens a uma mulher altamente experiente.
”
”
Woody Allen (Conversations with Woody Allen: His Films, the Movies, and Moviemaking)
“
Tu sabias perfeitamente, Egito, que em teu leme com fio atado o coração eu tinha, e que me levarias arrastado. Tinhas consciência da supremacia que sobre mim exerces e que a um simples aceno teu eu infringira as ordens dos próprios deuses.
”
”
William Shakespeare
“
Você não sabe nada sobre mim. Você me vê. Mas não me enxerga. Todos me veem. Mas ninguém tem a menor ideia da tempestade que se forma dentro de mim. É meu pequeno inferno secreto e privado. Vivo com ele, durmo com ele. Adoro que ninguém saiba.
”
”
André Aciman (Enigma Variations)
“
Meu Deus, não sou muito forte, não tenho muito além de uma certa fé - não sei se em mim, se numa coisa que chamaria de justiça-cósmica ou a-coerência-final-de-todas-as-coisas. Preciso agora da tua mão sobre a minha cabeça. Que eu não perca a capacidade de amar, de ver, de sentir. Que eu continue alerta. Que,
se necessário, eu possa ter novamente o impulso do vôo no momento exacto. Que eu não me perca, que eu não me fira, que não me firam, que eu não fira ninguém. Livra-me dos poços e dos becos de mim, Senhor. Que meus olhos saibam continuar se alargando sempre. Sinto uma dor enorme de não ser dois e não poder assim um ter partido, outro ter ficado com todas aquelas pessoas.
Volta a pergunta maldita: terei realmente escolhido certo? E o que é o "certo"? Digo que todo caminho é caminho, porque nenhum caminho é caminho. Que aqui ou lá - London, London, Estocolmo, Índia - eu continuaria sempre perguntando. Minhas mãos transpiram, transpiram. O nariz seco por dentro. Não quero escrever mais nada hoje.
”
”
Caio Fernando Abreu (Ovelhas Negras)
“
…ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.
”
”
Charles Baudelaire
“
Estou espantado, desiludido, satisfeito comigo. Estou triste, abatido, entusiasmado. Sou também tudo isso e não sou capaz de fazer a soma. Não estou em condições de determinar um valor ou não-valor definitivo, não tenho um juízo sobre mim e sobre a minha vida. Não tenho a certeza absoluta de nada.
”
”
C.G. Jung (Memories, Dreams, Reflections)
“
Considerando-se tudo aquilo com que se espera que as mulheres convivam — os olhares lascivos que começam quando mal entramos na puberdade, o assédio, a violência à qual sobrevivemos ou contra a qual estamos sempre em guarda —, não posso deixar de me perguntar qual é o efeito de tudo isso sobre nós. Não apenas em relação a como as mulheres vivenciam o mundo, mas a como vivenciamos a nós mesmas. Passei a me questionar: Quem eu seria se não vivesse em um mundo que odeia as mulheres? Não consegui encontrar uma resposta satisfatória, mas percebi que há muito tempo venho guardando luto por essa versão de mim mesma que nunca existiu
”
”
Jessica Valenti (Objeto sexual: Memórias de uma feminista (Portuguese Edition))
“
Naquele momento, uma parte de mim desejava de fato discutir com ele sobre o mal que, enquanto você acha que está sendo boa, aos poucos ou de repente, se espalha pela cabeça, pelo estômago, por todo o corpo. De onde isso nasce, papai - eu queria perguntar -, como podemos controlar, e por que esse mal não elimina o bem, mas convive com ele.
”
”
Elena Ferrante (The Lying Life of Adults)
“
Enquanto escreve, é como se me estivesse a desenhar, ou não a desenhar-me, a desenhar sobre mim, sobre a minha pele, não com o lápis que usa, mas com uma pena de pato antiquada, e não com a extremidade do cálamo mas com a da penugem.
Como se centenas de borboletas me tivessem poisado na cara e estivessem a abrir e fechar suavemente as asas.
”
”
Margaret Atwood (Alias Grace)
“
Adquiri a capacidade de administrar o sono, ficar adormecido e despertar no momento designado. Se eu faço algo que não entendo, me obrigo a pensar em meu sonho para encontrar assim uma solução. A quinta condição de ajuste é a memória. Talvez, na maioria das pessoas, o cérebro é o guardião dos conhecimentos sobre o mundo e o conhecimento adquirido através da vida. Meu cérebro está ocupado em coisas mais importantes que recordar, está recolhendo o que se requer em um momento dado, isto é, tudo o que nos rodeia. Só há que interiorizá-lo. Tudo o que vimos uma vez, escutamos, lemos e aprendemos, nos acompanha na forma de partículas de luz. Para mim, estas partículas são obedientes e fiéis.
”
”
Nikola Tesla
“
Tem mais presença em mim o que me falta.
”
”
Manoel de Barros (Livro sobre nada)
“
Preciso mais do que um protetor com as asas sempre prontas a se estenderem sobre mim. Nunca estive tão segura e ao mesmo tempo nunca me senti tão insegura. Para que eu alcance o inatingível e possa provar aos meus sentidos que amar o sobrenatural é natural, Nate precisa amanhecer um lado para que o outro anoiteça. Eu preciso ver o homem que se eclipsa na sombra do anjo.
”
”
Lu Piras
“
A palavra falada, tal como a palavra escrita não me saem facilmente e muito menos quando tenho de me expressar sobre mim mesmo ou sobre o meu trabalho. (...) Aquele que pretende saber algo sobre mim - na qualidade de artista porque apenas esta minha faceta é digna de interesse - deve olhar atentamente para os meus quadros e tentar depreender deles o que sou e o que pretendo.
”
”
Gustav Klimt
“
(...) e às vezes ele mandava-me ir buscar o almoço ao restaurante, para que ele não pensasse porventura que lhe apresentava uma dose pequena porque pelo caminho tinha mandado abaixo metade dela, quando a dose me parecia pequena, eu próprio, com o meu último dinheiro, comprava mais uma para que o senhor primeiro-tenente enchesse a barriga e não pensasse nada de mau sobre mim.
”
”
Jaroslav Hašek (The Good Soldier Švejk)
“
Eu, ainda que diante de Vós me despreze e me tenha em conta de terra e cinza, sei de Vós algumas coisas que não conheço de mim [...]. Sei que em nada podeis ser prejudicado, mas ignoro a que tentações posso ou não posso resistir.
”
”
Augustine of Hippo
“
A comunidade amaldiçoa-me dia e noite, exortam a ira de Deus a recair sobre mim por toda a eternidade, pedem que todas as maldições contidas nas leis divinas me sejam infligidas, desejam que o meu nome desapareça para sempre do planeta, proíbem que quem quer que seja mantenha comigo qualquer tipo de relação, privada ou profissional, recusam compartilhar tecto comigo, e enfim proíbem que se aproximem a menos de quatro côvados de mim. Finalmente posso tornar-me um filósofo livre.
”
”
Baruch Spinoza
“
Dedico-me à tempestade de Beethoven. A vibração das cores neutras de Bach. A Chopin que me amolece os ossos. A stravinsky que me espantou e com quem voei em fogo. Â morte e transfiguração, em que Richard Strauss me revela um destino? Sobretudo, dedico-me às vesperas de hoje e a hoje, ao trasnparente véu de Debussy, a Marlos Nobre, a Prokofiev,a Carl Orf, a Schönngberg, aos dodecafônicos, aos gritos rascantes dos eletronicos - a tonas esses que em mim atigiram zonas assutadoramente inesperadas, todos esses profetas do presente e que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponte de eu neste instante explodir em : eu. Esse eu que é vós pois não aguento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter de pé, tão tonto que sou, eu enviesado, enfim que é que se há de fazer senão meditar para cair naquele vazio pleno que só se atinge com a meditação. Meditar não precisa de ter resultados: a meditação pode ter como fim apenas ela mesma. Eu medito sem palavras e sobre o nada. O que me atrapalha a vida é escrever.
”
”
Clarice Lispector (The Hour of the Star)
“
Mas o que era isso que querias aprender com doutrinas e com mestres e que eles, que tanto te ensinaram, não te podiam ensinar?"
E compreendeu: "Era o Eu, cujo sentido e natureza eu queria conhecer. Era o Eu, de que eu queria libertar-me, que eu queria vencer. Mas não fui capaz de o vencer, apenas de o enganar, de fugir dele, esconder-me dele. Na verdade, nada no mundo ocupou tanto os meus pensamentos como este Eu, este enigma, o facto de eu estar vivo, de existir separado e isolado dos outros(...)E sobre nada no mundo sei tão pouco como sobre mim próprio.
”
”
Hermann Hesse (Siddhartha)
“
Engana-se, Estella! Faz parte de minha vida desde que a conheci, faz parde de mim mesmo! Eu a vi em cada linha que li depois da primeira vez que aqui vim, sendo ainda um pobre menino grosseiro e vulgar, um menino cujo coração feriu. Desde então esteve em todos os meus sonhos de futuro. No rio, nas velas dos navios, nos pântanos, nas nuvens, na luz, nas sombras no vento, no mar, nos matos e nas ruas foi a personificação de todas as fantasias graciosas que meu espírito concebeu. As pedras com que se construíram os mais sólidos edifícios de Londres não são mais reais do que a sua influência sobre mim. E lhe seria mais fácil deslocá-las com suas mãos de mulher do que afastar da minha vida a sua presença constante e sua influência. Aqui em toda parte. Hoje e sempre, Estella. Até a última hora da minha vida, Estella, viverá no íntimo do meu ser, será uma parte do pouco do bem e do pouco do mal que há em mim. Mas quando estivermos longe um do outro, nas minhas recordações eu a associarei sempre ao bem, só ao bem, porque deve me ter feito muito mais bem do que mal. Apesar do sofrimento atroz que agora sinto... Oh! que Deus a guarde! que Deus a Perdoe.
”
”
Charles Dickens (Great Expectations)
“
Sou assediada pelo medo, Aurel! Tenho medo daquilo que os homens da Igreja possam um dia fazer a mulheres como eu. Não apenas porque somos mulheres - porque Deus criou-nos mulheres. Mas porque tentamos a vocês, que são homens - pois Deus criou-os homens. Achas que Deus ama os eunucos e castrados acima daqueles homens que amam uma mulher. Então cuida como louvas a obra de Deus, pois ele não criou o homem para se castrar.
Não posso esquecer o que aconteceu em Roma, e não penso mais em mim, pois não foi sobre mim que desencadeaste tua ira naquele dia. Foi sobre Eva, Excelência Reverendíssima, sobre a mulher. E aquele que faz mal a alguém ameaça a todos.
Tremo, pois temo o dia que virá quando mulheres como eu serão liquidadas pelos homens da Igreja universal. E por que serão liquidadas, Excelência Reverendíssima? Porque lembrar a vocês o fato de terem renegado suas próprias almas e seus próprios dons. E em nome de quê? De um Deus, dizem vocês todos, daquele que criou um céu acima de vocês e também uma terra onde realmente estão as mulheres que os trazem ao mundo.
Se Deus existe, que ele te perdoe. Mas talvez venhas a ser julgado um dia por todas as alegrias da vida a que deste as costas. Renuncias ao amor entre homem e mulher. Isso talvez possa ser perdoado. Mas o fazes em nome de Deus.
A vida é curta, e sabemos muito pouco. Mas se foi por tua ordem que me deram tuas confissões para ler aqui em Cartago, a resposta é não. Não me deixarei batizar, Excelência Reverendíssima. Não é a Deus que temo. Sinto que já vivo com ele, e, afinal, não foi ele que me criou? Nem é o Nazareno que me detém, ele era provavelmente um homem de Deus de fato. E não era ele também justo com as mulheres? É dos teólogos que tenho medo. Que o Deus do Nazareno te perdoe por toda a ternura e todo o amor que proscreveste.
[Flória Emília foi mulher de Aurélio Agostinho, o Santo Agostinho, por 12 anos antes de ser abandonada]
”
”
Jostein Gaarder (Vita Brevis: A Letter to St Augustine)
“
Minha mãe se reduzira a quase nada, no entanto tinha sido realmente um estorvo, pesara sobre mim fazendo com que eu me sentisse como um verme debaixo da pedra, protegida e esmagada. Desejei que sua agonia terminasse imediatamente, agora, e para meu espanto foi o que aconteceu. De repente o quarto ficou silencioso. Esperei, não tive forças para me levantar e ir até ela. Depois a língua de Imma estalou e o silêncio se rompeu. Deixei a cadeira, me aproximei da cama. Nós duas — eu e a pequena, que no sono estava buscando avidamente meu mamilo para sentir-se ainda parte de mim — éramos, naquele espaço de doença, tudo o que de vivo e de são ainda permanecia dela.
”
”
Elena Ferrante (The Story of the Lost Child (Neapolitan Novels, #4))
“
Há cerca de seis semanas, o médico permitiu que eu comesse pão branco em vez do grosseiro pão preto que servem na prisão. É uma iguaria deliciosa. Talvez pareça estranho que alguém possa considerar um pedaço de pão seco uma fina iguaria, mas para mim ele é de tal forma delicioso que ao fim de cada refeição recolho e devoro cuidadosamente todas as migalhas que possam ter caído no meu prato de estanho ou sobre o pedaço de tecido áspero que usamos como toalha para não sujar a mesa. E não o faço porque tenha fome – pois agora recebo comida suficientemente – mas simplesmente para não desperdiçar nada daquilo que me foi dado. E é assim que deveríamos fazer também com o amor.
”
”
Oscar Wilde (De Profundis)
“
Escrever é projectar-se além da Vida,
É vencer a morte.
Um dia esta virá, de surpresa, ou tardia,
Mas uma coisa não levará, não reduzirá a cinzas,
E sobre ela a sua álgida mão não terá poder.
Ó morte, eu sei que tu me aniquilarás,
Mas não destruirás esta página
em que escrevo o teu nome,
O teu nome odiado e cruel.
Quantos seres derrubaste em volta de mim!
A todos apavoras.
Mas outras vidas há que não estão à tua mercê,
E essas, que nós criamos
Com a música das nossas palavras,
Com a febre do nosso espírito,
Com a ambição do nosso sonho,
Essas - sobreviver-nos-ão
E o teu amplexo não as envolverá.
O que fica do artista, para além dele, não te pertence;
Basta que nós te pertençamos.
”
”
Joaquim Paço d'Arcos
“
Enfim, encontrei esse trecho de uma carta que ele escreveu para Laurens, e me fez pensar em você. E em mim, acho:
"A verdade é que sou um homem honesto e desafortunado, que falo meus sentimentos a todos e com ênfase. Digo isso a você
porque você sabe e não me acusará de vaidade. Odeio o Congresso — odeio o Exército — odeio o mundo — me
odeio. São todos uma multidão de tolos e patifes; quase à exceção de você..."
Pensar sobre história me fez questionar como vou entrar para ela algum dia, acho. E você também. Meio que queria que as
pessoas ainda escrevessem desse jeito.
História, hein? Aposto que poderíamos fazer.
Com carinho, seu, enlouquecendo lentamente,
Alex, Primeiro-Filho do Sacrilégio contra os Pais Fundadores
”
”
Casey McQuiston (Red, White & Royal Blue)
“
Uma menininha de cabelo ruivo corre até a mesa da entrada, rindo e quase se sufocando com um emaranhado de fios verdes.
Um belo cachecol? Ela sorri, saltitante.
— Olá — digo. — Posso-te perguntar uma coisa? — Ela ri e balança a cabeça. — Como farias para encontrar uma agulha num palheiro?
A menina para, pensativa, puxando o fio verde em torno do pescoço. Na realidade, ela está a pensar sobre o problema. Pequenas engrenagens estão funcionando. Ela retorce os dedinhos juntos, refletindo. É muito fofa. Por fim, ela olha para mim e diz com seriedade.
— Eu pediria à palha para encontrar a agulha. — Então, emite um guincho fantasmagórico baixo e sai pulando em um pé só.
Um gongo antigo da dinastia Song ribomba na minha cabeça. Sim, claro. Ela é um génio!
”
”
Robin Sloan (Mr. Penumbra's 24-Hour Bookstore (Mr. Penumbra's 24-Hour Bookstore, #1))
“
à noite, depois do chá, refugiava-me no oratório, como numa fortaleza de santidade, embebia os meus olhos no corpo de ouro de Jesus, pregado na sua linda cruz de pau preto. Mas então o brilho fulvo do metal precioso ia, pouco a pouco, embaciando, tomava uma alva cor de carne, quente e tenra; a magreza de Messias triste, mostrando os ossos, arredondava-se em formas divinamente cheias e belas; por entre a coroa de espinhos, desenrolavam-se lascivos anéis de cabelos crespos e negros; no peito, sobre as duas chagas, levantavam-se, rijos, direitos, dous esplêndidos seios de mulher, com um botãozinho de rosa na ponta; e era ela, a minha Adélia, que assim estava no alto da cruz, nua, soberba, risonha, vitoriosa, profanando o altar, com os braços abertos para mim!
”
”
Eça de Queirós (A Relíquia)
“
(…) Havia lá algo escrito a negro, que eu ainda não conhecia.
Not broken, just bent.
Levantei o dedo e passei-o sobre as linhas. O Kaden estremeceu, contudo não se moveu nem um centimetro.
- O que é isso? - perguntei num murmúrio, erguendo o olhar. O Kaden pareceu inseguro.
- As tuas palavras - respondeu, também em voz baixa. Tinha os olhos escuros e cheios de sentimento. - As palavras que me fizeram voltar a acreditar em mim mesmo, As palavras que me levaram ao limite, porque eu não conseguia imaginar que alguém me visse realmente como tu me vês. - Faltou-lhe a voz, e engoliu em seco.
Lembrei-me daquele dia junto à cascata. Da nossa conversa, de todos os sinais ocultos que ele me tinha enviado. De tudo o que ele me tinha confiado e eu lhe tinha confiado.
Tu não estás avariado, Kaden. Só um pouco empenado. Não é nada que não se possa arranjar.
”
”
Mona Kasten (Begin Again (Again, #1))
“
Para mim isso prova que a vida e o tempo não estão em sincronia. É como se o tempo estivesse sempre errado e a vida da esposa tivesse sido vivida na margem errada ou, pior ainda, em duas margens, e nenhuma das duas era a certa. Talvez ninguém queira admitir que leva a vida em vias paralelas, mas todo mundo vive muitas vidas, uma escondida por baixo, ou mesmo ao lado, da outra. Algumas esperam sua vez porque ainda não foram vividas, enquanto outras morrem antes que tenham se concluído. Umas ainda estão esperando para ser revividas porque não foram vividas o suficiente. Não sabemos como pensar sobre o tempo, porque ele não se entende como nós o entendemos. Ele na verdade não está nem aí para o que pensamos a seu respeito, porque ele é só uma metáfora oscilante e duvidosa para nosso modo de pensar a vida. No fim das contas, não é o tempo que é errado para nós, ou nós para ele. Talvez a própria vida seja errada.
”
”
André Aciman (Find Me (Call Me By Your Name, #2))
“
Mas a exclusão, que me impus, dos fins e dos movimentos da vida; que procurei, do meu contacto com as coisas — levou-me precisamente àquilo q que eu procurava fugir. Eu não queria sentir a vida, nem tocar as coisas, sabendo, pela experiência do meu temperamento em contágio do mundo, que a sensação da vida era sempre dolorosa para mim. Mas ao evitar esse contacto, isolei-me, e, isolando-me, exacerbei a minha sensibilidade já excessiva. Se fosse possível cortar de todo o contacto com as coisas, bem iria à minha sensibilidade. Mas esse isolamento total não pode realizar-se. Por menos que eu faça, respiro; por menos que aja, movo-me. E, assim, conseguindo exacerbar e minha sensibilidade pelo isolamento, consegui que os factos mínimos, que antes mesmo a mim nada fariam, me ferissem como catástrofes. Errei o método de fuga. Fugi, por um rodeio incômodo, para o mesmo lugar onde estava, com o cansaço da viagem sobre o horror de viver ali.
”
”
Bernardo Soares (The Book of Disquiet: The Complete Edition)
“
A primeira: você sabe por que livros como este são tão importantes? Porque têm qualidade. E o que significa a palavra qualidade? Para mim significa textura. Este livro tem poros. Tem feições. Este livro poderia passar pelo microscópio. Você encontraria vida sob a lâmina, emanando em profusão infinita. Quanto mais poros, quanto mais detalhes de vida fielmente gravados por centímetro quadrado você conseguir captar numa folha de papel, mais “literário” você será. Pelo menos, esta é a minha definição. Detalhes reveladores. Detalhes frescos. Os bons escritores quase sempre tocam a vida. Os medíocres apenas passam rapidamente a mão sobre ela. Os ruins a estupram e a deixam para as moscas. Entende agora por que os livros são odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida. Os que vivem no conforto querem apenas rostos com cara de lua de cera, sem poros nem pelos, inexpressivos. Estamos vivendo num tempo em que as flores tentam viver de flores, e não com a boa chuva e o húmus preto.
”
”
Ray Bradbury (FARENHIET 451)
“
Da economia do tempo - Sêneca saúda o amigo Lucílio
Comporta-te assim, meu Lucílio, reivindica o teu direito sobre ti mesmo e o tempo que até hoje foi levado embora, foi roubado ou fugiu, recolhe e aproveita esse tempo. Convence-te de que é assim como te escrevo: certos momentos nos são tomados, outros nos são furtados e outros ainda se perdem no vento. Mas a
coisa mais lamentável é perder tempo por negligência.
Se pensares bem, passamos grande parte da vida agindo mal, a maior parte sem fazer nada, ou fazendo algo diferente do que se deveria fazer.
Podes me indicar alguém que dê valor ao seu tempo, valorize o seu dia, entenda que se morre diariamente? Nisso, pois, falhamos: pensamos que a morte é coisa do futuro, mas parte dela já é coisa do passado.
Qualquer tempo que já passou pertence à morte.
Então, caro Lucílio, procura fazer aquilo que me escreves: aproveita todas as horas; serás menos dependente do amanhã se te lançares ao presente. Enquanto adiamos, a vida se vai. Todas as coisas, Lucílio, nos são alheias; só o tempo é nosso. A natureza deu-nos posse de uma única coisa fugaz e escorregadia, da qual qualquer um que queira pode nos privar. E é tanta a estupidez dos mortais que, por coisas insignificantes e desprezíveis, as quais certamente se podem recuperar,
concordam em contrair dívidas de bom grado, mas ninguém pensa que alguém lhe deva algo ao tomar o seu tempo, quando, na verdade, ele é único, e mesmo aquele que reconhece que o recebeu não pode devolver esse tempo de quem tirou.
Talvez me perguntes o que faço para te dar esses conselhos. Eu te direi francamente: tenho consciência de que vivo de modo requintado, porém cuidadoso. Não posso dizer que não perco nada, mas posso dizer o que perco, o porquê e como; e te darei as razões pelas quais me considero miserável. No entanto, a mim acontece o que ocorre com a maioria que está na miséria não por culpa própria: todos estão prontos a desculpar, ninguém a dar a mão.
E agora? A uma pessoa para a qual basta o pouco que lhe resta, não a considero pobre. Mas é melhor que tu conserves todos os teus pertences, e começarás em tempo hábil. Porque, como diz um sábio ditado, é tarde para poupar quando só resta o fundo da garrafa. E o que sobra é muito pouco, é o pior. Passa bem!
(Sêneca, em "Aprendendo a Viver - Cartas a Lucílio")
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Seneca (Letters from a Stoic)
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Amava Aida desde sempre, o nosso encontro aconteceu na eternidade. Só assim eu entendo que não saiba contar bem como tudo começou. Porque os factos não são indício de nada e o verdadeiro indício está antes e depois de todos os indícios. Há a minha infância, há a morte da minha mãe, mas no que se passa em mim estou só eu. E é dessa solidão absoluta que o absurdo nasceu. Rapidamente ultrapassei os limites da plenitude de um encontro que se basta, de duas mãos que se prendem, de dois olhares que se fitam. Rapidamente me interroguei sobre quem estava atrás desse olhar e dessas mãos e quis chegar até lá... É tão difícil explicar. É tão difícil e tão alto e tão fora da nossa medida, que estremeço de loucura e as minhas palavras se atropelam. Mas isto existe, como é possível que seja um erro? Há um além para lá de ti, da pessoa que vejo e está aqui e que é a pessoa que és. Trago em mim o apelo absoluto da identidade absoluta, a exigência da comunhão verdadeira. Porque eu sou de mais para mim - e tu. Jamais te saberei? Jamais tocarei com as minhas mãos a chama que arde em ti? Estamos cheios de prodígio, não é estúpido que o ignoremos? Para lá de todas as portas há uma porta ainda, e essa é que é a porta da nossa morada...
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Vergílio Ferreira (Estrela Polar)
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Não tinhas a mínima noção do que é o amor, Mayya? Não sentiste nada do que eu passei enquanto andava à volta da tua casa como um peregrino em volta da Caaba, uma, duas, sete vezes?
Como pôde a casa ter espaço suficiente para abrigar toda a minha paixão? Como é que a sua única varanda aguentou comigo, ali parado, sozinho, sob o peso de tanto amor, sem se partir ou cair na rua de terra batida, para ser levada pela brisa para os céus de Deus? Como é que aquele quartinho suportou as toneladas de nuvens que eu aí guardava, só para poder caminhar sobre elas? Como é que as paredes se mantiveram imóveis e inabaláveis, sem tremer uma única vez com o tormento da minha insustentável felicidade?
Mas tudo ficou no seu lugar, apesar de eu não ter lugar. As portas não saíram dos seus gonzos, apesar de o meu corpo abatido estar crivado pelas balas vivas do amor desesperado. As janelas não se partiram, ainda que as minhas asas batessem violentamente contra o vidro, com força suficiente para voar da janela da frente até à mancha mais distante no horizonte. A casa foi suficientemente grande para me conter, para sufocar o grito de desejo que ecoava dentro de mim.
Como foi então possível, Mayya, que os teus olhos, fixos na tua máquina de costura, nunca conseguissem ver a dimensão imensa e tortuosa do meu amor, e o meu eu aprisionado?
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Jokha Alharthi (Celestial Bodies)
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Porque, não importa o que diga, a linha sobre a qual caminhava, de recta que talvez fosse, tinha passado a curva desde que me viu, e eu apercebi-me do momento exacto em que me viu pelo momento exacto em que o seu caminho se tornou curvo, e não uma curva que o afastasse de mim, mas uma curva para vir ter comigo, senão nunca nos teríamos encontrado, mas teria antes afastado ainda mais de mim, porque você estava à andar à velocidade de alguém que caminha de um ponto para outro; e eu nunca o teria apanhado porque eu só caminho lentamente, calmamente, quase imóvel, com o passo de alguém que não vai de um ponto para o outro mas que, num lugar imutável, espreita quem passa à sua frente e espera que modifique ligeiramente o seu percurso. E se eu digo que fez uma curva, e como sem dúvida há-de dizer que era um desvio para me evitar, ao que eu afirmarei, em resposta, que foi um movimento para se aproximar, sem dúvida que isso é assim porque no fim de contas você não se desviou, que qualquer linha recta só existe em relação a um plano, que nós nos movemos segundo dois planos distintos, e que no fim de contas só existe o facto que você olhou para mim e que eu interceptei esse olhar ou o inverso, e que, à partida, de absoluta que era, a linha segundo a qual você se movia tornou-se relativa e complexa, nem recta nem curva, mas fatal.
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Bernard-Marie Koltès (Dans la solitude des champs de coton)
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O que há é que estou resolvido a sumir. Eu sei que sou um desfavorecido da
natureza. Estive doente durante 24 anos, desde o meu nascimento até
completar 24 anos. Deve tomar tudo quanto eu digo agora como coisa de
um homem doente. Vou-me embora, imediatamente, imediatamente. Pode
ficar certa disso. Não me sinto envergonhado, não, pois seria estranho que
eu estivesse envergonhado disso, não seria? Mas estou deslocado na
sociedade… Falo, não por vaidade ferida!… Estive refletindo durante estes
três dias e achei cá comigo que lhe devia explicar certas coisas
sinceramente e de modo bem digno para com a senhora, na primeira
oportunidade que eu tivesse. Há ideias, grandes ideias, sobre as quais eu
não devo começar a falar, porque na certa faria todo o mundo rir. O Príncipe
Chtch… ainda agora me avisou sobre tal coisa. Minha atitude não é
conveniente. Não tenho nenhum senso de proporção. Minhas palavras são
incoerentes, não se enquadrando no assunto; e isso é uma degradação para
tais ideias. Portanto, não tenho nenhum direito!… Além disso, sou sensível
morbidamente… Estou mais do que certo de que ninguém, aqui nesta casa,
feriria meus sentimentos e que sou mais querido aqui do que mereço. Mas
eu sei (e sei ao certo) que vinte anos de doença devem deixar traços, e que
por conseguinte é impossível a qualquer pessoa deixar de rir de mim… às
vezes… Não é assim, não é mesmo?
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Fyodor Dostoevsky (The Idiot)
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Algumas vezes eu imaginava o sangue enchendo um copo descartável. Eu podia escutar cada esguicho batendo contra as paredes enceradas do copo. Talvez 100 esguichos enchessem o copo; seriam apenas 50 segundos. Então eu pensava em como poderia cortar meus pulsos. A faca da cozinha? Aquela pequena e afiada, com o cabo preto? Ou uma lâmina de barbear? Mas não existem mais lâminas de barbear cortantes; somente aquelas lâminas injetadas, que são seguras. Eu nunca havia percebido o desaparecimento da lâmina de barbear. Acho que é assim que eu, também, desaparecerei. Sem estardalhaço. Talvez alguém vá pensar em mim em algum momento de fantasia, exatamente como pensei na extinta lâmina de barbear. Contudo, a lâmina não está extinta. Graças aos meus pensamentos, ela ainda vive. Sabe, não existe mais nenhuma pessoa viva, agora, que era adulta quando eu era criança. De modo que eu, como criança, estou morto. Em algum dia próximo, talvez em quarenta anos, não existirá mais ninguém vivo que tenha algum dia me conhecido. É quando estarei verdadeiramente morto, quando não existir na memória de ninguém. Eu pensei muito sobre uma pessoa muito velha, o último indivíduo vivo que conheceu alguém ou um grupo de pessoas. Quando essa pessoa velha morre, todo o grupo morre também, desaparece da memória viva. Eu gostaria de saber quem será essa pessoa para mim. A morte de quem me tornará verdadeiramente morto?
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Irvin D. Yalom (Love's Executioner and Other Tales of Psychotherapy)
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D’ENGENHO DE DENTRO (excertos)
12/10
eu queria escrever sobre ana, mas ainda é cedo, eu não sei, não sei se posso e, finalmente, vejo que não quero. sobre a vinda de mamãe e papai até aqui, também não: falta qualquer novidade a esse respeito – a não ser que valha a pena anotar que reencontrar papai depois de três anos é como reencontrar um velho amigo que não via há três dias; e reencontrar mamãe depois de dois anos é como ser apresentado a alguém cujo nome, fama e aventuras eu já conhecia de sobra e que, portanto, me pareceu estranha, distante, mítica. mais ou menos assim. mas prefiro escrever sobre este lugar e minha vida dentro dele. a melhor sensação é a de reconquistar inteiramente o anonimato no contato diário com meus pares de hospício. posso gritar: “meu nome é torquato neto, etc., etc.”; do outro lado uma voz sem dentes dirá: meu nome é vitalino; e outra: o meu é atagahy! aqui dentro só eu mesmo posso ter algum interesse: minhas aventuras, nem um pingo. meu nome podia ser, josé da silva – e de preferência, mas somente no que se refere a mim. a eles não interessa. O dr. Osvaldo não pode fugir. nem fingir: mas isso eu comecei a ver, de fato, logo mais quando teremos nossa primeira entrevista. o anonimato me assegura uma segurança incrível: já não preciso mais (pelo menos enquanto estiver aqui) liquidar meu nome e formar nova reputação como vinha fazendo sistematicamente como parte do processo autodestrutivo em que embarquei – e do qual, certamente, jamais me safarei por completo. mas sobre isso, prefiro dar mais tempo ao tempo: eu sou obrigado a acreditar no meu destino. (isso é outra conversa que só rogério entenderia). tem um livro chamado: o hospício é deus. eu queria ler esse livro. foi escrito, penso, neste mesmo sanatório. vou pedir a alguém para me conseguir esse livro.
13/10
eu: pronome pessoal e intransferível. viver: verbo transitório e transitivo, transável, conforme for. a prisão é um refúgio: é perigoso acostumar-se a ela. e o dr. Osvaldo? Não exclui a responsabilidade de optar, ou seja:?
20/10
É preciso não beber mais. Não é preciso sentir vontade de beber e não beber: é preciso não sentir vontade de beber.
É preciso não dar de comer aos urubus. É preciso fechar para balanço e reabrir. É preciso não dar de comer aos urubus. Nem esperanças aos urubus. É preciso sacudir a poeira.
É preciso poder beber sem se oferecer em holocausto. É preciso.
É preciso não morrer por enquanto. É preciso sobreviver para verificar. Não pensar mais na solidão de Rogério, e deixá-lo. É preciso não dar de comer aos urubus. É preciso enquanto é tempo não morrer na via pública.
4/4/71
Debaixo da tempestade
sou feiticeiro de nascença
atrás desta reticência
tenho o meu corpo cruzado
a morte não é vingança
7/4/71
– Foi um caminhão que passou. bateu na minha cabeça. aqui. isso aqui é péssimo, não me lembro de nada.
– Eles não deixam ninguém ficar em paz aqui dentro. são bestas. Não deixam a gente cortar a carne com faca mas dão gilete pra se fazer a barba.
– Pode me dar um cigarro? eu só tenho um maço, eu tenho que pedir porque senão acaba. Pode me dar as vinte.
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Torquato Neto (26 Poetas Hoje)
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Um imenso animal leiteiro aproximou-se da mesa de Zaphod Beeblebrox. Era um enorme e gordo quadrúpede do tipo bovino, com olhos grandes e protuberantes, chifres pequenos e um sorriso nos lábios que era quase simpático.
– Boa noite – abaixou-se e sentou-se pesadamente sobre suas ancas –, sou o Prato do Dia. Posso sugerir-lhes algumas partes do meu corpo? – Grunhiu um pouco, remexeu seus quartos traseiros buscando uma posição mais confortável e olhou pacificamente para eles.
Seu olhar se deparou com olhares de total perplexidade de Arthur e Trillian, uma certa indiferença de Ford Prefect e a fome desesperada de Zaphod Beeblebrox.
– Alguma parte do meu ombro, talvez? – sugeriu o animal. – Um guisado com molho de vinho branco?
– Ahn, do seu ombro? – disse Arthur, sussurrando horrorizado.
– Naturalmente que é do meu ombro, senhor – mugiu o animal, satisfeito –, só tenho o meu para oferecer.
Zaphod levantou-se de um salto e pôs-se a apalpar e sentir os ombros do animal, apreciando.
– Ou a alcatra, que também é muito boa – murmurou o animal. – Tenho feito exercícios e comido cereais, de forma que há bastante carne boa ali. – Deu um grunhido brando e começou a ruminar. Engoliu mais uma vez o bolo alimentar. – Ou um ensopado de mim, quem sabe? – acrescentou.
– Você quer dizer que este animal realmente quer que a gente o coma? – cochichou Trillian para Ford.
– Eu? – disse Ford com um olhar vidrado. – Eu não quero dizer nada.
– Isso é absolutamente horrível – exclamou Arthur -, a coisa mais repugnante que já ouvi.
– Qual é o problema, terráqueo? – disse Zaphod, que agora observava atentamente o enorme traseiro do animal.
– Eu simplesmente não quero comer um animal que está na minha frente se oferecendo para ser morto – disse Arthur. – É cruel!
– Melhor do que comer um animal que não deseja ser comido – disse Zaphod.
– Não é essa a questão – protestou Arthur. Depois pensou um pouco mais a respeito. – Está bem – disse –, talvez essa seja a questão. Não me importa, não vou pensar nisso agora. Eu só... ahn...
O Universo enfurecia-se em espasmos mortais.
– Acho que vou pedir uma salada – murmurou.
– Posso sugerir que o senhor pense na hipótese de comer meu fígado? Deve estar saboroso e macio agora, eu mesmo tenho me mantido em alimentação forçada há meses.
– Uma salada verde – disse Arthur, decididamente.
– Uma salada? – disse o animal, lançando um olhar de recriminação para ele.
– Você vai me dizer – disse Arthur – que eu não deveria comer uma salada?
– Bem – disse o animal –, conheço muitos legumes que têm um ponto de vista muito forte a esse respeito. E é por isso, aliás, que por fim decidiram resolver de uma vez por todas essa questão complexa e criaram um animal que realmente quisesse ser comido e que fosse capaz de dizê-lo em alto e bom tom. Aqui estou eu!
Conseguiu inclinar-se ligeiramente, fazendo uma leve saudação.
– Um copo d’água, por favor – disse Arthur.
– Olha – disse Zaphod –, nós queremos comer, não queremos uma discussão. Quatro filés malpassados, e depressa. Faz 576 bilhões de anos que não comemos.
O animal levantou-se. Deu um grunhido brando.
– Uma escolha muito acertada, senhor, se me permite. Muito bem – disse –, agora é só eu sair e me matar.
Voltou-se para Arthur e deu uma piscadela amigável.
– Não se preocupe, senhor, farei isso com bastante humanidade.
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Douglas Adams (The Restaurant at the End of the Universe (The Hitchhiker's Guide to the Galaxy, #2))
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Como se me afiguravam felizes e satisfeitos todos aqueles homens que eu encontrava no meu caminho! A vida, na verdade, era para eles como uma imensa sala de baile. Nem a sombra de uma preocupação nos seus olhares nem a mais leve aparência de cansaço nos seus gestos! Nunca, talvez, um pensamento inquietante, uma angústia misteriosa lhes teria perturbado as almas! E ao lado desta humanidade que se cruzava comigo, eu, jovem, quase virgem de experiência, já esquecera o que era felicidade! Lutei com este pensamento até me persuadir de que se cometia comigo uma cruel injustiça. Por que tinham sido os últimos meses tão terrivelmente duros para mim? Nem já me reconhecia tão pertinaz caíra sobre mim todo o gênero de inesperadas preocupações! Não me era possível sentar-me num banco, ir a qualquer parte, fosse onde fosse, sem ser vítima de imprevistas casualidades, de angustiosas humilhações que me obcecavam a imaginação e dispersavam aos quatro ventos as minhas resoluções. (...)
Continuando a analisar a minha vida, acabei por me convencer de que o fato de ter sido eu o eleito para expiar as faltas comuns da Humanidade constituía um ato arbitrário de Deus Nosso Senhor. Mesmo depois de ter encontrado um banco e de me sentar, ainda me obcecavam as sugestões desse pensamento, a ponto de me impedirem qualquer outra reflexão. Desde aquele dia de maio, em que haviam começado as minhas adversidades, era-me impossível seguir facilmente o rasto das minhas progressivas fraquezas. Empalideci subitamente e as minhas forças dificilmente continuaram concordando com os meus desejos, era como se um enxame de insetos mordedores e teimosos tivessem feito ninho no meu espírito.
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Knut Hamsun (Hunger)
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ele se deixava corroer pelos vermes de suas lembranças/ […] descanso minha cabeça entre essas palmas cheias de estrelas, cruzes e precipícios que um dia compuseram o meu destino./ Pois toda dor à qual nós nos abandonamos transforma-se em serenidade./ […] há muito foi mumificado pela mentira da glória./ Desperto cada noite sob o incêndio do meu próprio sangue./O respeito devido aos mártires acaba por enobrecer o instrumento ignóbil do suplício. Não basta amar as criaturas; é preciso adorar sua miséria, seu aviltamento, sua desgraça./[…] pareço-me com a Morte, a velha amante de Deus./A verdade é que Ele não me salvou nem da morte, nem dos males, nem do crime, porque é através deles que somos salvos. Salvou-me, porém, da felicidade./ Há seis dias, há seis meses… São passados seis anos, passar-se-ão seis séculos… Ah! Morrer para fazer parar o Tempo…[…]/ Falo-te em surdina porque só quando falamos em voz baixa escutamos a nós mesmos./ Toda vez que uma dor vinha até mim eu me apressava em sorrir-lhe para que ela me sorrisse em retribuição./ A ambição é apenas um logro. A sabedoria enganou-se. E o próprio vício mentiu. Não existe nem virtude, nem piedade, nem amor, nem pudor, nem os seus contrários, mas apenas uma concha vazia dançando no alto de uma alegria que é também a Dor, um clarão de beleza na tempestade das formas./ O amor é um castigo. Somos punidos por não termos podido permanecer sós…/ Pois, se o Tempo é o sangue dos vivos, a Eternidade deve ser o sangue das trevas./Criatura magnética, demasiado etérea para o solo, muito carnal para o céu, seus pés besuntados de cera romperam o pacto que nos une à terra./ Safo mergulha, tendo os braços abertos como para abraçar a metade do infinito./ Só se pode construir a felicidade sobre alicerces de desespero. Creio que vou poder começar a construir
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Marguerite Yourcenar (Fires)
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guia, Sra. Saeki, tem cerca de 45 anos e é magra. É também alta em comparação às demais mulheres da sua geração. Usa vestido verde com um cardigã creme claro jogado sobre os ombros. Seu porte é elegante. Seus cabelos, longos, estão arrebanhados frouxamente na nuca. O rosto é delicado e inteligente. Tem olhos bonitos. E também um sorriso suave como uma sombra brincando sempre em seus lábios. Um sorriso que não sei descrever direito, mas que me parece conclusivo. Lembra uma pequena e ensolarada poça de luz, de formato único e que só se encontra em lugares secretos. No jardim de minha casa em Nogata, havia um cantinho e uma poça semelhantes, e desde muito pequeno sempre os amei. A Sra. Saeki desperta em mim uma sensação forte, mas, ao mesmo tempo, de comovente nostalgia. Como seria bom se ela fosse minha mãe, penso eu. O mesmo pensamento me ocorre toda vez que vejo uma mulher bonita (ou apenas simpática) de meia-idade. Como seria bom se ela fosse minha mãe… Mas nem é preciso dizer, a chance da Sra. Saeki ser minha mãe é praticamente nula. Mas do ponto de vista teórico a possibilidade existe, embora mínima. Afinal, não conheço nem o rosto nem o nome da minha mãe. Em outras palavras, não existe nenhuma razão para ela não ser minha mãe. Da visita guiada participamos apenas eu e um casal de meia-idade proveniente de Osaka. A mulher é rechonchuda e usa óculos de grau forte. O marido é magro e seu cabelo, duro, parece ter sido deitado à força com cerdas de ferro. Os olhos finos e as maçãs de rosto largas trazem à mente certas figuras esculpidas de ilhas meridionais, sempre a fitar o horizonte com intensa ferocidade. A mulher assume a maior parte do diálogo; o marido apenas murmura respostas automáticas. Além disso, acena a cabeça em concordância, emite exclamações admiradas e vez ou outra resmunga palavras soltas, ininteligíveis. O vestuário de ambos é mais apropriado para escalar montanhas do que para visitar bibliotecas: colete impermeável cheio de bolsos, sapatos de meio-cano fechados
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Haruki Murakami (Kafka à Beira-Mar)
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- O quê? - fez indignado Flores, erguendo-se, num só e rápido movimento, da cadeira, e deixando a xícara sobre a mesa. - Pois tu não sabes quem sou eu, quem é Leonardo Flores? Pois tu não sabes que a poesia para mim é a minha dor e é a minha alegria, é a minha própria vida? Pois tu não sabes que tenho sofrido tudo, dores, humilhações, vexames, para atingir o meu ideal? Pois tu não sabes que abandonei todas as honrarias da vida, não dei o conforto que minha mulher merecia, não eduquei convenientemente meus filhos, unicamente para não desviar dos meus propósitos artísticos? Nasci pobre, nasci mulato, tive uma instrução rudimentar, sozinho completei-a conforme pude; dia e noite lia e relia versos e autores; dia e noite procurava na rudeza aparente das coisas achar a ordem oculta que as ligava, o pensamento que as unia; o perfume à cor, o som aos anseios de mudez de minha alma; a luz à alegoria dos pássaros pela manhã; o crepúsculo ao cicio melancólico das cigarras - tudo isto eu fiz com sacrifício de coisas mais proveitosas, não pensando em fortuna, em posição, em respeitabilidade. Humilharam-me, ridicularizaram-me, e eu, que sou homem de combate, tudo sofri resignadamente. Meu nome afinal soou, correu todo este Brasil ingrato e mesquinho; e eu fiquei cada vez mais pobre, a viver de uma aposentadoria miserável, com a cabeça cheia de imagens de ouro e a alma iluminada pela luz imaterial dos espaços celestes. O fulgor do meu ideal me cegou; a vida, quando não me fosse traduzida em poesia, aborrecia-me. Pairei sempre no ideal; e se este me rebaixou aos olhos dos homens, por não compreender certos atos desarticulados da minha existência; entretanto, elevou-me aos meus próprios, perante a minha consciência, porque cumpri o meu dever, executei a minha missão: fui poeta! Para isto, fiz todo o sacrifício. A Arte só ama a quem a ama inteiramente, só e unicamente; e eu precisava amá-la, porque ela representava, não só a minha Redenção, mas toda a dos meus irmãos, na mesma dor. Louco?! Haverá cabeça cujo maquinismo impunemente possa resistir a tão inesperados embates, a tão fortes conflitos, a colisões com o meio tão bruscas e imprevistas? Haverá?
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Lima Barreto (Clara dos Anjos)
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- Ora bem, minha filha, ouve-me. Muitas vezes, as jovens julgam-se notáveis, imagens encantadoras, figuras ideais, e inventam ideias fantasiosas sobre os homens, sobre os sentimentos, sobre o mundo. Depois atribuem inocentemente a um indivíduo as qualidades com que sonharam e confiam nele. Amam no homem da sua escolha aquela criatura imaginária, mas mais tarde, quando já não há hipótese de se libertarem da infelicidade, a enganadora aparência que elas embelezaram, o seu primeiro ídolo, transforma-se, por fim, num esqueleto odioso. Julie, preferia saber-te apaixonada por um velho a ver-te amar o coronel. Ah, se pudesses imaginar-te daqui por dez anos, darias valor à minha experiência! Conheço Victor: a sua alegria é uma alegria sem alma, uma alegria de caserna. Não tem talento e é perdulário. É daqueles homens que o céu criou para tomar e digerir quatro refeições por dia, dormir, amar à primeira vista e desinteressar-se. Não entende a vida. O seu bom coração, porque tem bom coração, levá-lo-á provavelmente a oferecer a sua bolsa a um infeliz, a um camarada, mas é negligente, mas não é dotado da delicadeza de coração que nos torna escravos da felicidade de uma mulher, mas é ignorante, egoísta... São demasiados mas.
- No entanto, meu pai, precisou de talento e de recursos para se tornar coronel...
- Minha querida, Victor será coronel toda a vida. Ainda não conheci ninguém que me parecesse digno de ti - replicou o velho pai com algum entusiasmo.
Parou um momento, olhou para a filha e acrescentou:
- Mas, minha pobre Julie, és ainda muito jovem, muito frágil, muito delicada para suportar as tristezas e as preocupações do casamento. D'Aiglemont foi mimado pelos pais, tal como tu o foste pela tua mãe e por mim. Como esperar que possam entender-se um ao outro quando possuem caracteres tão diferentes, cujos caprichos serão inconciliáveis? Serás vítima ou impiedosa. Qualquer das alternativas comporta semelhante grau de infelicidade na vida de uma mulher. Mas és delicada e modesta, serás a primeira a submeter-se. Enfim - exclamou, com a voz alterada -, possuis uma delicadeza de sentimentos que será ignorada, e então...
Não conseguiu terminar, as lágrimas dominaram-no.
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Honoré de Balzac (A Woman Of Thirty)
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(Cont.. Página 46)
O seu rosto negro, bonito, cintilava ali na minha frente. Fiquei boquiaberto, tentando pensar em alguma maneira de responder. Ficamos juntos, enlaçados daquela maneira durante alguns segundos; então o som da fábrica saltou num arranco, e alguma coisa começou a puxá-la para trás, afastando-a de mim. Um cordão em algum lugar que eu não via se havia prendido naquela saia vermelha florida e a puxava para trás. As unhas dela foram arranhando as minhas mãos e, tão logo ela desfez o contato comigo, seu rosto saiu novamente de foco, tornou-se suave e escorregadio como chocolate derretendo-se atrás daquela neblina de algodão que soprava. Ela riu e girou depressa, deixando que eu visse a perna amarela, quando a saia subiu. Lançou-me uma piscadela de olho por sobre o ombro enquanto corria para sua máquina, onde uma pilha de fibra deslizava da mesa para o chão; ela apanhou tudo e saiu correndo sem barulho pela fileira de máquinas para enfiar as fibra num funil de enchimento; depois, desapareceu no meu ângulo de visão virando num canto.
(Página 47)
"Todos aqueles fusos bobinando e rodando, e lançadeiras saltando por todo lado, e carretéis fustigando o ar com fios, paredes caiadas e máquinas cinza-aço e moças com saias floridas saltitando para a frente e para trás e a coisa toda tecida como uma tela, com linhas brancas corrediças que prendiam a fábrica, mantendo-a unida - aquilo tudo me marcou e de vez em quando alguma coisa na enfermaria o traz de volta à minha mente
Sim. Isto é o que sei.. A enfermaria é uma fábrica da Liga. Serve para reparar os enganos cometidos nas vizinhanças, nas escolas e nas igrejas, isso é o que o hospital é. Quando um produto acaba, volta para a sociedade lá fora - todo reparado e bom como se fosse novo, às vezes melhor do que se fosse novo, traz alegria ao coração da Chefona; algo que entrou deformado, todo diferente, agora é um componente em funcionamento e bem-ajustado, um crédito para todo esquema e uma maravilha para ser observado. Observe-o se esgueirando pela terra com um sorriso, encaixando-se em alguma vizinhançazinha, onde estão escavando valas agora mesmo, por toda a rua, para colocar encanamento para a água da cidade. Ele está contente com isso. Ele finalmente está ajustado ao meio-ambiente...
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Ken Kesey (One Flew Over the Cuckoo’s Nest)
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Quem alcançou neste mundo grandeza igual à dessa bendita mulher, a mãe de Deus, a virgem Maria? No entanto, como se fala dela? A sua grandeza não provém do fato de ter sido bendita entre as mulheres, e se uma estranha coincidência não levasse a assembléia a pensar com a mesma desumanidade do predicador, qualquer jovem devia, seguramente, perguntar: Por que não fui eu também bendita entre as mulheres? Se se não possuísse outra resposta, de forma alguma acharia ter de rejeitar esta pergunta, pretextando a sua falta de senso; porque, no abstrato, em presença de um favor, todos temos mesmos direitos. São esquecidos a tribulação, a angústia, o paradoxo. Meu pensamento é tão puro como o de qualquer outro; e ele purifica-se, exercendo-se sobre as coisas. E se não se enobrecer pode-se então esperar pelo espanto; porque se essas imagens foram alguma vez evocadas jamais poderão ser esquecidas. E se contra elasse peca, extraem da sua muda cólera uma terrível vingança, mais terrível do que os rugidos de dez ferozes críticos. Maria,indubitavelmente, deu à luz o filho graças a um milagre, mas no decorrer de tal acontecimento foi como todas as outras mulheres, e esse tempo é o da angústia, da tribulação e do paradoxo. O anjo foi,sem dúvida, um espírito caritativo, mas não foi complacente porque não foi dizer a todas as outras virgens de Israel: Não desprezeis Maria, porque lhe sucedeu o extraordinário. Apresentou-se perante ela só e ninguém a pôde compreender. No entanto, que outra mulher foi mais ofendida do que Maria? Pois não é também verdade que aquele a quem Deus abençoa é também amaldiçoado com o mesmo sopro do seu espírito? É desta forma que se torna necessário, espiritualmente,compreender Maria. Ela não é, de maneira alguma, uma formosa dama que brinca com um deus menino, e até me sinto revoltado ao dizer isto e muito mais ao pensar na afetação e ligeireza de tal concepção. Apesar disso, quando diz: sou a serva do Senhor, ela é grande e imagino que não deve ser difícil explicar por que razão se tornou mãe de Deus. Não precisa, absolutamente nada, da admiração do mundo, tal como Abraão não necessita de lágrimas,porque nem ela foi uma heroína, nem ele foi um herói. E não se tornaram grandes por terem escapado à tribulação, ao desespero e ao paradoxo, mas precisamente porque sofreram tudo isso. Há grandeza em ouvir dizer ao poeta, quando apresenta o seu herói trágico à admiração dos homens: chorai por ele; merece-o; porque é grandioso merecer as lágrimas dos que são dignos de as derramar;há grandeza em ver o poeta conter a multidão, corrigir os homens e analisá-los um por um para verificar se são dignos de chorar pelo herói, porque as lágrimas dos vulgares chorões profanam o sagrado.Contudo ainda é mais grandioso que o cavaleiro da fé possa dizer ao nobre caráter que quer chorar por ele: não chores por mim, chora antes por ti próprio.
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Søren Kierkegaard
“
«Sabe, meu amor, que te amo. E que te amarei até morrer. É por isso que todo o resto me parece tão pouco, um nada imenso de nenhum valor. Sabe que te choro e te venero, e sobretudo que te espero. E sabe que te vejo, com olhos de quem vê, e que te conheço, como só conhece um livro quem o lê. Sabe que à amargura dos dias subtraí a doçura de te ter. Sim, o cintilar da vida, ao meu redor, por te ter. Por saber-te nunca muito longe, embora raramente aqui. por saber que, nos teus olhos - laivos de mel e coisas mais profundas, lucidez e racionalidade - leio que também me lês. Deslizemos agora para o silêncio, perfeição. Não vejo já necessidade de prender a tua mão, pois que sinto que te prendi. Ao teu olhar, que se enreda no meu. que estranhas asas povoam as minhas entranhas, murmuram a meus ouvidos. que grande és, que tola sou. Sabe, meu amor, que tenho plena consciência das nossas dimensões. Basta-me ter-te assim, como te tenho, para seguir pela vida a sorrir. Em mim não se apagarão mais luzes, em mim, à noite, acendem-se as estrelas. Fosse eu firmamento, e tu o cimento com que se constrói o mundo. Sem nós, nada. Reservatório de tudo. Conheço-te, milagre maior, e tenho-te, não podia ter-te melhor. Porque caminhas a meu lado, não acorrentado a mim. Porque me beijas a testa e porque te louvo as mãos. Homem honesto. Amor maior. Porque me guias na escuridão das ingenuidades - resquícios da infância - e porque não me apontas caminhos, descreves-me paisagens. Sim e não, talvez e também. Veremos o que dali vem. E eu, a teu lado, que tola sou, pequena e feliz, que feliz é quem amou assim um grande amor. Ecos de palavras, distantes. Que importa se não somos amantes? Se nunca o seremos? Sei que te amo e, nalguma linguagem, sei que me amas também. Se é na matemática dos racionais, se na pureza dos amigos, se no secretismo dos poetas, isso não sei. Sei que te carrego em mim e que, se fechar os olhos, me sorris. Estás comigo a todo o instante. Não te guardo em caixas, fotografias ou objectos. Caberias lá tu em caixas, mundo, permanecerias lá tu imóvel, como os objectos, vida. Quanto muito, vejo-te às vezes num livro cá por casa. Mas sei-te, e sei-te quase de cor. Não quero saber-te, na totalidade ou de cor. Não o poderia, é inalcançável. Tão grande és tu, que não acabas. Em mim nunca acabarás. A felicidade que a tua volta me trouxe. E sabe que vou chorar, «a cada ausência tua eu vou chorar». Mas não lágrimas; é paixão, fogo, urgência. Coisa física, átomos de energia em colisão. Ainda assim, ter-te-ei aqui, para seguir pela vida a sorrir. A cada vez que afastar os lençóis, pedir-te-ei que te chegues para lá. E ainda que a tua boca nunca sobre a minha pouse, e ainda que nunca venhas a sorrir enquanto te beijo, sabe, meu amor, que te amo, e que te amarei até morrer. Com a certeza de quem quer viver, de quem quer seguir, a vida inteira, com a alma enredada na tua. Que o teu chá seja fervido da minha chaleira, e que os teus livros disputem com os meus o espaço da prateleira. Meu amor, sabe que te amarei a vida inteira.»
”
”
Célia Correia Loureiro (Os Pássaros)
“
Três coisas estão faltando. A primeira: você sabe por que livros como este são
tão importantes? Porque têm qualidade. E o que significa a palavra qualidade? Para mim
significa textura. Este livro tem poros. Tem feições. Este livro poderia passar pelo
microscópio. Você encontraria vida sob a lâmina, emanando em profusão infinita. Quanto
mais poros, quanto mais detalhes de vida fielmente gravados por centímetro quadrado você
conseguir captar numa folha de papel, mais “literário” você será. Pelo menos, esta é a minha
definição. Detalhes reveladores. Detalhes frescos. Os bons escritores quase sempre tocam a
vida. Os medíocres apenas passam rapidamente a mão sobre ela. Os ruins a estupram e a
deixam para as moscas. Entende agora por que os livros são odiados e temidos? Eles mostram
os poros no rosto da vida. Os que vivem no conforto querem apenas rostos com cara de lua
de cera, sem poros nem pelos, inexpressivos. Estamos vivendo num tempo em que as flores
tentam viver de flores, e não com a boa chuva e o húmus preto. Mesmo os fogos de artifício,
apesar de toda a sua beleza, derivam de produtos químicos da terra. No entanto, de algum
modo, achamos que podemos crescer alimentando-nos de flores e fogos de artifício, sem
completar o ciclo de volta à realidade. Você conhece a lenda de Hércules e Anteu, o
gigantesco lutador cuja força era invencível desde que ele ficasse firmemente plantado na
terra? Mas quando Hércules o ergueu no ar, deixando-o sem raízes, ele facilmente pereceu.
Se não existe nessa lenda nenhuma lição para nós hoje, nesta cidade, em nosso tempo, então
sou um completo demente. Bem, aí temos a primeira coisa de que precisamos. Qualidade,
textura da informação.
— E a segunda?
— Lazer.
— Ah, mas já temos muitas horas de folga.
— Horas de folga, sim. Mas e tempo para pensar? Quando você não está dirigindo a cento
e sessenta por hora, numa velocidade em que não consegue pensar em outra coisa senão no
perigo, está praticando algum jogo ou sentado em algum salão onde não pode discutir com o
televisor de quatro paredes. Por quê? O televisor é “real”. É imediato, tem dimensão. Diz o
que você deve pensar e o bombardeia com isso. Ele tem que ter razão. Ele parece ter muita
razão. Ele o leva tão depressa às conclusões que sua cabeça não tem tempo para protestar:
“Isso é bobagem!”.
— Somente a “família” é “gente”.
— Como disse?
— Minha mulher diz que os livros não são “reais”.
— Graças a Deus que não. Você pode fechá-los e dizer: “Espere um pouco aí”. Você faz
com eles o papel de Deus. Mas quem consegue se livrar das garras que se fecham em torno
de uma pessoa que joga uma semente num salão de tevê? Ele dá a você a forma que ele
quiser! É um ambiente tão real quanto o mundo. Ele se torna a verdade e é a verdade. Os
livros podem ser derrotados com a razão. Mas com todo o meu conhecimento e ceticismo,
nunca consegui discutir com uma orquestra sinfônica de cem instrumentos, em cores, três
dimensões, e ao mesmo tempo estar e participar desses incríveis salões. Como você vê, meu
salão não passa de quatro paredes de gesso. E veja. — Faber exibiu dois pequenos tampões de
borracha. — Para minhas orelhas, quando ando nos jatos subterrâneos.
— O Dentifrício Denham; eles não tecem, nem fiam — disse Montag, os olhos cerrados.
— E para onde vamos? Os livros nos ajudariam?
— Só se nos fosse dada a terceira coisa necessária. A primeira, como eu disse, é a
qualidade da informação. A segunda, o lazer para digeri-la. E a terceira, o direito de realizar
ações com base no que aprendemos da interação entre as duas primeiras.
”
”
Ray Bradbury (Fahrenheit 451)
“
Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste. E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever.
Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo. Às vezes as idéias não vêm, ou vêm muito numerosas e a folha permanece meio escrita, como estava na véspera. Releio algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las. Afasto o papel.
Emoções indefiníveis me agitam inquietação terrível, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração.
Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na escuridão.
Lá fora os sapos arengavam, o vento gemia, as árvores do pomar tornavam-se massas negras.
- Casimiro!
(...) A figura de Casimiro Lopes aparece à janela, os sapos gritam, o vento sacode as árvores, apenas visíveis na treva. Maria das Dores entra e vai abrir o comutador.
Detenho-a: não quero luz.
O tique-taque do relógio diminui, os grilos começam a cantar. E Madalena surge no lado de lá da mesa. Digo baixinho:
- Madalena!
A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Também já não a vejo com os olhos. Estou encostado à mesa, as mãos cruzadas. Os objetos fundiram-se, e não enxergo sequer a toalha branca.
- Madalena...
A voz de Madalena continua a acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente que mande algum dinheiro a Mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é diferente das outras, é uma irritação antiga, que me deixa inteiramente calmo. Loucura estar uma pessoa ao mesmo tempo zangada e tranqüila. Mas estou assim. Irritado contra quem? Contra Mestre Caetano. Não obstante ele ter morrido, acho bom que vá trabalhar. Mandrião!
A toalha reaparece, mas não sei se é esta toalha sobre que tenho as mãos cruzadas ou a que estava aqui há cinco anos.
(...) Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis, colerizo-me e enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de chorar. Aparentemente estou sossegado: as mãos continuam cruzadas sobre a toalha e os dedos parecem de pedra. Entretanto ameaço Madalena com o punho. Esquisito.
Distingo no ramerrão da fazenda as mais insignificantes minudências. Maria das Dores, na cozinha, dá lições ao papagaio. Tubarão rosna acolá no jardim. O gado muge no estábulo. O salão fica longe: para irmos lá temos de atravessar um corredor comprido. Apesar disso a palestra de Seu Ribeiro e Dona Glória é bastante clara. A dificuldade seria reproduzir o que eles dizem. É preciso admitir que estão conversando sem palavras.
Padilha assobia no alpendre. Onde andará Padilha? Se eu convencesse Madalena de que ela não tem razão... Se lhe explicasse que é necessário vivermos em paz... Não me entende. Não nos entendemos. O que vai acontecer será muito diferente do que esperamos. Absurdo.
Há um grande silêncio. Estamos em julho. O nordeste não sopra e os sapos dormem.
(...)
Repito que tudo isso continua a azucrinar-me. O que não percebo é o tique-taque do relógio. Que horas são? Não posso ver o mostrador assim às escuras. Quando me sentei aqui, ouviam-se as pancadas do pêndulo, ouviam-se muito bem. Seria conveniente dar corda ao relógio, mas não consigo mexer-me.
”
”
Graciliano Ramos (São Bernardo)
“
Um trovador descrever-me-ia como condenada desde que nasci, uma princesa formosa nascida sob uma estrela negra. Não importa. As pessoas inventam sempre histórias sobre as princesas. Vem com a coroa. Temos de encarar as coisas com o máximo de leveza que pudermos. Se uma rapariga nasce bonita e princesa, como eu tenho sido toda a vida, terá apoiantes que serão piores que inimigos. Durante a maior parte da minha vida tenho sido admirada por loucos e odiada por pessoas de bom senso, e todos eles inventam histórias sobre mim nas quais ou uma uma santa ou uma prostituta. Mas estou acima desses julgamentos, sou uma rainha.
”
”
Philippa Gregory
“
- Sim, sobre um mundo distópico, onde adolescentes matam um ao outro. -Você já leu? - Não... - Então, confie em mim.” - On Dublin Street
”
”
Samatha Young
“
Não consigo encontrar motivos para a existência sendo a existência minha maior inimiga.
Por que viver?
Pergunto-me todos os dias; Enquanto procuro motivações em livros empoeirados cuja importância só cabe inteiramente a mim, leio de Platão a Schopenhauer e convenço a mim mesmo que estou fazendo algo de útil, o “conhecimento’’ digo a mim mesmo, é importante, “o intelecto’’ repito a mim mesmo é o que vai me elevar ao Übermensch; E para quê? Morrer como Übermensch! Assim como o tolo que morre como um crente!
Não há diferenças entre o tolo e o gênio debaixo de sete palmos, então aonde escondo meu último suspiro de esperança? Aonde encontrei motivações?
Grito por toda a casa
Quebro todos meus pertences GRITO COMO UM LOUCO!!! POR QUE EXISTO???
Sento-me nos cantos escuros daquela casa abandonada cuja única ‘alma’ é um ninguém!
Alguém cuja vida deveria ser tomada a facadas e tiros, da forma mais cruel possível para que no momento de dor e agonia lembre-se que enquanto vivo não valorizou a vida!
E Valorizar o que?
Talvez mesmo diante da morte, eu lamente a inútil existência que me foi concebida contra minha maldita vontade!
Quanto mais elevado o homem, menos motivos ele vê para existir, reflito sobre o universo e logo qualquer motivo que eu encontre para existir me parece desgraçado! Sim desgraçado!
Desgraçado somos todos nós presos neste planeta enquanto buscamos motivos para existir e morrer, sem ao menos conhecer 1% de toda a existência.
E Poderia ser mais cruel? A tal existência?
Às vezes fico pensando a respeito da evolução das espécies, de todas as características possíveis que a seleção natural poderia conceber a uma espécie, nós desenvolvemos a pior delas! A consciência de nós mesmo, a capacidade de pensar, que castigo...
Embora a maioria dos primatas não tenha a mínima ideia de sua inutilidade existencial.
Talvez não exista um problema na evolução de nossa espécie – e sim em alguns homens – os pensadores são eles o problema!
Olhem para todos esses macacos, dançando, rezando, cuidando da vida uns dos outros, discutindo sobre assuntos que pouco conhecem
E claro sorrindo, com suas bocas cheias de dente e cérebros fúteis como a merda suja de cachorro!
Felizes... Progredindo....
Evoluindo...
Procriando...
Enquanto nós pensadores afundamos nossas cabeças em livros empoeirados, escrevemos poemas, e refletimos sobre nossas estupida existência.
Para que?
Para que outros pensadores leiam nossos livros, e no futuro se tornem escritores e produzam mais livros (..)
Quantos filósofos não existiram antes de mim? E quantos outros não existirão depois de mim?
Nos fechamos em nosso mundo melancólico e convencemos a nós mesmo que somos melhores que eles, os chamamos de macacos e nos intitulamos Übermensch (...)
Nós não somos melhores do que eles, não existem vencedores.... No final somos todos macacos. Não existem Übermensch, não existem pensadores, o que existe são macacos, copiando macacos, influenciando macacos
Alguns macacos se chamam Nietzsche
Outros morrem sem ter seus nomes mencionados em algum lugar.
Nietzsche, ou qualquer outro macaco que já tenha existido neste podre planetinha – hoje se encontra morto.
E quando nossa espécie deixar de existir.... Ninguém vai lembrar do que realizamos, pois nossas realizações não passam de brincadeira de macacos no zoológico.
”
”
Gerson De Rodrigues (Aforismos de um Niilista)
“
Criava diálogos de mim para mim, como se eu namorasse a mim mesma. Imperdoável esse outro inventado e suspirado, que por acaso tem corpo e, com certeza, a alma diversa da sonhada. A despeito de todas defesas que a razão erigia, soberba, a fim de desfazer atalhos, enganos e futuros martírios, havia momentos breves, muito breves, em que a alma sonhada colava perfeita sobre a alma real, e a isso podemos chamar felicidade.
”
”
Paula Fábrio (Um Dia Toparei Comigo)
“
Sim, sim, sim... Crucificai-me nas navegações
E as minhas espáduas gozarão a minha cruz!
Atai-me às viagens como a postes
E a sensação dos postes entrará pela minha espinha
E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo!
Fazei o que quiserdes de mim, logo que seja nos mares,
Sobre conveses, ao som de vagas,
Que me rasgueis, mateis, fira-os!
O que quero é levar pra Morte
Uma alma a transbordar de Mar,
Ébria a cair das coisas marítimas
(...)
Ser o meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas pelos piratas!
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles
E sentir tudo isso -- todas estas coisas duma só vez - pela espinha!
”
”
Fernando Pessoa (Minha Mulher, a Solidão)
“
Caminhamos sobre abismos
Ai de quem o sente. A noite, uma noite funda
Cerca-nos, ai de quem conhece
Como ela é funda, como é inescrutável.
Pulsam-me as veias
Alucinadamente e um terror novo
Obtém-me, o terror de mim mesmo.
”
”
Fernando Pessoa
“
Eu queria era dormir, dormi, dormir,
Longo dormir, meio sentindo em sono,
E dormir sempre, sem consciência ter
Do tempo, só do sono sonolento
E da vacuidade do meu ser;
Dormir sem vir a morte, nem sonhar
Mas dormir só dormir, sempre dormir.
Que hoje já de dormir desaprendi.
Cansado de pensar, a pensar fico,
E as noites longas, longas, longas, longas,
E o pálido raiar de inda doutro dia...
Inda outro dia que trará ainda
Uma outra noite e essa mais dias, mais...
Insone sentir isto, e o deslizar
Suave e horroroso do tempo.
Cai então sobre mim todo o horror claro
E nítido e visível do mistério,
E eu tal fico em abalo e em comoção
Que durmo — sim que durmo de pesar-me
Tudo de mais p'ra mais poder sentir.
Então durmo... e antes eu não dormisse
Porque desordenadas incoerências
Mas não visões, só abstracções terríveis
(...)
”
”
Fernando Pessoa
“
A fragrância da vegetação,
ainda humedecida
p'las gotas de orvalho,
penetra gentilmente meu quarto,
pela janela entreaberta,
em sublime comunhão
com o vapor libertado
p'la infusão de camomila
sobre a ecrivaninha.
Diante dela, estou eu.
Ou o que considero ser "eu".
Invadido pelos odores
que o olfato deleitam,
com igual doçura ao rouxinol
que no parapeito pousa,
e cujo canto efeitiça
minha escuta.
Ah! Uma orquestra que sensações-
Uma sinfonia para os sentidos.
Mas resisto.
Resisto.
Jamais nenhum destes estímulos,
nenhum tilintar da natureza,
aprisionará mais minha atenção
do que corda que do teto pende.
Jamais o natural alcançará
a suntuosidade, a imponência,
a magnificiência,
da artifiial serpente
que em meu lar acolhi.
Materialização da descrença.
Da esperança que em mim se diluiu
e que lugar deu
à tristeza.
À melancolia que em mim não cabe.
E que transborda
a tudo aquilo em que toco,
que vejo, que sinto, que ouço.
”
”
Anonymous
“
Poema - Eclesiastes 12:7
Quando eu morrer
lancem as minhas cinzas nos rincões do universo
para que os átomos que habitaram o meu corpo
voltem para as estrelas
A verdadeira liberdade
é morrer e transformar-se em nada!
Não quero o perdão dos deuses
tampouco os pecados do inferno
Quero transformar a mim mesmo
no mártir do nada
e na representação de tudo que existe
A realização de que vou virar pó
paradoxalmente me tranquiliza
Eu desejo deixar este mundo
sem verdades ou convicções
quero ser enterrado como um homem sem nome
para que os vermes que corroerem meus despojos podres
se engasguem com a minha miséria
O que eu fui em vida
de nada importa aos tolos que me enterrarem
Não deixarei lembranças
lágrimas ou paixões
Joguem os meus bens materiais aos porcos
e queimem os meus livros em suas igrejas
O suicídio para mim não é o suficiente!
Se as suas dores podem ser curadas
com uma corda em seu pescoço
ou laminas em seus punhos
sorria como um tolo
e dancem com os deuses
pois a sorte está ao seu lado
A origem do meu sofrimento
está intrínseca na essência da minha alma
e para me livrar deste tormento
devo sofrê-lo intensamente
até que os últimos vermes se alimentem das minhas entranhas
No momento do meu nascimento
amaldiçoei a minha própria mãe
e os deuses esconderam-se em cavernas
Como se a miséria
possuísse o semblante do diabo
gargalhadas foram ouvidas no inferno
A morte para mim
não é apenas um alivio
ou um destino inevitável
É uma forma de pedir ao mundo
perdão por ter nascido
Quando eu morrer
não derramem as suas lágrimas
festejem junto aos sátiros
com orgias e palavrões
transformem o meu túmulo
em um lugar profano sobre a terra
para que nunca mais pronunciem o meu nome
”
”
Gerson De Rodrigues
“
Poema - Gênesis 4:11-12
Me coloquem em uma camisa de força
e me tranquem nos cárceres privados
da minha própria mente
Dancem como macacos
enquanto os deuses mutilam seus próprios filhos
Matem uns aos outros
em nome de ideologias que os condenam
Agora apontem os seus dedos para mim e gritem
- Prendam-no em camisas de força
este homem que não merece o amor dos deuses
E quem os merece?
Ah...
se ousaste a pensar sobre os deuses
não falarias em nome do amor
Que tipo de pai deixaria os seus filhos
rastejando entre ratos e baratas
tendo a morte como a sua última esperança?
E não me venham gritar em meus ouvidos surdos
- Tu não conheces os deuses!
Matei o meu próprio irmão
para provocar a ira de Deus
Dancei com Cristo músicas de amor e luxuria
deitei-me com os Anjos ao lado de Maria
quando Deus concebeu a ela o símbolo da mentira
Caminhei pelo inferno com os pés descalços
e durante milênios eu não sabia o meu próprio nome
Eu vi Sócrates chorar em seus momentos de duvida
incentivei Pilatos a matar o traste na cruz!
E mesmo após me banhar em pecados e luxuria
Deus havia me perdoado
castigando-me com a vida que eu nunca almejei
Quantas vezes você não olhou no espelho
e clamou de joelhos para que a morte
não o salvaste deste tormento?
Quantas vezes você não sentiu tanta dor
que o desejo de morrer
era o único sentimento puro em seu coração?
E ao caminhar pela rua
sentia não pertencer a essa espécie
Buscou em mil livros a resposta para as suas angustia
e ainda assim
chorou em silencio sem que alguém pudesse compreende-lo
Sinto-me assim todos os dias!
o meu nome é Caim!
e a minha maldição é viver!
Clamo a ti
Oh Deus
Me coloque em uma camisa de força
E me tranque nos cárceres privados
Da minha própria mente !
Pois não há nenhum homem neste mundo
capaz de cessar as minhas dores
”
”
Gerson De Rodrigues
“
Poema - Insônia
São três horas da manhã
e eu não consigo dormir
Encaro o vazio
com a mesma paixão que judas
encarou a crucificação de cristo
Mudo
completamente mudo!
Nos devaneios de um inquietante silencio
a minha mente flerta com ideias suicidas
que se reveladas
trariam mais miséria ao mundo
Nas auroras dos meus pensamentos
o universo se curva sobre a minha vontade
e a minha mente não se cala nem por um segundo
Por fora sou um homem apático
frio como se nunca pensasse em nada
calado como um homem mudo que vendeu sua alma ao diabo
Eu me levanto e vou até o banheiro
encaro no espelho a figura de um homem morto
O que é a morte para quem nunca viveu?
Naquele quarto sozinho
eu sou deus
sobre um reino de baratas e desprezo
Das minhas janelas eu escuto os pássaros cantarem
mas é impossível
a última vez que eu olhei o relógio
eram três horas da manhã
Abro as janelas assustado
e vejo uma rua repleta de gente
pessoas dos mais diversos tipos
O barulho das correntes em seus pés me deixam louco
não adianta gritar para avisá-los
eles não podem vê-las
tampouco escuta-las
Passei a madrugada inteira pensando
e não vi a hora passar
eu deveria estar surpreso
mas isso acontece todos os dias
Fecho a janela para não escutar as correntes
ou os gritos dos deuses a clamarem pelo meu nome
Eu moro sozinho
desligo o telefone para não me procurarem
Volto para cama
aonde eu afogo todos os meus sentimentos
compartilhando com o nada as minhas dores
E sem que eu perceba
adoeço todos os dias
com a maldição de viver
Eu deveria ligar para os meus pais
e dizer que está tudo bem
mas eles morreram quando eu tinha dezesseis
e desde então estou sozinho no mundo
Todos os meus amigos se afastaram de mim
mas não posso culpa-los
quem seria amigo de um homem insano?
Penso todos os dias em suicídio
a primeira vez que eu pensei eu tinha doze
Levanto da cama e amarro um lençol
na parte mais alta do quarto
E encaro a mim mesmo
dependurado com os meus pés
tentando tocar o chão
mas já era tarde demais para rezar
o diabo havia tocado a minha alma
São três horas da manhã
e eu não consigo dormir...
”
”
Gerson De Rodrigues
“
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ei-lo que avança
de costas resguardadas pela minha esperança
Não sei quem é. Leva consigo
além do sob o braço o jornal
a sedução de ser seja quem for
aquele que não sou
E vai não sei onde
visitar não sei quem
Sinto saudades de alguém
lido ou sonhado por mim
em sítios onde não estive
Há uma parte de mim que me abandona
e me edifica nesse vulto que
cheio de ser visto por mim
é o maior acontecimento
da tarde de domingo
Ei-lo que avança e desaparece
E estou de novo comigo
sobre o asfalto onde quero estar
”
”
Ruy Belo (Aquele Grande Rio Eufrates)
“
Eu não conhecia as pessoas que dormiam ao meu lado. Nunca lhes perguntei nada, e não porque seguisse o provérbio árabe: não pergunte e não mentirão para você. Pouco me importava se iam mentir pra mim ou não; eu estava do lado de fora da verdade, do lado de fora da mentira. Sobre isso, os bandidos têm um ditado duro, expressivo, grosseiro, repleto de um profundo desprezo em relação àquele que pergunta: se você não acredita, finja que é um conto de fadas
”
”
Varlam Shalamov (Kolyma Stories)
“
Já estava acostumado aos amputados, às vitimas do agente laranja, aos famintos, pobres, garotos de rua de seis anos de idade que você encontra às três da madrugada gritando "Feliz ano novo! Olá! Bye-Bye!" em inglês, e depois aponta para suas bocas e faz "bum bum?". Estou ficando quase indiferente aos garotos famintos, sem pernas, sem braços, cobertos de cicatrizes, desesperançados, dormindo no chão, em triciclos, na beirada do rio. Mas não estava preparado para o homem sem camisa, com um corte de cabelo a la forma de pudim, que me detém na saída do mercado, estendendo a mão. No passado ele sofreu queimaduras e tornou-se uma figura humana quase irreconhecível, a pele transformada numa imensa cicatriz sob a coroa de cabelos pretos. Da cintura para cima (e sabe Deus até onde), a pele é uma cicatriz só; ele não tem lábios, nem nariz, nem sobrancelha. Suas orelhas são como betume, como se tivesse mergulhado e moldado num alto-forno, sendo retirado pouco antes de derreter por completo. Mexe seus dentes como uma abóbora de Halloween, mas não emite um único som através do que foi um dia, uma boca. Sinto um murro no estômago. Minha animação exuberante dos dias e horas anteriores desmorona. Fico paralisado, piscando e pensando na palavra napalm, que oprime cada batida do meu coração. De repente nada mais é divertido. Sinto vergonha. Como pude vir até esta cidade, até este país por razões tão fúteis, cheio de entusiasmo por algo tão...sem sentido, como sabores, texturas, culinária? A famíla daquele homem deve ter sido pulverizada, ele mesmo transformado num boneco desgraçado, como um modelo de cera de madame Tussaud, a pele escorrendo como vela pingando. O que estou fazendo aqui? Escrevendo um livro de merda? Sobre comida? Fazendo um programinha leve e inútil de tevê, um showzinho de bosta? A ficha caiu de uma vez e fiquei me desprezando, odiando o que faço e o fato de estar ali. Imobilizado, piscando nervosamente e suando frio, sinto que todo mundo na rua está me observando, que irradio culpa e desconforto, que qualquer passante vai associar os ferimentos daquele homem a mim e ao meu país. Dou uma espiada nos outros turistas ocidentais que vagueiam por ali com suas bermudas da Banana Republic e suas camisas pólo da Land´s End, suas confortáveis sandálias Weejun e Bierkenstock, e sinto um desejo irracional de assassiná-los. Parecem malignos, comedores de carniça. O Zippo com a inscrição pesa no meu bolso, deixou de ser engraçado, virou uma coisa tão pouco divertida quanto a cabeça encolhida de um amigo morto. Tudo o que comer terá gosto de cinzas daqui pra frente. Fodam-se os livros. Foda-se a televisão. Nem mesmo consigo dar algum dinheiro ao coitado. Tenho as mãos trêmulas, estou inutilizado, tomado pela paranoia, Volto correndo ao quarto refrigerado do New World Hotel, me enrosco na cama ainda desfeita, fico olhando para o teto com os olhos cheios de lágrimas, incapaz de digerir ou entender o que presenciei e impotente para fazer qualquer coisa a respeito. Não saio nem como nada pelas 24 horas seguintes. A equipe de tevê acha que estou tendo um colapso nervoso.
Saigon...Ainda em Saigon.
O que vim fazer no Vietnã?
”
”
Anthony Bourdain (A Cook's Tour: Global Adventures in Extreme Cuisines)
“
Quando me acometia à noite, em vez de dormir, eu deitava-me horas seguidas no vão da janela, olhava o lago negro, as silhuetas dos montes recortadas contra o céu pálido e, por cima, as belas estrelas. Depois, não raro, era tomado por um forte sentimento temeroso e doce, como se toda esta beleza nocturna me observasse com um justo olhar reprovador. Como se as estrelas, as montanhas e os lagos ansiassem por alguém que compreendesse e expressasse a sua beleza e a dor da sua existência silenciosa, como se fosse eu esse alguém, como se a minha verdadeira missão fosse a de, pela escrita, dar expressão à natureza silenciosa. De que forma isto seria possível, era coisa sobre que nunca pensava, senão que sentia apenas a bela noite, grave, esperar por mim numa exigência silenciosa.
”
”
Hermann Hesse
“
Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio. Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.
Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas.
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo.
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora.
Na distância subitamente impossível de percorrer.
Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela.
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto.
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.
Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena.
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.
Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes.
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos.
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde — quem sabe? — Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...
Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-o misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!
Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé antepé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.
Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,
A lua começa a ser real.
”
”
Fernando Pessoa (Poemas de Álvaro de Campos (Obra Poética IV))
“
Quando comecei a escrever histórias policiais verídicas, prometi a mim mesma que me lembraria que escrevo sobre a perda de seres humanos. Torço para que meu trabalho possa de alguma maneira salvar possíveis vítimas, alertar do perigo.
”
”
Ann Rule (The Stranger Beside Me: Ted Bundy The Shocking Inside Story (Abridged))
“
O que você está fazendo? — Eu pergunto, franzindo a testa com a perda de seu peso.
Seus olhos se arrastam sobre mim, seu ângulo fazendo com que veja tudo.
— Admirando a vista — Ele responde, sorrindo. — Se a hora do chá fosse tão bonita. — Eu coro, colocando minha cabeça para baixo. — Olhe para você
— Continua ele, — toda espalhada na minha frente como uma festa.
”
”
Kendra Moreno (Mad as a Hatter (Sons of Wonderland #1))
“
esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avançando para as que diante de mim estão, prossigo para o alvo,
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”
Gustavo Augusto Ferreira (O QUE O SENHOR DOS ANÉIS E A CRUZ NOS ENSINAM SOBRE COMO PERDOAR O PRÓXIMO? (Portuguese Edition))
“
[...]Creio que, depois desse funesto meteoro, podemos passar ao vinho, visto que é um trovão líquido, uma cólera potável e um trespasse que faz morrer os bêbados de saúde. Por mais abstinentes que sejamos, ele, o insensato, é a causa pela qual a definição dada por Aristóteles para o homem animal racional seja falsa; pelo menos, durante três meses ao ano pode-se dizer que é no cabaré que se vende a loucura em garrafas, e duvido mesmo que ele não tenha ido até os céus fazer com que o Sol cheire seus vapores, vendo como se deita tão cedo todos os dias. A Terra bebeu tanto no século de Copérnico que se pôs a dar piruetas e, se agora se move, são seguramente ss que a bebedeira lhe faz fazer. Não deixo, contudo, de gostar de ver a aguardente detestar seu pai, porque ele é para mim a testemunha de que o vinho foi forçado a perder o espírito. Ei-nos, portanto, (neste momento) condenados a morrer de sede, visto que nossa bebida está envenenada. Vejamos se as frutas se salvaram do furor de dezembro. Ai de mim! Por uma única [fruta] comida por Adão, cem mil pessoas morreram ainda sem existirem, e se tivesse começado uma segunda, teria infalivelmente expulsado a Terra trinta léguas mais longe. Toda a natureza, agora, está dedicada ao suplício de seus criminosos; ela mesma os coloca no patíbulo, a árvore os atira de ponta-cabeça, o vento os sacode, o Sol os desprende, e os pássaros se saciam com seus troncos apodrecidos. Depois, senhor, não achais errado que eu me irrite quando dizem: “Eis frutas em bom estado”, pois como pode estar em bom estado alguém que se enforcou pessoalmente? Aqui, todos os campos são limitados por vergéis, onde as pedradas respondem à oferta, e não será uma ocasião de dúvida de inocência de uma raça que vemos lapidada a cada momento? Considerando as perniciosas, eu não saberia imaginar o que podem ser senão diabos familiares mais gordos e mais agitados do que os outros; o bosque que os produz tem o cuidado de esconder tal pecado com folhas, como se não tivesse bastante descaramento para desnudar suas partes pudendas; mas agora que se desnudou e que sua verdura caiu, somente se vêem folhas na Universidade. Os vermes, as aranhas e as lagartas atingiram a cima das árvores e, mesmo sendo calvas, não deixam de ter parasitas na cabeça. Este é ainda, sem dúvida, mais um dos serviços do outono que, temendo que morrêssemos apenas de uma morte, após nos ter retirado os alimentos, deunos veneno. O que nos poderia restar de puro entre tantas coisas cujo uso nos é necessário senão, talvez, um pouco de ar; mas ele o sufocou com o contágio. Hoje, a peste (esta doença sem-fim) mantém a morte presa à sua própria; ela derruba a economia do mundo até fazer com que um miserável nascido entre andrajos morra coberto de púrpura, e julgai se o fogo com que nos ataca é ardente, quando basta um carvão sobre um homem para consumi-lo.
(trecho de carta)
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Cyrano de Bergerac (Voyage dans la Lune)
“
- Quando dizes coisas dessas, faz-me ter medo do dia em que nos vamos despedir. Não estava à espera de acabar o verão com o coração partido.
O Samson vira a cabeça e olha para mim com uma candura absoluta.
- Não te preocupes. Os corações não têm ossos. Não podem partir-se de verdade.
Ele rebola para cima de mim e tira a t-shirt, o que é o suficiente para me acalmar durante dois segundos, mas os meus pensamentos regressam ao ponto em que estavam antes de ele ficar meio despido.
Baixa-se por cima de mim, mas, antes de nos beijarmos novamente, digo:
- Se dentro de um coração não há nada que se possa partir, porque é que sinto que o meu se vai rachar em dois quando chegar a hora de me ir embora no próximo mês? O teu coração não sente a mesma coisa?
Os olhos do Samson viajam por alguns instantes sobre o meu rosto.
- Sente - murmura. - Sente, sim. Talvez tenhamos deixado crescer ossos nos nossos corações.
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Colleen Hoover (Heart Bones)
“
Percebi que se calaram no momento em que me levantei e atravessei a esplanada, despedindo-me com um «até amanhã». Responderam e mantiveram-se calados enquanto me afastava. Um silêncio carregado de sorrisos cúmplices e maliciosos. Eu conhecia bem o ambiente. Nas costas de outros sempre vi as minhas. Metros adiante percebi que tinham começado a falar. Não conseguia escutar as palavras exactas, apenas o ruído vago das vozes. A toada. Sabia que falavam sobre mim. Imaginava o que diziam. Sempre o pior. O pior nunca nos desilude. O que os outros pensam ou dizem de nós é só deles. Seja o que for.
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Isabela Figueredo
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Espinhos. Pregos.
Pode ser que eu tenha criado tudo isso dentro de mim. Talvez tenha pensado que pudesse me proteger contra os perigos e as pessoas de fora. Mas isso só me trouxe essa dor tremenda.
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Hye-Jin Kim (Concerning My Daughter)
“
Sinto que aprendi mais sobre mim mesma nos últimos quatro dias do que nos últimos quatro anos.
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Ashley Elston (Dez dates surpresa (Portuguese Edition))
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Eu limpo agora toda a escassez da minha mente Eu sinto muito, me perdoe, eu te amo, eu sou grato Eu limpo agora todas as minhas crenças limitantes subconscientes sobre o dinheiro Eu sinto muito, me perdoe, eu te amo, eu sou grato Eu limpo agora todos os meus preconceitos e ideias negativas sobre a riqueza Eu sinto muito, me perdoe, eu te amo, eu sou grato Eu limpo em mim todo o medo da pobreza e de não ter o suficiente Eu sinto muito, me perdoe, eu te amo, eu sou grato
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Catiele Souza (A Energia da Abundância (Lei da Atração na Prática Livro 3) (Portuguese Edition))
“
Manifesto pela criação de filhos plenos Acima de tudo, quero que você saiba que é amado e que tem capacidade de amar. Você descobrirá isso por meio de minhas palavras e atitudes: as lições sobre o amor estão na maneira como eu o trato e como eu trato a mim mesmo. Quero que você se relacione com o mundo a partir de um sentimento de dignidade e de autovalorização. Você descobrirá que é digno de amor, aceitação e alegria todas as vezes que me vir praticando o amor-próprio e acolhendo minhas próprias imperfeições. Nós praticaremos a coragem em nossa família ao nos mostrarmos, ao deixarmos que nos vejam e ao valorizarmos a vulnerabilidade. Compartilharemos nossas histórias de fracasso e de vitória. Em nosso lar sempre haverá espaço para ambas. Nós lhe ensinaremos a compaixão exercendo-a primeiro com nós mesmos, e então uns com os outros. Colocaremos e respeitaremos limites; valorizaremos o esforço, a esperança e a perseverança. Descanso e brincadeiras serão valores de família, assim como práticas de família. Você aprenderá sobre responsabilidade e respeito ao me ver cometer erros e consertá-los, e ao ver como peço o que preciso e falo sobre como me sinto. Quero que você conheça a alegria, para que juntos pratiquemos a gratidão. Quero que você sinta alegria, para que juntos aprendamos a ser vulneráveis. Quando a incerteza e a escassez baterem à nossa porta, você será capaz de recorrer à ética que permeia nossa vida diária. Juntos, choraremos e enfrentaremos o medo e a tristeza. Vou desejar livrá-lo de sua dor, mas em vez disso ficarei ao seu lado e lhe ensinarei como senti-la. Nós vamos rir, cantar, dançar e criar juntos. Sempre teremos permissão para sermos nós mesmos um com o outro. Não importa o que aconteça, você sempre será aceito em nossa casa. Quando iniciar sua jornada para ser uma pessoa plena, o maior presente que poderei dar a você é amar intensamente e viver com ousadia. Não irei ensiná-lo, amá-lo nem lhe mostrar as coisas de forma perfeita, mas eu me deixarei ser visto por você e sempre considerarei sagrado o dom de poder vê-lo verdadeira e profundamente.
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Brené Brown (A coragem de ser imperfeito: Como aceitar a própria vulnerabilidade, vencer a vergonha e ousar ser quem você é)
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E ela jamais esqueceria a mão úmida da companheira, agarrada à sua, enquanto o rosto assustado lhe perguntava, com um fulgor de medo nas pupilas:
-- Deus vai mandar me prender, Madalena? Ou eu já paguei minha conta, aqui na terra? Reze por mim. Vou deixar para você a minha Bíblia. E só o que eu tenho. Se eu chegar perto de Deus, vou dizer quem é você. Vou. Posso lhe fazer um pedido? Talvez seja o último. Já estou ficando sem forças. Pegue minha Bíblia, abra no Salmo 23. É aquele que diz que Deus é o meu pastor. Leia. Leia devagar.
E quando Madalena ergueu o olhar, ao fim da leitura, deu com a outra imóvel, de olhos parados. Desceu-lhe as pálpebras, cruzou-lhe as mãos. E curvando-se sobre a figura magra, que o lençol parecia tornar mais ossuda e lívida, rompeu a chorar baixinho, certa de que Deus havia recolhido ao seu rebanho, naquele presídio, a melhor ovelha".
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Josué Montello (O Silêncio da Confissão)
“
Mestre nunca disse nada de sensual, jamais falou de amor que não fosse fraterno e não individual. Ele sempre combateu a hipocrisia, a maledicência, a falta de respeito, o adultério. Por isso, para nós espíritas, indicamos ler o Evangelho e estudar O Livro dos Espíritos, porque Jesus falou “Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei”. Somente indo até Jesus, aprendendo sobre os Seus ensinamentos, é que compreenderemos como separar o joio do trigo, pois eles crescem juntos em nossos pensamentos até a ceifa, que é o nosso discernimento, aí arrancamos o joio e atiramos para queimar e o trigo ajuntamos no celeiro da nossa consciência.
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Elaina Machado Coelho (Sem Regras para Amar (Portuguese Edition))
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Há um velho equívoco sobre a palavra amor, e, se muitos filhos nascem desse equívoco, tantos outros perderam o único instante de nascer apenas por causa de uma suscetibilidade que exige que seja de mim, de mim!
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Clarice Lispector (Laços de Família)
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No filme Amelia 2.0 , Amelia é trazida de volta à vida usando inteligência artificial [118] . O filme, uma ficção científica sobre inteligência artificial, possui duas provocações. O filme brinca com estudos que sugerem que será possível transmitir consciência para redes neurais artificiais (o chatGPT é feito de redes neurais artificiais). Ver meu livro “ Redes Neurais em termos simples (pensamento computacional): como aprendemos, pensamos e modelamos ”.
Primeiro, um senador religioso faz de tudo para barrar o projeto, o que ocorre no momento com células-tronco. Ele usa argumentações religiosas, similar ao que fazem quando querem barrar algo como estudos em células-troncos e aborto. Para mim, esse filme serve como uma reflexão futurística, mas bem real. Quando a religião invade o campo da ciência, e quer servir como tutela da ciência, isso nunca funciona. A ciência tem mecanismos éticos próprios, e são constantemente revisados e atualizados. Esses mecanismos éticos são baseados em discussões, não em imposições estáticas e atemporais.
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Jorge Guerra Pires (Seria a Bíblia um livro científico?: Por que a Bíblia Sagrada não deve ser levada a sério e como argumentar contra ela (Inteligência Artificial, Democracia, e Pensamento Crítico) (Portuguese Edition))
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PANORÂMICA SOBRE A CIDADE EM CÉU DE SERINGAS TRANSPARENTES: no centro do sismo está o jardim de borboletas / estranho rosto de asas queimadas estendido por cima da pálpebra / boca seca e aberta / petrifica um desejo de esperma / treme o corpo ao sugar a seiva da luz / uma lâmina corre vertiginosa pela ausência de outro corpo / nos dedos um caroço estelar / pulsos abertos manchando a noite das cidades / luares brancos de Tangerina / acorda / sem dias e sem noites / minuciosamente o tempo grava em mim Tangerina / a sombra dum osso e duma laranja nas mãos /
in 4. / As mãos de Kapa num Jardim D'Agosto
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Al Berto (O Medo)
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Entre as repreensões que [...] tive que ouvir muitas vezes, havia uma que me incomodava: que eu não sabia o que era a vida, estava cego, e nem ‘queria’ mesmo sabê-lo. Que eu usava viseiras, e estava decidido a jamais enxergar sem elas. Que eu sempre procurava aquilo que conhecia dos livros. Seja porque eu me restringia demais a ‘uma’ espécie de livros, seja porque eu tirava deles as conclusões erradas --- toda tentativa de falar comigo sobre as coisas como efetivamente eram estava destinada ao fracasso. “Você quer que ou tudo seja do mais alto padrão moral, ou então que seja o oposto”. A palavra liberdade, que sempre está em sua boca, é uma piada. Não há pessoa menos livre do que você. É-lhe impossível ficar ‘imparcial’ diante de um acontecimento, sem desenrolar diante deles todos os seus preconceitos, até que já não seja visível. Isso não seria tão grave [...] se não fosse essa resistência obstinada, essa arrogância, essa determinação firma de deixar tudo como está, sem alterar coisa alguma. Apesar de todas as suas belas palavras, você não tem ideia [...] utilidade que uma pessoa tem para as outras. [...] Você, o que faz?.” [...] Eu tinha a sensação de que, ao tomar conhecimento de coisas reprováveis, eu me tornava cúmplice das mesmas. Eu não queria aprender, quando aprender significava trilhar o mesmo caminho. Eu me defendia do aprendizado ‘imitativo’. Assim que eu percebia que me ‘recomendavam’ alguma coisa, só porque era costume no mundo, eu empacava e, aparentemente, não entendia o que queriam de mim.
”
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Elias Canetti (The Torch in My Ear)
“
(...)
Meu coração é um sapo rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.
Meu coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traça, amareladas de tempo, faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando sorria. Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.
Meu coração é um mendigo mais faminto da rua mais miserável.
Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.
Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 5?) em que Jim Morrison colocou uma letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.
Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.
Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.
Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças na janela, rapazes pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se p6os. A lua cheia brotou do mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.
Meu coração é um anjo de pedra de asa quebrada.
Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco.
Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de todos os sabores. Quem dele provar, será feliz para sempre.
Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas. Lareira acesa, poltronas fundas, macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China. No livro aberto ao lado, alguém sublinhou um verso de Sylvia Plath: "Im too pure for you or anyone". Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.
Meu coração é um filme noir projetado num cinema de quinta categoria. A platéia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de clichês.
Meu coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.
Meu coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor de strega. Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciações, pressentimentos, ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.
Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam destruindo tudo.
Meu coração é uma planta carnívora morta de fome.
Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos - ai de mim! ai, ai de mim!
Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Veja. Levam junto quem me ama, me levam junto também.
Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato de sola furada, verso de Mário Quintana, vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína, simulacro, varinha de incenso. Acesa, aceso - vasto, vivo: meu coração teu.
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”
Caio Fernando Abreu
“
Aceitei-me. Estou, porém, convencido que não estás em posição de compreender o significado pleno e total desta afirmação. Embora fazendo apelo a toda a simpatia, e mesmo à compaixão, que possas sentir por mim, apelando mesmo para a piedade em sentido humano e em sentido religioso, tu não poderás entender o que significa, para um homem como eu, aceitar-se. Terei de fazer, portanto, uma longa digressão: falar-te de mim em relação à solidão. Responde-me: ser-te-á alguma vez possível conceber que, até ao meu encontro com Roberto, eu nunca, absolutamente nunca, tivesse dito uma palavra de mim, sobre mim, a ninguém deste mundo? Responde-me: serás deveras capaz de avaliar a violência a que um ser humano, em boa saúde física e com um temperamento exuberante, tem de submeter-se para calar, para calar toda a sua vida? (...) A minha mãe (...) observava-me com um olhar que... sim, sentia naquele seu olhar uma interrogação, que aumentava até ao delírio a minha vontade de abrir a boca, de falar, de contar... mas calava-me! Houve um período em que me perguntava sem rodeios: qual seria para ti o supremo bem na vida? E, também sem rodeios, respondia: conseguir dizer a alguém aquilo que sou!
”
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Carlo Coccioli
“
Na manhã seguinte, muito cedo, Fabrizio entrou numa igreja e, fixando o altar, disse humildemente:
«Pai: não vim pedir-te perdão nem agradecer-te. Só posso pedir-te perdão dos erros cometidos e, quanto às minhas opções, sabes que não tenho culpa. Não vim agradecer-te. É tal a felicidade que me invade, que é como se me fosse dada por um destino: nascida comigo, ou para mim, pelos séculos dos séculos. Vim aqui, Pai, testemunhar-te que ouvi a tua voz e identifiquei o teu sinal. Vim pedir-te que não me faças indigno dele. Vim dizer-te que, ao olhar Laurent, é a ti que descubro: tu já não és invisível, difuso, indiferente, mas vivo, concreto, actuante, confortante. Fonte de amor: amor. Ajuda-me por isso, tu que és amor, a amar. Ajuda-me a consumir-me no amor, a não temer o seu fogo, a não vacilar frente ao risco e ao medo do ridículo, a não traficar, a não aviltar, a não degradar, a não corromper. Ajuda-me a distinguir o verdadeiro amor do falso amor. Ajuda-me a não ceder às emboscadas dos inimigos do amor. Ajuda-me a suportar os ataques dos padres que, do amor, só conhecem o nome. Dos juizes que, com leis adulteradas, dão sentenças sobre o amor. Dos poetas, que elogiam os atributos, não a substância, do amor. Dos moralistas, que encarceram o amor numa prisão de dogmas. Ajuda-me, tu que és amor, agora que o teu tempo chegou.»
(...)
A carta era esta:
«Je t’ai parlé de plénitude: je veux te dire maintenant ce que je vois dans tes yeux. Chacun de nous possédait un paradis qu’un jour nous avons perdu ; la nostalgie de ce paradis nous fait vivre et quelquesfois nous fait mourir. Cela, si tu veux, Laurent, c’est de la litérature ; mais, quand je te regarde dans les yeux, et que tu me regardes un instant, ce n’est pas de la litérature : C’est le temp de Dieu. En toi, je le retrouve. Et je me retrouve mois-même. Je regardais hier soir (nous étions dans le metro) ta peau ; et je me disais : C’est ma peau. De tes mains, je disais : Ce sont mes mains. Je me sens si exalté devant cette découverte ! Je t’aime. Je n’ai plus peur. Tu es grand et beau comme le soleil ; quand tu ris, c’est un rayon de soleil qui sort de toi. Je t’aime.»
”
”
Carlo Coccioli (Fabrizio Lupo)
“
Quero acrescentar, à guisa de informações sobre a jovem e
sobre mim, que vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das coisas neste momento.
”
”
Clarice Lispector (A Hora da Estrela)
“
O prospecto de ser algo, mesmo por dinheiro, sempre produziu em mim uma certa ansiedade, pois ‘ser gay’, ‘ser lésbica’ parece muito mais do que uma simples injunção para me tornar quem ou algo que eu já sou. E de forma alguma acalma essa minha ansiedade dizer que isso é ‘parte’ do que eu sou. (BUTLER, 1993b, p. 307) Ao
”
”
Tales Gubes (Notas sobre cultura visual e pedagogia queer: Para pensar a sexualidade na educação (Portuguese Edition))
“
Depois de Aqcha, a cor da paisagem mudou de chumbo para alumínio, tornou-se pálida e mortiça, como se há milhares e milhares de anos o sol lhe sugasse a alegria. Estávamos agora na planície de Balkh, que se diz ser a cidade mais antiga do mundo. Os maciços de árvores verdes, os tufos de erva áspera e cortante em forma de repuxo, quase pareciam negros, pois destacavam-se sobre o fundo daquela tonalidade mortal. De vez em quando, avistávamos um campo de cevada. O cereal estava maduro, e turcomanos em tronco nu colhiam-no com foices. Mas não era castanho nem dourado, nem lembrava Ceres, nem abundância. Parecia ter embranquecido prematuramente, como o cabelo de um louco, perdendo tudo o que nele fora nutritivo. E destas extensas mortalhas, primeiro a norte e depois a sul da estrada, elevavam-se as formas branco-acizentadas e carcomidas de uma arquitectura antiga, montículos, sulcados e esmaecidos pela chuva e pelo sol, mais estafados do que qualquer obra humana por mim vista: uma pirâmide torta, uma plataforma afunilada, um maciço de ameias, um animal agachado, com que os gregos de Báctria estavam familiarizados, e Marco Polo depois deles. Já deviam ter desaparecido. Mas foi o próprio impacto do sol, que, congregando a pertinácia daquele barro de cinza, permitiu conservar uma centelha inextinguível de forma, a centelha que não se encontra numa fortificação romana, nem numa mamoa coberta de erva, a centelha que continua a tremeluzir num mundo mais luminoso do que ela própria, cansada como só um suicida frustrado consegue ser.
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Robert Byron (The Road to Oxiana)