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Admitindo que todos temos de conservar certo equilíbrio, o principal interesse consiste em saber como tal equilíbrio pode ser conservado. Foi esta questão que o paganismo tentou resolver e foi esta a questão que julgo ter sido resolvida pelo Cristianismo, e resolvida de forma deveras estranha.
O paganismo declarou que a virtude estava no equilíbrio, e o Cristianismo veio declarar que ela estava no conflito: na colisão de duas paixões aparentemente opostas. [...] A coragem é quase uma contradição em seus termos. Significa um forte desejo de viver, que toma a forma de uma absoluta prontidão para morrer. 'Aquele que perder a sua vida salvá-la-á', este não é um lema de misticismo para santos e heróis: é um conselho diário para alpinistas e marinheiros. Podia estar impresso no guia do alpinista ou num manual de instrução militar. Este paradoxo é todo o princípio da coragem. [...] Um soldado cercado pelos inimigos, se quiser salvar-se, precisa combinar um forte desejo de viver com uma extraordinária despreocupação em relação à morte. Não deve apenas agarrar-se à vida, pois nesse caso seria um covarde e não escaparia. Não deve tampouco esperar pela morte, pois seria então um suicida e também não escaparia. Deve procurar a vida com um ímpeto de furiosa indiferença para com ela; deve desejar a vida como quem deseja água e, no entanto, deve beber a morte como quem bebe vinho. [...] Mas o Cristianismo fez mais: estabeleceu-lhe limites nas terríveis sepulturas do suicida e do herói, apontando a distância que separa aquele que morre por amor à vida daquele que morre por amor à morte. E isto tem mantido, desde então, acima das lanças europeias, o pendão do mistério da Cavalaria: a coragem cristã, que é um desdém pela morte, e não a coragem chinesa, que é um desdém pela vida.
Comecei então a compreender que esta dupla paixão era a chave cristã para a ética em toda parte. Em todo lugar o credo tornava moderado o embate contínuo entre duas impetuosas emoções. Tomemos, por exemplo, a questão da modéstia, do equilíbrio entre o mero orgulho e a mera prostração. [...] O Cristianismo procurou, por este mesmo estranho expediente, salvar ambas as poesias [as poesias de ser orgulhoso e de ser humilde]. Separou as duas ideias e exagerou-as ambas. Por um lado, o homem tinha de ser mais presunçoso do que jamais fora e, por outro, tinha de ser mais humilde do que nunca. Considerado como Homem, sou a principal das criaturas; considerado como um homem, sou o maior dos pecadores. [...]
A caridade é um paradoxo, como a modéstia e a coragem. Grosseiramente falando, a caridade significa uma dessas duas coisas: perdoar atos imperdoáveis ou amar pessoas que não são dignas de amor. [...] Um pagão sensato diria que existem pessoas a quem devemos perdoar e outras a quem não devemos perdoar. [...] E mais uma vez apareceu o Cristianismo. Chegou impetuosamente com uma espada e separou uma coisa da outra. Separou o crime do criminoso. Ao criminoso devemos perdoar até setenta vezes sete. Ao crime, não devemos perdoá-lo de forma alguma. [...] Devíamos ser muito mais austeros para com o roubo do que tínhamos sido anteriormente, e muito mais compassivos para com o ladrão do que nos mostráramos até então. [...] E, quanto mais eu observava o Cristianismo, mais verificava que ele tinha estabelecido uma regra e uma ordem e que o principal objetivo dessa ordem era possibilitar que as coisas boas se manifestassem com maior ímpeto.
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G.K. Chesterton (Orthodoxy)