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A Isto chamam a vida. A este vazio. A este não saber que fazer das mãos quando, enfim, da máquina (da prostituição) as mãos se libertaram. A esta mesquinha oscilação entre nada e coisa nenhuma chamam vida. Enquanto nos comem a carne. A vida, no meu caso, António Almeida, de um funcionário exemplar. Dias cautelosos, anos silenciosos de obediência, cursivo distinto, camisa no fio mas limpa, como tem passado Vossa Excelêncía, etc. E a boca seca. E um cordão de císco na garganta, a palavra sempre adiada. A isto, ao meu barro domesticado, a esta voz dócil, ajoelhada, chamam vida; dócil, e na terra derramada.
Aqui estou pois sentado na vida. Impotente. Como quem se senta num túmulo. Os braços, as pernas paralisadas. A cabeça cheia de fórmulas sem sentido — cheia de pedras. Pedras de cenário. O sangue parado nas veias, apodrecido por um dique (o Chefe impera do alto da sua própria solidão e sussurra entre dentes, içando lentamente os olhos por cima dos óculos: «um bom funcionário jamais se apaixona, rapazes; lembrai a eficiência das máquinas; das formigas»); o sangue gelado, contido em seus vasos e controlado pelas conveniências — que palavra (de vidro mas não transparente): conveniências. E que dizer do sexo? Dos rios logo ressequidos que um dia iluminaram o meu sexo? Minha mulher que o diga, ela também apodrecida. Se ao menos eu pudesse correr, blasfemar, trepar às montanhas — eu que tenho medo e não sei fazer revoluções, nem falar delas; correr durante cinco anos e durante outros tantos esconder-me numa toca. Mas de que serve queixar-me? Comigo falo.
De que te serve, companheiro, ranger os dentes? E nada resolve correr ou ser dócil ou sentar-me junto ao fogo. E da violência? Que dizer dessa cabra? A morte continua do ventre ao túmulo — e chamam-lhe (sem ironia!) vida. Através deste caminho obscuro tomo nas mãos as contradições da vida, essa que, ao mesmo tempo, é, deveria ser, truculenta festa da carne, tumultuosa festa do espírito. É, deveria ser, uma cerimónia da qual sempre saíssemos feridos, amputados, refeitos — e mais velhos, e mais cansados, e mais humildes — mas sem este sabor na boca, este sabor que posso apenas situar entre nada e coisa nenhuma. Nem cúmplices da terra somos; nem quase já linguagem tem o nosso corpo…
As Férias ou o Tema do Funcionário Cansado, 1967, incluído na recolha Contos da Morte Eufórica, (Dom Quixote, 1984)
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