Cidade De Deus Quotes

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O BEIJO E A LÁGRIMA Quero um beijo, pediu ela. Um sismo abalou o peito dele. E devotou o calor de lava dos seus lábios, entontecida água na cascata. Entusiamado, ele se preparou para, de novo, duplicar o corpo e regressar à vertigem do beijo. Mas ela o fez parar. Só queria um beijo. Um único beijo para chorar. Há anos que não pranteava. E a sua alma se convertia em areia do deserto. Encantada, ela no dedo recolheu a lágrima. E se repetiu o gesto com que Deus criou o Oceano.
Mia Couto (Idades Cidades Divindades)
Mas, dos bens terrenos aos celestiais e dos visíveis aos invisíveis, existem alguns bens superiores a outros. E são desiguais justamente para que todos possam existir.
Augustine of Hippo (A Cidade de Deus: Obra Completa com os 22 Livros (Portuguese Edition))
Por que determinada ação — como casar-se, jejuar no Ramadã ou votar em um dia de eleições — parece significativa para mim? Porque meus pais também a consideram significativa, assim como meus irmãos, meus vizinhos, pessoas em cidades próximas e mesmo habitantes em países distantes.
Yuval Noah Harari (Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã)
Religiões são, por definição, metáforas, apesar de tudo: Deus é um sonho, uma esperança, uma mulher, um escritor irônico, um pai, uma cidade, uma casa com muitos quartos, um relojoeiro que deixou seu cronômetro premiado no deserto, alguém que ama você – talvez até, contra todas as evidências, um ente celestial cujo único interesse é assegurar-se que o seu time de futebol, o seu exército, o seu negócio ou o seu casamento floresça, prospere e triunfe sobre qualquer oposição. Religiões são lugares para ficar, olhar e agir, pontos vantajosos a partir dos quais se observa o mundo.
Neil Gaiman (American Gods)
Filho caríssimo de Egeu: somente os deuses fogem aos males da velhice e aos da morte; o tempo onipotente abate tudo mais; decai a força da terra, decai o corpo; a lealdade finda e floresce a perfídia e tanto entre os amigos quanto entre as cidades não prevalece para sempre o mesmo ânimo; agora para uns, amanhã para outros, cede a doçura seu lugar ao amargor e depois volta a transformar-se em amizade
Sophocles (Oedipus at Colonus (The Theban Plays, #2))
- Sim, é talvez tudo uma ilusão... E a Cidade a maior ilusão! Tão facilmente vitorioso redobrei de facúndia. Certamente, meu Príncipe, uma ilusão! E a mais amarga, porque o Homem pensa ter na Cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. (...) Na Cidade perdeu ele a força e beleza harmoniosa do corpo, e se tornou esse ser ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos moles como trapos, de nervos trémulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentaduras de chumbo, sem sangue, sem febra, sem viço, torto, corcunda - esse ser em que Deus, espantado, mal pode reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão! Na Cidade findou a sua liberdade moral: cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para uma dependência: pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar; e rico e superior como um Jacinto, a Sociedade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimónias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou de um quartel... A sua tranquilidade (bem tão alto que Deus com ela recompensa os santos ) onde está, meu Jacinto? Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão, ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar - e que, nunca fartando o desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos mais genuinamente humanos logo na Cidade se desumanizam! Vê, meu Jacinto! São como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga; e adiante obriga a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que o interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da rivalidade ou do orgulho. E o Amor, na Cidade, meu gentil Jacinto? Considera esses vastos armazéns com espelhos, onde a nobre carne de Eva se vende, tarifada ao arratel, como a de vaca! Contempla esse velho Deus do Himeneu, que circula trazendo em vez do ondeante facho da Paixão a apertada carteira do Dote! Espreita essa turba que foge dos largos caminhos assoalhados em que os Faunos amam as Ninfas na boa lei natural, e busca tristemente os recantos lôbregos de Sodoma ou de Lesbos!... Mas o que a cidade mais deteriora no homem é a Inteligência, porque ou lha arregimenta dentro da banalidade ou lha empurra para a extravagância. Nesta densa e pairante camada de Idéias e Fórmulas que constitui a atmosfera mental das Cidades, o homem que a respira, nela envolto, só pensa todos os pensamentos já pensados, só exprime todas as expressões já exprimidas: - ou então, para se destacar na pardacenta e chata rotina e trepar ao frágil andaime da gloríola, inventa num gemente esforço, inchando o crânio, uma novidade disforme que espante e que detenha a multidão como um monstrengo numa feira. Todos, intelectualmente, são carneiros, trilhando o mesmo trilho, balando o mesmo balido, com o focinho pendido para a poeira onde pisam, em fila, as pegadas pisadas; - e alguns são macacos, saltando no topo de mastros vistosos, com esgares e cabriolas. Assim, meu Jacinto, na Cidade, nesta criação tão antinatural onde o solo é de pau e feltro e alcatrão, e o carvão tapa o céu, e a gente vive acamada nos prédios como o paninho nas lojas, e a claridade vem pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames - o homem aparece como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si um espírito que é passivo como um escravo ou impudente como um Histrião... E aqui tem o belo Jacinto o que é a bela Cidade! (...) -Sim, com efeito, a Cidade... É talvez uma ilusão perversa!
Eça de Queirós (A Cidade e as Serras)
Omolu mandou a bexiga negra para a cidade. Mas lá em cima os homens ricos se vacinaram, e Omolu era um deus das florestas da África, não sabia destas coisas de vacina. E a varíola desceu para a cidade dos pobres e botou gente doente, botou negro cheio de chaga em cima da cama. Então vinham os homens da saúde pública, metiam os doentes num saco, levavam para o lazareto distante. As mulheres ficavam chorando, porque sabiam que eles nunca mais voltariam.
Jorge Amado (Capitães da Areia)
Mestre, meu mestre querido! Coração do meu corpo intelectual e inteiro! Vida da origem da minha inspiração! Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida? Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada, Alma abstrata e visual até aos ossos, Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo, Refúgio das saudades de todos os deuses antigos, Espírito humano da terra materna, Flor acima do dilúvio da inteligência subjetiva... Mestre, meu mestre! Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos, Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser, Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos, Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim! Meu mestre e meu guia! A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou, Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente, Natural como um dia mostrando tudo, Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade. Meu coração não aprendeu nada. Meu coração não é nada, Meu coração está perdido. Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu. Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi! Depois tudo é cansaço neste mundo subjetivado, Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas, Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas, Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente. Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento Pela indiferença de toda a vila. Depois, tenho sido como as ervas arrancadas, Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido. Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça, E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém. Depois, mas por que é que ensinaste a clareza da vista, Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara? Por que é que me chamaste para o alto dos montes Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar? Por que é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela Como quem está carregado de ouro num deserto, Ou canta com voz divina entre ruínas? Por que é que me acordaste para a sensação e a nova alma, Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha? Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele Poeta decadente, estupidamente pretensioso, Que poderia ao menos vir a agradar, E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver. Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano! Feliz o homem marçano Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada, Que tem a sua vida usual, Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio, Que dorme sono, Que come comida, Que bebe bebida, e por isso tem alegria. A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação. Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo. Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.
Fernando Pessoa (Poemas de Álvaro de Campos (Obra Poética IV))
Ouvi uma vez contar que, na região de Náucratis, no Egipto, houve um velho deus deste país, deus a quem é consagrada a ave que chamam Íbis, e a quem chamavam Thoth. Dizem que foi ele que inventou os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, bem como o jogo das damas e dos dados e, finalmente, os caracteres gráficos (escrita). Nesse tempo, todo o Egipto era governado por Tamuz, que residia no sul do país, numa grande cidade que os gregos designam por Tebas do Egipto, onde aquele deus era conhecido pelo nome de Ámon. Thoth encontrou-se com o monarca, a quem mostrou as suas artes, dizendo que era necessário dá-las a conhecer a todos os egípcios. Mas o monarca quis saber a utilidade de cada uma das artes e, quanto o inventor as explicava, o monarca elogiava ou censurava, consoante as artes lhe pareciam boas ou más. Foram muitas, diz lenda as considerações que sobre cada arte Tamuz fez a Thoth quer condenando, quer elogiando, e seria prolixo enumerar todas aquelas considerações. Mas, quando chegou a vez da invenção da escrita, exclamou Thoth: «Eis, oh rei, uma arte que tornará os egípcios mais sábios e os ajudará a fortalecer a memória, pois com a escrita descobri o remédio para a memória.» - «Oh, Thoth, mestre incomparável, uma coisa é inventar uma arte, outra julgar os benefícios ou prejuízos que dela advirão para os outros! tu, neste momento e como inventor da escrita, esperas dela, e com entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir a fazer! ela tornará os homens mais esquecidos, pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras, e só se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais, e não dos assuntos em si mesmos.»
Plato
Repensei no corpo em desordem da professora, no corpo desgovernado de Melina. Sem uma razão evidente, comecei a olhar com atenção para as mulheres ao longo da estrada. De repente me veio a impressão de ter vivido com uma espécie de limitação do olhar: como se só fosse capaz de focalizar nosso grupo de meninas, Ada, Gigliola, Carmela, Marisa, Pinuccia, Lila, a mim mesma, minhas colegas de escola, e jamais tivesse realmente notado o corpo de Melina, o de Giuseppina Peluso, o de Nunzia Cerullo, o de Maria Carracci. O único corpo de mulher que eu tinha examinado com crescente preocupação era a figura claudicante de minha mãe, e apenas por aquela imagem me sentira perseguida, ameaçada, temendo até agora que ela se impusesse de chofre à minha própria imagem. Naquela ocasião, ao contrário, vi nitidamente as mães da família do bairro velho. Eram nervosas, eram aquiescentes. Silenciavam de lábios cerrados e ombros curvos ou gritavam insultos terríveis aos filhos que as atormentavam. Arrastavam-se magérrimas, com as faces e os olhos encavados, ou com traseiros largos, tornozelos inchados, as sacolas de compra, os meninos pequenos que se agarravam às suas saias ou queriam ser levados no colo. E, meu Deus, tinham dez, no máximo vinte anos a mais do que eu. No entanto pareciam ter perdido os atributos femininos aos quais nós, jovens, dávamos tanta importância e que púnhamos em evidência com as roupas, com a maquiagem. Tinham sido consumidas pelo corpo dos maridos, dos pais, dos irmãos, aos quais acabavam sempre se assemelhando, ou pelo cansaço ou pela chegada da velhice, pela doença. Quando essa transformação começava? Com o trabalho doméstico? Com as gestações? Com os espancamentos? Lila se deformaria como Nunzia? De seu rosto delicado despontaria Fernando, seu andar elegante se transmutaria nas passadas abertas e braços afastados do tronco, de Rino? E também meu corpo, um dia, cairia em escombros, deixando emergir não só o de minha mãe, mas ainda o do pai? E tudo o que eu estava aprendendo na escola se dissolveria, o bairro tornaria a prevalecer, as cadências, os modos, tudo se confundiria numa lama escura, Anaximandro e meu pai, Fólgore e dom Achille, as valências e os pântanos, os aoristos, Hesíodo e a vulgariadade arrogante dos Solara, como de resto há milênios acontecia na cidade, sempre mais decomposta, sempre mais degradada?
Elena Ferrante (The Story of a New Name (Neapolitan Novels, #2))
Sei, divino Cesar, que me esperas com impaciencia e que, victima da fidelidade do teu coração, gemes com saudades minhas noite e dia. Sei que me accumularias de favores, que me offerecias ser prefeito da tua guarda e que nomearias Tigellino guardador de mulas, em qualquer das propriedades que herdaste, depois do envenenamento de Domicia - cargo para o qual parece ter sido creado pelos deuses. Mas, ai! tens de me desculpar. Pelo Hades e, em particular, pelos manes de tua mãe, de tua mulher, de teu irmão e de Seneca, juro-te que me é impossivel estar ao pé de ti. A vida é um thesoiro, meu amigo, e lisonjeio-me de ter sabido extrahir d'esse thesoiro as joias mais preciosas. Mas ha coisas na vida que sou incapaz de supportar durante mais tempo. Não vás pensar, conjuro-te, que me melindrou o assassinio de tua mãe, de tua mulher, de teu irmão, que me indignei com o incendio de Roma, que fiquei magoado com o processo que consiste em mandar para Erebo toda a gente honesta do teu Imperio... Não, meu caro neto de Chronos! A morte é a herança commum dos entes sublunares, e, demais, não havia maneira de procederes d'outra forma. Mas supportar, durante muitos annos ainda, o teu canto que me fere os ouvidos, vêr as tuas pernas domicianas - as tuas tibias descarnadas - saracotearem-se na dança pirrhyca, vêr-te representar, ouvir-te declamar, ouvir-te recitar poemas escriptos por ti, pobre poeta de feira!... ah! na verdade, semelhante perspectiva era superior ás minhas fôrças. E senti em mim a incoercivel necessidade de ir ter com os meus paes. Roma tapa os ouvidos, o universo cobre-te de gargalhadas. Não quero tornar a córar por tua causa. Não quero, não posso mais! O uivar de Cerbero, se se pudesse comparar com o teu modo de cantar, meu amigo, affligir-me-hia menos, porque nunca fui amigo de Cerbero e não tinha por dever envergonhar-me da sua voz. Tem saúde, mas deixa-te de canto; mata, mas não faças versos; envenena, mas não dances; incendeia cidades, mas abandona a cithara. Tal é o ultimo voto e o amigavel conselho que te dá o Arbitro das Elegancias.
Henryk Sienkiewicz (Quo Vadis)
O pilar e o anel em forma de círculo representam os princípios masculino e feminino. Na Grécia antiga o pilar era o "hérnia" que ficava do lado de fora da casa representando Hermes, enquanto a lareira redonda no interior simbolizava Héstia. Na índia e em outras partes do leste, o pilar e o círculo ficam "copulados". O lingam, ou símbolo fálico, penetra o yoni ou anel feminino, o qual se estende sobre ele como num jogo infantil de arremesso de argolas. Lá o pilar e o círculo juntavam-se, enquanto os gregos e os romanos conservavam esses mesmos dois símbolos de Hermes e Héstia relacionados, mas à parte. Para enfatizar mais essa separação, Héstia é uma deusa virgem que nunca será penetrada, como também a mais velha deusa olímpica. Ela é tia solteirona de Hermes considerado como o mais jovem deus olímpico - uma união altamente improvável. Desde os tempos gregos as culturas ocidentais têm enfatizado a dualidade, uma divisão ou diferenciação entre masculino e feminino, mente e corpo, logos e eros, ativo e receptivo, que depois se tornaram valores superiores e inferiores, respectivamente. Quando Héstia e Hermes eram ambos honrados nos lares e templos, os valores femininos de Héstia eram os mais importantes, e ela recebia as mais altas honras. Na época havia uma dualidade complementar. Héstia desde então foi desvalorizada e esquecida. Seus fogos sagrados não são mais cuidados e o que ela representa não é mais honrado. Quando os valores femininos de Héstia são esquecidos e desonrados, a importância do santuário interior, interiorização para encontrar significado e paz, e da família como santuário e fonte de calor ficam diminuídos ou são perdidos. Além disso, o sentimento de uma ligação básica com os outros desaparece, como desaparece também a necessidade dos cidadãos de uma cidade, país ou da terra se ligarem por um elo espiritual comum. Num nível místico, os arquétipos de Héstia e de Hermes se relacionam através da imagem do fogo sagrado no centro. Hermes-Mercúrio era o espírito alquímico Mercúrio, imaginado como fogo elementar. Tal fogo era considerado a fonte do conhecimento místico, simbolicamente localizado no centro da Terra. Héstia e Hermes representam idéias arquetípicas do espírito e da alma. Hermes é o espírito que põe fogo na alma. Nesse contexto, Hermes é como o vento que sopra a brasa no centro da lareira, fazendo-a acender-se. Do mesmo modo, as idéias podem excitar sentimentos profundos, ou as palavras podem tornar consciente o que foi inarticuladamente conhecido e iluminado o que foi obscuramente percebido.
Jean Shinoda Bolen (Goddesses in Everywoman)
Três coisas estão faltando. A primeira: você sabe por que livros como este são tão importantes? Porque têm qualidade. E o que significa a palavra qualidade? Para mim significa textura. Este livro tem poros. Tem feições. Este livro poderia passar pelo microscópio. Você encontraria vida sob a lâmina, emanando em profusão infinita. Quanto mais poros, quanto mais detalhes de vida fielmente gravados por centímetro quadrado você conseguir captar numa folha de papel, mais “literário” você será. Pelo menos, esta é a minha definição. Detalhes reveladores. Detalhes frescos. Os bons escritores quase sempre tocam a vida. Os medíocres apenas passam rapidamente a mão sobre ela. Os ruins a estupram e a deixam para as moscas. Entende agora por que os livros são odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida. Os que vivem no conforto querem apenas rostos com cara de lua de cera, sem poros nem pelos, inexpressivos. Estamos vivendo num tempo em que as flores tentam viver de flores, e não com a boa chuva e o húmus preto. Mesmo os fogos de artifício, apesar de toda a sua beleza, derivam de produtos químicos da terra. No entanto, de algum modo, achamos que podemos crescer alimentando-nos de flores e fogos de artifício, sem completar o ciclo de volta à realidade. Você conhece a lenda de Hércules e Anteu, o gigantesco lutador cuja força era invencível desde que ele ficasse firmemente plantado na terra? Mas quando Hércules o ergueu no ar, deixando-o sem raízes, ele facilmente pereceu. Se não existe nessa lenda nenhuma lição para nós hoje, nesta cidade, em nosso tempo, então sou um completo demente. Bem, aí temos a primeira coisa de que precisamos. Qualidade, textura da informação. — E a segunda? — Lazer. — Ah, mas já temos muitas horas de folga. — Horas de folga, sim. Mas e tempo para pensar? Quando você não está dirigindo a cento e sessenta por hora, numa velocidade em que não consegue pensar em outra coisa senão no perigo, está praticando algum jogo ou sentado em algum salão onde não pode discutir com o televisor de quatro paredes. Por quê? O televisor é “real”. É imediato, tem dimensão. Diz o que você deve pensar e o bombardeia com isso. Ele tem que ter razão. Ele parece ter muita razão. Ele o leva tão depressa às conclusões que sua cabeça não tem tempo para protestar: “Isso é bobagem!”. — Somente a “família” é “gente”. — Como disse? — Minha mulher diz que os livros não são “reais”. — Graças a Deus que não. Você pode fechá-los e dizer: “Espere um pouco aí”. Você faz com eles o papel de Deus. Mas quem consegue se livrar das garras que se fecham em torno de uma pessoa que joga uma semente num salão de tevê? Ele dá a você a forma que ele quiser! É um ambiente tão real quanto o mundo. Ele se torna a verdade e é a verdade. Os livros podem ser derrotados com a razão. Mas com todo o meu conhecimento e ceticismo, nunca consegui discutir com uma orquestra sinfônica de cem instrumentos, em cores, três dimensões, e ao mesmo tempo estar e participar desses incríveis salões. Como você vê, meu salão não passa de quatro paredes de gesso. E veja. — Faber exibiu dois pequenos tampões de borracha. — Para minhas orelhas, quando ando nos jatos subterrâneos. — O Dentifrício Denham; eles não tecem, nem fiam — disse Montag, os olhos cerrados. — E para onde vamos? Os livros nos ajudariam? — Só se nos fosse dada a terceira coisa necessária. A primeira, como eu disse, é a qualidade da informação. A segunda, o lazer para digeri-la. E a terceira, o direito de realizar ações com base no que aprendemos da interação entre as duas primeiras.
Ray Bradbury (Fahrenheit 451)
...Nessa amedrontadora etapa da história, enquanto se acumulam ruínas espirituais e materiais, essas providenciais iniciativas de caridade, que talvez poderiam parecer suficientes às necessidades comuns de outros tempos, tornaram-se, infelizmente, inadequadas. Vislumbramos, veneráveis irmãos, intermináveis multidões de crianças, que, gemendo e quase exaustas de fome, com suas mãozinhas pedem pão "não tendo ninguém que o reparta" (cf. Lm 4, 4); que, privadas de casa e de roupa, congeladas pelo frio do inverno, estão prestes a morrer, não tendo a mãe ou o pai que as cubra e as aqueça; que, enfim, doentes e talvez também atingidas pela tuberculose, falta o remédio adequado e os necessário cuidados. Trata-se de multidões, que com dor vemos perambulando pelas ruas barulhentas da cidade, impelidas pelo ócio e pela corrupção, ou vadiando incertas pelas cidades, vilas e campos, enquanto, infelizmente, ninguém lhes concede segura protecção contra a miséria, os vícios e os delitos. É por isso, veneráveis irmãos, que amando com "o mesmo amor de Cristo" (Fl 1, 8) esses nossos pequeninos filhos, dirigimos um caloroso apelo a vós e a quantos estão animados de nobres sentimentos de misericórdia e de piedade, para que todo tipo de esforço e iniciativa de caridade cristã seja dedicado com generosos entendimentos e propósitos para alívio e conforto de tantos. Nada se transcure daquilo que os nossos tempos sugerem; e se excogitem também novos sistemas e métodos, onde se possa, com o concurso de todos os bons, levar oportunos remédios aos males presentes, impedindo para o futuro deletérias consequências. Queira Deus, com a ajuda de sua graça, que quanto antes os vícios que arrastam tantas crianças abandonadas sejam extintos, sendo substituídos pela virtude, de modo que o ócio vão e a triste inércia dêem lugar ao honrado e alegre trabalho, e que a fome e a nudez de muitos obtenha o necessário socorro da divina caridade de Cristo, que especialmente nos nossos tempos deve reviver, crescer e flamejar nos seus sequazes. Tudo isso não só é de grande vantagem para a religião católica, mas também para a sociedade civil; já que, como todos sabem, os cárceres e as casas de recuperação não estariam tão repletos de criminosos, se os métodos e as medidas preventivas fossem aplicados oportunamente e em maior escala no que se refere à juventude; e se a infância crescesse sadia, íntegra e operosa por toda parte, mais facilmente haveria cidadãos credenciados com as maiores qualidades morais e físicas. Em uma palavra, de probidade e de firmeza.
Pope Pius XII
Mapas têm POTÊNCIA; se adequadamente decifrados, geram uma riqueza inestimável de saber. Codificados nas pedras desta cidade estão símbolos cujo trovejar basta para despertar os deuses adormecidos e submersos no leito oceânico dos sonhos. Para o melhor ou o pior.
Alan Moore (From Hell)
Aqui, Neera, longe De homens e de cidades, Por ninguém nos tolher O passo, nem vedarem A nossa vista as casas, Podemos crer-nos livres. (...) Mas aqui não nos prendem Mais coisas do que a vida, Mãos alheias não tomam Do nosso braço, ou passos Humanos se atravessam Pelo nosso caminho. Não nos sentimos presos Senão com pensarmos nisso, Por isso não pensemos E deixemo-nos crer Na inteira liberdade Que é a ilusão que agora Nos torna iguais dos deuses.
Fernando Pessoa (Fernando Pessoa - Poemas de Ricardo Reis (Portuguese Edition))
Já estava acostumado aos amputados, às vitimas do agente laranja, aos famintos, pobres, garotos de rua de seis anos de idade que você encontra às três da madrugada gritando "Feliz ano novo! Olá! Bye-Bye!" em inglês, e depois aponta para suas bocas e faz "bum bum?". Estou ficando quase indiferente aos garotos famintos, sem pernas, sem braços, cobertos de cicatrizes, desesperançados, dormindo no chão, em triciclos, na beirada do rio. Mas não estava preparado para o homem sem camisa, com um corte de cabelo a la forma de pudim, que me detém na saída do mercado, estendendo a mão. No passado ele sofreu queimaduras e tornou-se uma figura humana quase irreconhecível, a pele transformada numa imensa cicatriz sob a coroa de cabelos pretos. Da cintura para cima (e sabe Deus até onde), a pele é uma cicatriz só; ele não tem lábios, nem nariz, nem sobrancelha. Suas orelhas são como betume, como se tivesse mergulhado e moldado num alto-forno, sendo retirado pouco antes de derreter por completo. Mexe seus dentes como uma abóbora de Halloween, mas não emite um único som através do que foi um dia, uma boca. Sinto um murro no estômago. Minha animação exuberante dos dias e horas anteriores desmorona. Fico paralisado, piscando e pensando na palavra napalm, que oprime cada batida do meu coração. De repente nada mais é divertido. Sinto vergonha. Como pude vir até esta cidade, até este país por razões tão fúteis, cheio de entusiasmo por algo tão...sem sentido, como sabores, texturas, culinária? A famíla daquele homem deve ter sido pulverizada, ele mesmo transformado num boneco desgraçado, como um modelo de cera de madame Tussaud, a pele escorrendo como vela pingando. O que estou fazendo aqui? Escrevendo um livro de merda? Sobre comida? Fazendo um programinha leve e inútil de tevê, um showzinho de bosta? A ficha caiu de uma vez e fiquei me desprezando, odiando o que faço e o fato de estar ali. Imobilizado, piscando nervosamente e suando frio, sinto que todo mundo na rua está me observando, que irradio culpa e desconforto, que qualquer passante vai associar os ferimentos daquele homem a mim e ao meu país. Dou uma espiada nos outros turistas ocidentais que vagueiam por ali com suas bermudas da Banana Republic e suas camisas pólo da Land´s End, suas confortáveis sandálias Weejun e Bierkenstock, e sinto um desejo irracional de assassiná-los. Parecem malignos, comedores de carniça. O Zippo com a inscrição pesa no meu bolso, deixou de ser engraçado, virou uma coisa tão pouco divertida quanto a cabeça encolhida de um amigo morto. Tudo o que comer terá gosto de cinzas daqui pra frente. Fodam-se os livros. Foda-se a televisão. Nem mesmo consigo dar algum dinheiro ao coitado. Tenho as mãos trêmulas, estou inutilizado, tomado pela paranoia, Volto correndo ao quarto refrigerado do New World Hotel, me enrosco na cama ainda desfeita, fico olhando para o teto com os olhos cheios de lágrimas, incapaz de digerir ou entender o que presenciei e impotente para fazer qualquer coisa a respeito. Não saio nem como nada pelas 24 horas seguintes. A equipe de tevê acha que estou tendo um colapso nervoso. Saigon...Ainda em Saigon. O que vim fazer no Vietnã?
Anthony Bourdain (A Cook's Tour: Global Adventures in Extreme Cuisines)
Vem, Noite antiquíssima e idêntica, Noite Rainha nascida destronada, Noite igual por dentro ao silêncio. Noite Com as estrelas lantejoulas rápidas No teu vestido franjado de Infinito. Vem, vagamente, Vem, levemente, Vem sozinha, solene, com as mãos caídas Ao teu lado, vem E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas. Funde num campo teu todos os campos que vejo, Faze da montanha um bloco só do teu corpo, Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo. Todas as estradas que a sobem, Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe. Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores, E deixa só uma luz e outra luz e mais outra, Na distância imprecisa e vagamente perturbadora. Na distância subitamente impossível de percorrer. Nossa Senhora Das coisas impossíveis que procuramos em vão, Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela. Dos propósitos que nos acariciam Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto. E que doem por sabermos que nunca os realizaremos... Vem, e embala-nos, Vem e afaga-nos. Beija-nos silenciosamente na fronte, Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam Senão por uma diferença na alma. E um vago soluço partindo melodiosamente Do antiquíssimo de nós Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida. Vem soleníssima, Soleníssima e cheia De uma oculta vontade de soluçar, Talvez porque a alma é grande e a vida pequena. E todos os gestos não saem do nosso corpo E só alcançamos onde o nosso braço chega, E só vemos até onde chega o nosso olhar. Vem, dolorosa, Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos, Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados, Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes. Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados. Vem, lá do fundo Do horizonte lívido, Vem e arranca-me Do solo de angústia e de inutilidade Onde vicejo. Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido, Folha a folha lê em mim não sei que sina E desfolha-me para teu agrado, Para teu agrado silencioso e fresco. Uma folha de mim lança para o Norte, Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei; Outra folha de mim lança para o Sul, Onde estão os mares que os Navegadores abriram; Outra folha minha atira ao Ocidente, Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro, Que eu sem conhecer adoro; E a outra, as outras, o resto de mim Atira ao Oriente, Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé, Ao Oriente pomposo e fanático e quente, Ao Oriente excessivo que eu nunca verei, Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta, Ao Oriente que tudo o que nós não temos. Que tudo o que nós não somos, Ao Oriente onde — quem sabe? — Cristo talvez ainda hoje viva, Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo... Vem sobre os mares, Sobre os mares maiores, Sobre os mares sem horizontes precisos, Vem e passa a mão pelo dorso da fera, E acalma-o misteriosamente, Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito! Vem, cuidadosa, Vem, maternal, Pé antepé enfermeira antiquíssima, que te sentaste À cabeceira dos deuses das fés já perdidas, E que viste nascer Jeová e Júpiter, E sorriste porque tudo te é falso e inútil. Vem, Noite silenciosa e extática, Vem envolver na noite manto branco O meu coração... Serenamente como uma brisa na tarde leve, Tranquilamente com um gesto materno afagando. Com as estrelas luzindo nas tuas mãos E a lua máscara misteriosa sobre a tua face. Todos os sons soam de outra maneira Quando tu vens. Quando tu entras baixam todas as vozes, Ninguém te vê entrar. Ninguém sabe quando entraste, Senão de repente, vendo que tudo se recolhe, Que tudo perde as arestas e as cores, E que no alto céu ainda claramente azul Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem, A lua começa a ser real.
Fernando Pessoa (Poemas de Álvaro de Campos (Obra Poética IV))
A jornada desse peregrino é constituída de várias etapas: O caminho para Jerusalém. Estamos juntos com a multidão, sentindo o cansaço físico do esforço empreendido na caminhada, agitados pela expectativa. Às portas da cidade. Com um suspiro, celebramos a chegada, a jornada cumprida. Diante do templo. Admiramos a grandiosidade, o Muro das Lamentações. Há choro de alegria e de arrependimento em meio ao burburinho dos cambistas e comerciantes. No pátio. Os cordeiros são imolados no altar do sacrifício, os sacerdotes ministram e os levitas louvam. Nossa vida devocional, na maior parte do tempo, está no pátio. No santuário. Adentramos a primeira porta, o Lugar Santo. O pão na mesa, representando o sustento, a Palavra; e o candelabro, representando a iluminação do Espírito. Ainda não é a presença de Deus. No Santo dos Santos. Aqui não há janelas. Deus está presente, e o sacerdote só podia entrar uma vez por ano. Uma câmara escura que só se ilumina pela shekiná de Deus, pela glória de Deus, pela luz própria de Deus. Hoje, podemos permanecer sempre na presença de Deus porque “temos plena confiança para entrar no Santo dos Santos pelo sangue de Jesus” (Hb 10:19).
Osmar Ludovico (Meditatio (Portuguese Edition))
A pergunta mais pertinente teria sido: Deus consegue acreditar em mim? Porque muita coisa aconteceu na Terra em quatro bilhões e meio de anos para eu achar que um Deus possa se importar comigo ou com meus problemas. Mas recentemente concluí que não existe outra explicação para o modo como você e eu acabamos no mesmo planeta, na mesma espécie, no mesmo século, no mesmo país, no mesmo estado, na mesma cidade, no mesmo corredor, na frente da mesma porta, pela mesma razão, no mesmo instante. Se Deus não acreditasse em mim, então eu teria que acreditar que você foi só uma coincidência. E, para mim, você ser uma coincidência em minha vida é bem mais difícil de compreender que a mera existência de um poder supremo.
Colleen Hoover (All Your Perfects (Hopeless, #3))
Não me esquecerei também de dizer em que desgraças caíram os desertores da sua nação, a maneira como o Templo foi queimado, contra a vontade de Tito, a quantidade de riquezas consagradas a Deus que o fogo destruiu; a destruição completa da cidade, os prodígios que precederam essa extrema desolação, a escravidão de nossos tiranos, o grande número daqueles que foram levados cativos e suas diversas vicissitudes, de que maneira os romanos perseguiram os que escaparam da guerra e depois de os ter vencido, destruíram completamente as praças e os lugares para onde eles se haviam retirado.
Flávio Josefo (História dos Hebreus (Portuguese Edition))
Custódio, o fictício dono de uma confeitaria situada na rua do Catete, acordou naquela manhã alarmado pelas notícias a respeito da Proclamação da República. Dias antes, por infelicidade, havia encomendado a pintura de nova placa para identificar, com letras bem grandes e coloridas, o nome de seu estabelecimento: Confeitaria do Império. Combinado o preço, Custódio voltara tranquilo para casa deixando o pintor às voltas com o seu trabalho. Só ao acordar na manhã do dia 15 deu-se conta da confusão em que se metera. A Monarquia brasileira, que ele pretendia homenagear com a placa, acabara de cair. Era preciso sustar a pintura imediatamente. “Pare no d...”, foi a mensagem que despachou com urgência para o pintor. Para seu desespero, no entanto, descobriu que o profissional já concluíra a tarefa. Lá estava agora a nova placa, com a tinta ainda fresca anunciando: Confeitaria do Império. E logo no centro da cidade, onde militares e civis republicanos comemoravam a queda do antigo regime e a instalação da República! Custódio rapidamente chegou à conclusão de
Anonymous
XXIII Tanta, mas tanta, a fama que havia, Até à Índia, Macau e Nagasaqui; Esta última que outra fama teria… De portugueses nasceria… ali… A cidade que tanto sofreria… Crueldade humana que jamais vi! Não! Deuses não podem ter sonhado! Decerto, aos Lusos não teriam guiado!
José Braz Pereira da Cruz (Esta é a Ditosa Pátria Minha Amada)
Crônica da Cidade do Rio de Janeiro No alto da noite do Rio de Janeiro, luminoso, generoso, o Cristo Redentor estende os braços. Debaixo desses braços os netos dos escravos encontram amparo. Uma mulher descalça olha o Cristo, lá de baixo, e apontando seu furgor, diz, muito tristemente: “Daqui a pouco, já não estará mais aí. Ouvi dizer que vão tirar Ele daí.” “Não se preocupe”- tranquiliza sua vizinha – “Não se preocupe, Ele volta.” A polícia mata muitos, e mais ainda mata a economia. Na cidade violenta, soam tiros e também tambores: os atabaques, ansiosos de consolo e de vingança, chamam os deuses africanos. Cristo sozinho não basta.
Eduardo Galeano
sabedoria não parece ser coisa que Deus goste de ver nos seres que criou à sua imagem
Victor Eustáquio (A Cidade dos Sete Mares)
— Negadores são blasfemadores e hereges. Aqueles que negam a verdade da Fé. — E você sabe o que acontece a Negadores, Vaelin? — São mortos e pendurados nas muralhas da cidade em jaulas. — São pendurados nas muralhas ainda vivos e são deixados para morrerem de fome. Têm as línguas cortadas, para que os gritos não incomodem os transeuntes. Isso é feito simplesmente porque seguem uma fé diferente. — Não há Fé diferente. — Sim, há, Vaelin! — O tom de Erlin era duro, implacável. — Eu lhe disse que viajei por todo o mundo. Há inúmeras crenças, inúmeros deuses. Há mais modos de reverenciar o divino do que estrelas no céu.
Anthony Ryan
A prece no sertão é sublime. Parece que Deus deve ser mais visível no espetáculo maravilhoso de criação. Crer-se-ia ali que cada folha, cada brisa, cada volátil murmura seu nome em místico segredar, cada gota espelha sua imensidade. Quantas vezes o homem, a sós, no regaço da floresta, não ouve ruídos indefiníveis, que ele não pode adunar no espírito a coisa alguma conhecida? Ora suave cicio como a nota de uma harpa eólia a lhe prurir a alma; ora um som profundo e misterioso a premar-lhe o anélito no lábio? Sempre como uma voz que faz vibrar-lhe as fibras do sensório, uma por uma, chamando-o a cogitações transcendentes sobre imaterial? Quem fala nas solidões? De onde vem o mistério que recolhe a alma nas mais recônditas dobras de sua essência? Por que essa espécie de respeito, melancolia e terror, que nos possui sob o pavilhão viridante das selvas? Não será a intuição do infinito? O mesmo fenômeno moral que observamos nos vastos plainos do mar, quando aos pés temos os abismos imperscrutáveis das águas, e sobre a fronte os abismos sem fim do firmamento? Por isso, cremos que não há templo onde a oração seja mais sincera e mais ouvida. Em nossas cidades, estábulos em que se embotam as santas Crenças e os ternos sentimentos, o lábio balbucia geralmente o que não sente o coração. Dos fiéis que enchem o recinto de uma igreja, poucos rezam com unção, os mais satisfazem as conveniências sociais, cumprindo automaticamente as fórmulas de uma etiqueta. O culto das cidades, nos tempos que vão, é uma mentira, uma profanação, conseqüentemente.
Apolinário Porto-Alegre (O Vaqueano)
Com certeza, há muitas coisas que ainda não compreendemos. Os anos passam às centenas e aos milhares, e o que vê qualquer homem vivo além de alguns Verões e alguns Invernos? Olhamos as montanhas e dizemos que são eternar, e é o que parecem ser... Mas, no correr do tempo, montanhas erguem-se e ruem, rios mudam de curso, estrelas caem do céu, e grandes cidades afundam-se no mar. Pensamos que até os deuses morrem. Tudo muda. Talvez a magia um dia tenha sido uma força poderosa no mundo, mas já não o é. O pouco que resta não é mais do que o fiapo de fumaça que permanece no ar depois de um grande incêndio se extinguir, e até isso está se desvanecendo.
George R.R. Martin
Más notícias me vêm de meus primos e outros parentes, senhor padre Agamedes, afinal não ouviu Deus as suas orações, cheguei eu a esta cidade para assistir a tão grande desgraça, estava-me reservada esta provação, ver a terra de meus avós nas mãos destes ladrões, é o fim do mundo quando se ataca a propriedade, alicerce divino e profano da nossa civilização material e espiritual
José Saramago (Levantado del suelo)
7. Os santos disseram coisas admiráveis dessa cidade santa de Deus; e jamais foram mais eloquentes e mais contentes do que quando o fizeram, como eles mesmos o confessam. Em seguida, eles exclamam que a altura de seus méritos, que ela elevou até o trono da Divindade, não se pode perceber; que a largura de sua caridade, cuja extensão é maior que a da terra, não se pode medir; que a grandeza de seu poder, que ela tem sobre o próprio Deus, não se pode compreender; e, por fim, que a profundeza de sua humildade e de todas as suas virtudes e graças, que constituem um abismo, não se pode sondar. Ó altura incompreensível! Ó largura inefável! Ó grandeza imensurável! Ó abismo impenetrável!
Luis María Grignion de Montfort (Tratado da Verdadeira Devoção à Virgem Maria - Vol 4 (Clássicos do Cristianismo) (Portuguese Edition))
Adão e Eva não só sofreram separação de Deus (Gênesis 3.23, 24) e a ameaça de uma eventual separação física um do outro (Gênesis 3.19), mas seu pecado também causou a maldição da terra e afetou o futuro dos seus próprios descendentes. Portanto, o pecado é um ato de violência não só contra o seu próximo, mas também contra si mesmo. Provoca total alienação de mulheres e homens, pois os separa dos seus próximos, da criação, do seu Criador e de si mesmo.
José alves (Missão Urbana: Estratégias para a conquista de cidades (Portuguese Edition))
O cristianismo secular é uma religião que diz ao homem unicamente o que este quer ouvir: que é dono de si mesmo, que o futuro de sua história está em suas mãos, que Deus somente pode ser tolerado como algo impessoal que ele pode manipular, entre outros.
José alves (Missão Urbana: Estratégias para a conquista de cidades (Portuguese Edition))
Meu nome é Kvothe, com pronúncia semelhante à de "Kuoth". Os nomes são importantes, porque dizem muito sobre as pessoas. Já tive mais nomes do que alguém tem o direito de possuir. Os ademrianos me chamam de Maedre, o que, dependendo de como é falado, pode significar "A Chama", "O Trovão" ou "A Árvore Partida". "A Chama" é óbvio, se algum dia você já me viu. Tenho o cabelo ruivo, vermelho vivo. Se tivesse nascido há uns 200 anos, é provável que tivessem me queimado na fogueira como demônio. Eu o mantenho curto, mas ele é rebelde. Deixado ao natural, fica espetado e faz com que eu pareça estar pegando fogo. "O Trovão" é um nome que atribuo à voz forte de barítono e a uma longa formação no palco, em idade precoce. Nunca pensei em "A Árvore Partida" como muito significativo. Mas, em retrospectiva, suponho que poderia ser considerado ao menos parcialmente profético. Meu primeiro mentor me chamava de E'lir, porque eu era inteligente e sabia disso. Minha primeira amada de verdade me chamava de Duleitor, porque gostava desse som. Já fui chamado de Umbroso, Dedo-Leve e Seis-Cordas. Já fui chamado de Kvothe, o Sem-Sangue; Kvothe, o Arcano; e Kvothe, o Matador do Rei. Mereci esses nomes. Comprei e paguei por eles. Fui chamado de muitas outras coisas, é claro. Grosseiras, na maioria, embora pouquíssimas não tenham sido merecidas. Já resgatei princesas de reis adormecidos em sepulcros. Incendiei a cidade de Trebon. Passei a noite com Feluriana e saí com minha sanidade e minha vida. Fui expulso da Universidade com menos idade do que a maioria das pessoas consegue ingressar nela. Caminhei à luz do luar por trilhas de que outros temem falar durante o dia. Conversei com deuses, amei mulheres e escrevi canções que fazem os menestréis chorar. Vocês devem ter ouvido falar de mim.
Patrick Rothfuss
A segunda explicação para a decadência era política e religiosa. De todas as nações da Europa, Portugal continuaria sendo, no começo do século XIX, a mais católica, a mais conservadora e a mais avessa às ideias libertárias que produziam revoluções e transformações em outros países. A força da Igreja era enorme. Cerca de 300 mil portugueses — ou 10% da população total do país — pertenciam a ordens religiosas ou permaneciam de alguma forma dependentes das instituições monásticas. Só em Lisboa, uma cidade relativamente pequena, com 200 mil habitantes, havia 180 monastérios. Praticamente todos os edifícios mais vistosos do país eram igrejas ou conventos.[51] Por três séculos, a Igreja havia mantido submissos o povo, seus nobres e reis. Por escrúpulos religiosos, a ciência e a medicina eram atrasadas ou pouco conhecidas. Dom José, herdeiro do trono e irmão mais velho do príncipe regente, dom João, havia morrido de varíola porque sua mãe, dona Maria I, tinha proibido os médicos de lhe aplicar vacina. O motivo? Religioso. A rainha achava que a decisão entre a vida e a morte estava nas mãos de Deus e que não cabia à ciência interferir nesse processo.
Laurentino Gomes (1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil)
Chovia sempre e eu custei para conseguir me levantar daquela poça de lama, chegava num ponto, eu voltava ao ponto, em que era necessário um esforço muito grande, era preciso um esforço tão terrível que precisei sorrir mais sozinho e inventar mais um pouco, aquecendo meu segredo, e dei alguns passos, mas como se faz? me perguntei, como se faz isso de colocar um pé após o outro, equilibrando a cabeça sobre os ombros, mantendo ereta a coluna vertebral, desaprendia, não era quase nada, eu, mantido apenas por aquele fio invisível ligado à minha cabeça, agora tão próximo que se quisesse eu poderia imaginar alguma coisa como um zumbido eletrônico saindo da cabeça dele até chegar na minha, mas como se faz? eu reaprendia e inventava sempre, sempre em direção a ele, para chegar inteiro, os pedaços de mim todos misturados que ele disporia sem pressa, como quem brinca com um quebra-cabeça para formar que castelo, que bosque, que verme ou deus, eu não sabia, mas ia indo pela chuva porque esse era meu único sentido, meu único destino: bater naquela porta escura onde eu batia agora. E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar que as pessoas na rua parassem para olhar, eu quis chamá-lo, mas tinha esquecido seu nome, se é que alguma vez o soube, se é que ele o teve um dia, talvez eu tivesse febre, tudo ficara muito confuso, idéias misturadas, tremores, água de chuva e lama e conhaque no meu corpo sujo gasto exausto batendo feito louco naquela porta que não abria, era tudo um engano, eu continuava batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva, pelo meio da cidade, eu só estava parado naquela porta fazia muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, na mesma porta que não abre nunca.
Caio Fernando Abreu
Até o nome é enganador. «Bizantião» era o nome da antiga cidade grega que Constantino conquistou e escolheu para novo centro do Império Romano. Na sequência de uma tradição greco-romana de os monarcas atribuírem a cidades o seu próprio nome (como em Alexandria), chamou-lhe Constantinopla. Os cidadãos chamavam-se a si mesmo bizantinos, para se distinguirem dos romanos ocidentais, mas por vezes também romani («romanos» em latim), pois reivindicavam haver herdado o melhor da velha Roma. Tendemos a falar do Império Bizantino. Como já foi referido, os nórdicos aterrados chamaram àquele local Miklagard, «Grande Cidade»; era também conhecida em grego como Cidade de Deus. Hoje é Istambul. Porém, seja o que for que lhe chamemos, esta foi, como nos recorda o seu cronista moderno John Julius Norwich, uma sociedade humana de vida notavelmente prolongada. Fundada por Constantino em Maio do ano 330 e caída às mãos dos Otomanos em Maio de 1453, durou 1123 anos e 18 dias. Ou seja, aproximadamente o mesmo período de tempo que separa os Britânicos de hoje da Inglaterra de Alfredo, o Grande, dos Saxões e dos Dinamarqueses. Se Bizâncio foi um «fracasso» ou passou «à margem da corrente principal», foi um fracasso notavelmente persistente.
Andrew Marr (História do Mundo (Vol. 3))
Qual o touro cioso, que se ensaia Pera a crua peleja, os cornos tenta No tronco dum carvalho ou alta faia E, o ar ferindo, as forças experimenta: Tal, antes que no seio de Cambaia Entre Francisco irado, na opulenta Cidade de Dabul a espada afia, Abaxando-lhe a túmida ousadia. E logo, entrando fero na enseada De Dio, ilustre em cercos e batalhas, Fará espalhar a fraca e grande armada De Calecu, que remos tem por malhas. A de Melique Iaz, acautelada, Cos pelouros que tu, Vulcano, espalhas, Fará ir ver o frio e fundo assento, Secreto leito do húmido elemento. Mas a de Mir Hocém, que, abalroando, A fúria esperará dos vingadores, Verá braços e pernas ir nadando Sem corpos, pelo mar, de seus senhores. Raios de fogo irão representando, No cego ardor, os bravos domadores. Quanto ali sentirão olhos e ouvidos É fumo, ferro, flamas e alaridos. Mas ah, que desta próspera vitória, Com que despois virá ao pátrio Tejo, Quási lhe roubará a famosa glória Um sucesso, que triste e negro vejo! O Cabo Tormentório, que a memória Cos ossos guardará, não terá pejo De tirar deste mundo aquele esprito, Que não tiraram toda a Índia e Egipto. Ali, Cafres selvagens poderão O que destros amigos não puderam; E rudos paus tostados sós farão O que arcos e pelouros não fizeram. Ocultos os juízos de Deus são; As gentes vãs, que não nos entenderam, Chamam-lhe fado mau, fortuna escura, Sendo só providência de Deus pura.
Luís de Camões (Os Lusiadas)
1914. A grande ambição carnavalesca era usar lança-perfume. Havia tubos para crianças, finos como dedos. Bisnagava-se até cachorro! Na terça-feira gorda, o chão da Avenida tinha um palmo de confetes, os préstitos eram o delírio do ouropel — clarins, marchas triunfais, fogos-de-bengala, caracolantes ginetes abrindo os cortejos — gato, baeta, carapicu! — bamboleantes sóis, planetas, constelações, Vulcano, Júpiter, Netuno, mitológicos deuses paralisados em gestos de sarrafo e papelão, giratórias esferas rutilantes que se abriam em gomos para desvendar, por instantes deslumbrados, deidades semi-nuas, atirando beijos, para a multidão comprimida, com a ponta dos dedos inatingíveis. Saímos de tardinha, providos de farnel — sanduíches, pastéis, coxinhas de galinha — levávamos horas no bonde se arrastando aos arrancos, íamos postar-nos numa esquina propícia, sobre caixotes, para esperar o desfile de proverbial atraso. Mas se a chama foliona se extinguia na cidade, entre missas, sinos e beatas, na manhã de quarta-feira, prolongava-se em nossa casa por muitos dias além com restos de serpentinas pendentes dos gradis, saldos de confetes tapizando sala de jantar, trono, capitel, concha ou nenúfar, donde Madalena reclinada, soberana, envolta em rotos filós de antigos cortinados, com as faces tingidas por carmim, os cabelos coroados por um desperdício de fitas, atirava em gestos longos cachoeiras de beijos para uma suposta multitude de súditos e adoradores. E a mim, dormido ou acordado, me perseguia incessante, priapística, a luxuriosa visão daquelas deidades apoteóticas, floração de um horto inacessível, habitantes olímpicas, deusas! deusas! pois como poder entrosá-las na fauna feminil que eu conhecia, mesmo a esterlina mulher de doutor Vítor, que era estrangeira e fumava?
Marques Rebelo (O Trapicheiro)
Mas eis outro (cantava) intitulado Vem com nome real e traz consigo O filho, que no mar será ilustrado, Tanto como qualquer Romano antigo. Ambos darão com braço forte, armado, A Quíloa fértil, áspero castigo, Fazendo nela Rei leal e humano, Deitado fora o pérfido tirano. Também farão Mombaça, que se arreia De casas sumptuosas e edifícios, Co ferro e fogo seu queimada e feia, Em pago dos passados malefícios. Despois, na costa da Índia, andando cheia De lenhos inimigos e artificios Contra os Lusos, com velas e com remos O mancebo Lourenço fará extremos. Das grandes naus do Samorim potente, Que encherão todo o mar, co a férrea pela, Que sai com trovão do cobre ardente, Fará pedaços leme, masto, vela. Despois, lançando arpéus ousadamente Na capitaina imiga, dentro nela Saltando o fará só com lança e espada De quatrocentos Mouros despejada. Mas de Deus a escondida providência (Que ela só sabe o bem de que se serve) O porá onde esforço nem prudência Poderá haver que a vida lhe reserve. Em Chaúl, onde em sangue e resistência O mar todo com fogo e ferro ferve, Lhe farão que com vida se não saia As armadas de Egipto e de Cambaia. Ali o poder de muitos inimigos (Que o grande esforço só com força rende), Os ventos que faltaram, e os perigos Do mar, que sobejaram, tudo o ofende. Aqui ressurjam todos os Antigos, A ver o nobre ardor que aqui se aprende: Outro Ceva verão, que, espedaçado, Não sabe ser rendido nem domado. Com toda ũa coxa fora, que em pedaços Lhe leva um cego tiro que passara, Se serve inda dos animosos braços E do grão coração que lhe ficara. Até que outro pelouro quebra os laços Com que co alma o corpo se liara: Ela, solta, voou da prisão fora Onde súbito se acha vencedora. Vai-te, alma, em paz, da guerra turbulenta, Na qual tu mereceste paz serena! Que o corpo, que em pedaços se apresenta, Quem o gerou, vingança já lhe ordena: Que eu ouço retumbar a grão tormenta, Que vem já dar a dura e eterna pena, De esperas, basiliscos e trabucos, A Cambaicos cruéis e Mamelucos. Eis vem o pai, com ânimo estupendo, Trazendo fúria e mágoa por antolhos, Com que o paterno amor lhe está movendo Fogo no coração, água nos olhos. A nobre ira lhe vinha prometendo Que o sangue fará dar pelos giolhos Nas inimigas naus; senti-lo-á o Nilo, Podê-lo-á o Indo ver e o Gange ouvi-lo. Qual o touro cioso, que se ensaia Pera a crua peleja, os cornos tenta No tronco dum carvalho ou alta faia E, o ar ferindo, as forças experimenta: Tal, antes que no seio de Cambaia Entre Francisco irado, na opulenta Cidade de Dabul a espada afia, Abaxando-lhe a túmida ousadia. E logo, entrando fero na enseada De Dio, ilustre em cercos e batalhas, Fará espalhar a fraca e grande armada De Calecu, que remos tem por malhas. A de Melique Iaz, acautelada, Cos pelouros que tu, Vulcano, espalhas, Fará ir ver o frio e fundo assento, Secreto leito do húmido elemento. Mas a de Mir Hocém, que, abalroando, A fúria esperará dos vingadores, Verá braços e pernas ir nadando Sem corpos, pelo mar, de seus senhores. Raios de fogo irão representando, No cego ardor, os bravos domadores. Quanto ali sentirão olhos e ouvidos É fumo, ferro, flamas e alaridos. Mas ah, que desta próspera vitória, Com que despois virá ao pátrio Tejo, Quási lhe roubará a famosa glória Um sucesso, que triste e negro vejo! O Cabo Tormentório, que a memória Cos ossos guardará, não terá pejo De tirar deste mundo aquele esprito, Que não tiraram toda a Índia e Egipto. Ali, Cafres selvagens poderão O que destros amigos não puderam; E rudos paus tostados sós farão O que arcos e pelouros não fizeram. Ocultos os juízos de Deus são; As gentes vãs, que não nos entenderam, Chamam-lhe fado mau, fortuna escura, Sendo só providência de Deus pura.
Luís de Camões (Os Lusiadas)