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Como feminista, naturalmente quero perceber com clareza o modo como a defesa de certos privilégios penetra insidiosamente os mais diversos discursos, inclusive o literário. Quero distinguir os valores masculinos hegemônicos daqueles universais, se é que estes existem. No entanto, como mulher formada por essa cultura, preciso admitir que sou parte dela, que não há modo objetivo de isolar minha consciência feminina de todo o resto. Em outras palavras, não só ler literatura escrita por homens mas também ler como um homem — já que tantos livros foram escritos para eles — são experiências constitutivas do modo como entendo a mim mesma e o mundo.
Para uma mulher, crescer em uma cultura predominantemente masculina significa ocupar um lugar esquisito, em que é preciso se tensionar entre sujeito e objeto. As narrativas a que somos expostas frequentemente nos esticam (ou nos dilaceram) entre duas práticas e atitudes: entre, de um lado, o gesto de calçar os sapatos de personagens e autores homens, vivendo — como leitoras, ouvintes e espectadoras — suas aventuras e desventuras, e, de outro, o movimento de nos colocarmos no nosso devido lugar, à parte desse mundo mágico ou, no caso heterossexual, na posição secundária de objetos de desejo dos sujeitos.
A diferença entre querer ser e querer ter é só aparentemente simples. Eu me lembro bem do dia em que percebi o que há no meio do caminho. Tinha uns dezessete anos e estava no corredor da Faculdade de Direito, conversando com alguns dos rapazes da turma. Um deles fez, então, alguma piada grosseira e logo me pediu desculpas por falar aquilo na frente de uma garota. Outro colega, porém, disse para ele relaxar: “A Ligia é como a gente, não tem problema”. Eu queria, sim, ser como a gente — poder fazer e ouvir piadas grosseiras etc. —, mas também queria, e muito, ser como as garotas diante de quem não se fazem piadas grosseiras. Eram elas, afinal, que eles queriam beijar.
No meu caso — uma menina nerd que gostava de submergir nos livros e no cinema, e que ouvia muito Bob Dylan e Chico Buarque —, romances, poemas, filmes e canções contribuíram bastante para eu viver esse lugar esquisito, de querer ser tanto o aventureiro que atravessa 2 mil quilômetros escondido em vagões de trem quanto a mulher fatal que faz com que ele finalmente se descuide e acabe morto. Queria ser o herói que tinha um cavalo que falava inglês e também a noiva do caubói. Ainda quero.
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