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Tudo nele é negro como a asa de um corvo. Não consigo ver mais nada que o possa distinguir melhor... mas, depois de o ter visto uma só vez empregando a sua força na batalha, creio que o reconheceria entre um milhar de guerreiros. Corre para a refrega como se o chamassem para um banquete. Há nele mais do que mera força, parece que o corpo e a alma se entregam em cada golpe que vibra ao inimigo. Que Deus o
purifique do crime de derramamento de sangue! É terrível, mas magnífico, observar a maneira como o braço e o coração de um homem podem triunfar sobre centenas de outros homens.
— Rebeca, descreveu um herói. Certamente, apenas descansam para refrescarem as forças ou descobrir um meio de atravessarem o fosso. Sob um chefe, tal como o descreveu, não há lugar para temores, nem para demoras amedrontadas, nem para hesitações
num generoso empreendimento, uma vez que as dificuldades que o tomam árduo, tornam-no também glorioso. Juro, pela honra da minha casa; juro, pelo nome da minha bela amada, que suportaria de bom grado dez anos de cativeiro, para poder lutar um dia ao lado de tão grande cavaleiro numa refrega como esta!
— Infelizmente — respondeu Rebeca, deixando o seu posto junto da janela e aproximando-se da cama do cavaleiro ferido — esse impaciente desejo de ação... essa luta e esse rancor contra a sua presente debilidade, não deixarão de ter efeitos prejudiciais
sobre a sua combalida saúde. Como pode desejar infligir ferimentos a outrem, sem ver ainda curados os que recebeu?
— Rebeca — volveu ele — não sabe como é impossível, para alguém treinado nas ações de cavalaria, permanecer passivo, como um padre ou como uma mulher, quando à sua volta se desenrolam
feitos de honra! O amor da batalha é o alimento do qual vivemos... o pó da ‘mêlée’ é a respiração das nossas narinas! Não vivemos... não desejamos viver senão enquanto formos vitoriosos e afamados.
Estas são as leis da Cavalaria, juradas por nós e às quais sacrificamos tudo o que nos é querido.
— E o que é isso, valente cavaleiro, senão oferecer um sacrifício ao demónio da vaidade, e transformar-se em Moloch através do fogo! Que lhe resta como prémio de todo o sangue que derramou... De todos os trabalhos e dores que suportou... De todas as lágrimas
que os seus feitos causaram, quando a morte quebra a espada do homem forte e ultrapassa a ligeireza do cavalo?
— O que resta? — gritou Ivanhoe. — Glória! mulher, glória! Que doura o nosso sepulcro e perpetua o nosso nome.
— Glória? — insistiu Rebeca. — Ai! A cota enferrujada
pendurada como um brasão sobre o túmulo escuro, e desfazendo-se em pó... os caracteres desfigurados da inscrição que o ignorantemonge mal sabe ler ao curioso peregrino... Serão suficientes recompensas para o sacrifício de todos os generosos afetos, para
uma vida miseravelmente passada a tornar os outros também miseráveis? Ou haverá alguma virtude nas rudes rimas de um bardo errante para que o amor caseiro, o quente afeto, a paz e a felicidade, sejam ferozmente afastados, para se tornar no herói dessas baladas que os menestréis vagabundos cantam à noite a rústicos bêbedos nadando em cerveja?
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