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Acho que cometi um erro ao começar a escrever. Pelo menos, senti vergonha o tempo todo em que escrevi esta novela: quer dizer que isto já não é literatura, mas um castigo correcional. Afinal, contar histórias compridas, por exemplo, sobre como joguei fora minha vida, metido num canto, por meio da depravação moral, da pobreza do ambiente, do afastamento do que é vivo e do rancor vaidoso no subsolo — juro por Deus, não é nada interessante; num romance, é necessário um herói, mas aqui foram reunidos, de propósito, todos os atributos de um anti-herói e, o mais importante, tudo isso vai produzir uma impressão extremamente desagradável, porque todos nós estamos desacostumados com a vida, todos nós claudicamos, uns mais, outros menos. E estamos tão desacostumados que, às vezes, sentimos certa repugnância da “vida viva” e, por isso, quando os outros nos lembram dela, nem conseguimos suportar. Pois chegamos a tal ponto que já consideramos que a verdadeira “vida viva” é quase um trabalho, quase um emprego e, no fundo, todos estamos de acordo que é melhor ficar nos livros. Então, por que, às vezes, sentimos uma comichão, por que inventamos extravagâncias, o que é que estamos pedindo? Nós mesmos não sabemos. Para nós, seria pior se nossos pedidos extravagantes fossem atendidos. Pois bem, experimentem, pois bem, deem para nós, por exemplo, um pouco mais de independência, desamarrem as mãos de qualquer um de nós, ampliem a esfera de atividade, relaxem a tutela, e nós... sim, eu garanto aos senhores: logo vamos pedir de volta a tutela. Sei que os senhores, talvez, vão se irritar comigo por isso, vão começar a gritar, a bater os pés no chão: “Fale apenas de si mesmo e de suas misérias no subsolo, mas não se atreva a dizer todos nós”. Por favor, senhores, afinal, eu não estou querendo me justificar com essa todosnosice. Quanto a mim, propriamente, acontece apenas que, na minha vida, eu levei às últimas consequências aquilo que os senhores não se atreveram a levar nem à metade do caminho, e ainda por cima tomaram sua covardia como expressão da sensatez, e se consolaram com isso, enganando a si mesmos. Portanto, quem sabe, eu saio de tudo isso até mais “vivo” do que os senhores. Mas examinem com mais atenção! Afinal, nem sabemos onde vive agora este “vivo” nem o que ele é nem como se chama, não é? Deixem-nos sozinhos, sem livros, e na mesma hora vamos ficar confusos, vamos nos perder — não saberemos a que aderir, o que apoiar, o que amar, o que odiar, o que respeitar nem o que desprezar. Para nós, é opressivo até ser gente — gente com corpo e sangue próprios, de verdade; temos vergonha disso, consideramos isso uma humilhação e fazemos de tudo para nos tornarmos uns tais de seres humanos em geral, que nunca existiram. Nós já nascemos mortos e faz tempo que não nascemos mais de pais vivos, e isso nos agrada cada vez mais. Estamos tomando gosto. Em breve, vamos inventar não sei que jeito de nascer de uma ideia. Mas, chega; não quero mais escrever “do Subsolo”. No entanto, ainda não terminam aqui as “memórias” deste paradoxista. Ele não se conteve e seguiu adiante. Mas a nós também parece que podemos parar por aqui.
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